Comenta-se há muito tempo que existem duas classes que ganham muito dinheiro nos Estados Unidos: Dentista e advogado. Como os comentários são feitos em meios odontológicos, entram aí os dentistas, mas é claro que os médicos também ganham e muito bem. Comenta-se também que uma das razões pelas quais o advogado ganha muito bem é o fato de “estimular” a insatisfação entre os pacientes. Aí surgem os processos.
Você gostou? Foi bem atendido? Por acaso ele se insinuou? A facilidade com que se processa alguém na sociedade americana tem sido mostrada pela imprensa e sempre trouxe alguma perplexidade. O caso do lutador de boxe Mike Tyson ilustra bem isso. Uma mulher que vai ao apartamento dele e depois o processa por assédio sexual, argumentando que pensou que ele fosse mostrar uma coleção (não lembro de que, deve ter sido de bonecas Barbie) é de um ridículo sem tamanho. E o pior, ela ganhou.
Diz-se que uma das garantias de causa ganha é processar o endodontista pelo fato de ter algum espaço do canal que não foi bem obturado. Se o canal que você obturou apresentar qualquer falha na obturação, pode ficar tranqüilo, você será processado. E para você ficar mais tranqüilo ainda, esteja certo de que vai perder.
Não dá para trabalhar. Assim é difícil. Você, ou o seu advogado, tem como provar ao juiz que a instrumentação foi muito bem feita? Não. Tem como provar que a irrigação foi muito bem feita? Não. Se usou PMCC, tricresol, corticóide, clorexidina…, tem como provar que a medicação intracanal foi muito bem feita? Não. Se usou hidróxido de cálcio e o canal foi bem preenchido, talvez o convença. Tem como provar que a obturação foi muito bem feita? Tem. É a única etapa que pode ser mostrada, atestada, comprovada, garantida. Uma obturação “perfeita” pode ser mostrada numa radiografia. Percebeu a importância da obturação?
Qual a solução? Faça da sua obturação a etapa mais importante do tratamento endodôntico. Obture impecavelmente, tão impecavelmente que, não tendo mais espaço onde obturar, a obturação extravase. O que você prova? Que a obturação está tão bem feita, mas tão bem feita, que, por falta de espaços vazios, extravasou. Obturação com extravasamentos, comprovação da excelência na Endodontia. Causa ganha, dessa vez para você.
Há alguma outra razão para se fazer obturações desse tipo?
Você já ouviu falar da teoria do tubo oco, também conhecida como teoria do espaço vazio? Ela nasceu e cresceu nos Estados Unidos e se consolidou em todo o mundo. Segundo essa teoria, eventuais falhas na obturação, particularmente no terço apical, permitiriam a penetração dos fluidos teciduais periapicais para o interior do canal, onde entrariam em processo de estagnação e decomposição e produziriam substâncias tóxicas aos tecidos periapicais. Trabalhos como o de Rickert e Dixon (1931) “confirmavam” essa concepção, mas foi Ingle (1956) quem se encarregou de consagra-la. Em todo o mundo praticamente todos os autores e professores a adotaram e passaram a ensinar apoiados nela. No Brasil, todos fizeram isso. Se você procurar um único livro de autor brasileiro que não tenha ensinado assim, não vai encontrar. Se encontrar, por favor, me mostre.
Daí nasceu a idéia da necessidade do vedamento hermético e com ela a do travamento perfeito do cone de guta percha. Era a única forma de garantir o sucesso. Você aprendeu assim? Eu também. Criaram-se técnicas e mais técnicas, cimentos obturadores de todos os tipos, cada um cantando em prosa e verso as suas maravilhas, profissionais adotando essas técnicas e cimentos da noite para o dia, uma festa. Foi um dos maiores equívocos que se cometeu na Endodontia.
Cometer equívocos é inerente ao ser humano, consequentemente, ao pesquisador e ao clínico. O que não faz absolutamente nenhum sentido é insistir por longos anos no erro. Não há registro de um trabalho que comprove a existência de vedamento hermético, mas ainda hoje vejo a sua indicação como garantia de sucesso, o que é um absurdo. Quanto à teoria do espaço vazio, já foi devidamente demonstrada a sua inconsistência científica. A questão, porém, vai muito além disso. Trata-se de trazer para os vários momentos da Endodontia concepções mais inteligentes e sensatas, o que não está acontecendo. Esse é um tema recorrente e lhes convido a ler o que já escrevi sobre ele aqui no site. Clique aqui para ler pelo menos os artigos A difusão do erro, Um grande equívoco, Preparo e obturação do canal e A obturação e o espaço vazio.
Há poucos dias li, e enviei para alguns amigos, um texto muito interessante de Rosa Alegria*, em que ela se reporta a uma frase de Marcuse**. “É a racionalização da irracionalidade”, dita na década de 60, quando a sociedade unidimensional – carente do elemento crítico – começou a ser modelada. A ausência de análise crítica não é algo tão incomum. Mesmo o mundo acadêmico parece sofrer com isso.
Se você faz Endodontia nos Estados Unidos, extravase. Parece que, de alguma forma, é interessante, pelo menos no aspecto jurídico. Se você faz Endodontia no Brasil, não extravase. Não faz sentido.
* Rosa Alegria – Futurista, pesquisadora de tendências, comunicóloga e ativista de midia. É diretora de Conteúdo do Mercado Ético.
** Herbert Marcuse – sociólogo e filósofo alemão de uma família de judeus assimilados naturalizado norte-americano.