Quem ama, blinda

Quem ama, blinda

Por Ronaldo Souza

A vida impõe regras.

E assim nos limita.

Ao mesmo tempo, porém, parece dizer bem baixinho, sussurrando ao ouvido para que, pela proximidade, chegue mais rapidamente às nossas mentes:

Não siga as regras!

A vida parece ensinar a todo instante que a rigidez de pensamentos e ideias não encontra espaço tão facilmente, particularmente na ciência. Por isso a rigidez não sobrevive por muito tempo.

Custei a aceitar que posso defender o acesso à câmara pulpar sem ainda ter feito o isolamento absoluto.

Já entendia que podia e devia fazer em algumas situações, mas tinha dificuldade em preconizar. Há alguns anos, porém, decidi.

Acho que preciso explicar isso.

Fazer acesso à câmara pulpar sem isolamento absoluto fere princípios básicos do tratamento endodôntico executado dentro dos conhecidos e recomendáveis critérios de manutenção de rigorosa cadeia asséptica.

Quando não é feito nessas condições, o acesso à câmara pulpar oferece todas as possibilidades e riscos que conhecemos. Um deles, a eventual contaminação do sistema de canais.

De procedimento técnico recomendável passou a obrigatório.

Mas às vezes essa questão é tratada como se os microrganismos estivessem de tocaia, só à espera de uma porta se abrir e fazer o toque de ataque.

– Cavalaria, atacar!

E aí, em correria desenfreada, os microrganismos invadiriam as fronteiras do inimigo, no caso o desguarnecido sistema de canais radiculares.

Não, não é assim.

Em primeiro lugar, bactéria não corre.

Nem anda.

Proliferam-se e ocupam espaços.

E é dessa maneira que, mesmo antes da porta se abrir, elas já terão “chegado” ao canal via túbulos dentinários.

É aí que entra a vida.

Apresentando as suas dificuldades e nos apresentando ao bom senso.

Diante de dentes em que se detecta previamente que haverá dificuldades acima do normal para localizar a câmara pulpar e com isso risco iminente de, por exemplo, ocorrer uma perfuração de furca, não seria recomendável fazer as fases iniciais do acesso sem isolamento absoluto? Assim que a câmara pulpar for localizada, o procedimento é interrompido para a execução do isolamento.

A irrigação inicial com hipoclorito de sódio e a complementação do acesso à câmara pulpar, removendo todo o seu conteúdo com curetas e irrigação com hipoclorito de sódio, seriam então realizados.

Não pode ser assim?

O que pode representar mais risco à preservação do dente?

O acesso inicial à câmara pulpar sem isolamento absoluto em casos de grande dificuldade de localização da câmara pulpar, ou a contaminação do orifício de localização da câmara pulpar nas condições descritas, contornada pelo procedimento também descrito?

Anuska2''

Não parece aceitável fechar horizontes nos procedimentos de um ato operatório.

A possibilidade de alternativas deveria ser sempre bem-vinda. A Endodontia agradece.

Quando começa o tratamento endodôntico?

O paciente começa a ser tratado assim que entra no consultório do endodontista.

É naquele momento que, ao conversar com o paciente, explicar-lhe o que é e como é o tratamento, que o endodontista começa a mostrar a sua segurança e assim tranquiliza-lo. Naquele momento ele começa a ser tratado, “sem que nada ainda tenha sido feito”.

Precisamos não só entender, mas pôr em prática a concepção de paciente como um todo, em toda sua plenitude.

Ao vir para a cadeira, nela sentar para ser tratado e ao sair dela ao final do tratamento, ele é todo o tempo o ser pleno. Disso nenhum dentista, e especificamente o endodontista, pode esquecer.

Ao mesmo tempo, porém, naquele momento do tratamento, ele é um paciente endodôntico.

Ele não é paciente da Dentística Restauradora ou de Prótese.

Ao repetir, reforço. Ele é paciente endodôntico.

Concordo inteiramente com você que ao ler o que acabo de escrever, pensou; conclusão óbvia.

Então vamos ao óbvio.

O que é Endodontia?

“Endodontia é a especialidade que tem como objetivo a preservação do dente por meio da prevenção, diagnóstico, prognóstico, tratamento e controle das alterações da polpa e dos tecidos perirradiculares”.

Esta é a definição de Endodontia que consta no Conselho Federal de Odontologia (CFO).

Se há alguma mais nova no site do CFO, não consegui encontrar. E nela vejo que está bem explicitada a função do endodontista.

Pelo menos em tese, uma vez que o endodontista não é um profissional que atua nas áreas de Dentística Restauradora ou Prótese, é possível que, voltado para as coisas da Endodontia, ele não tenha desenvolvido as competências exigidas para atuar nessas áreas.

É possível, por exemplo, que não esteja apto a realizar restaurações coronárias como de fato elas devem ser feitas.

E o “como de fato elas devem ser feitas” apresenta algumas exigências, como todo o conjunto de alternativas de materiais restauradores adequados a cada necessidade, confecção de pinos apropriados a cada situação e não somente um predeterminado, conhecimento mais aprofundado de oclusão, restabelecimento dos pontos de contato daquela unidade com os dentes vizinhos e outros mais. Todos muito importantes.

Não devo estar enganado se disser que não me parece que essas sejam as condições apresentadas pelos endodontistas de um modo geral.

Podem ser desenvolvidas por eles?

Claro que sim.

Acredito, porém, que não seja a realidade da maioria deles.

Não cabe aqui a discussão sobre o que isso acarretaria. Uma discussão muito mais complexa e profunda sobre a formação do Cirurgião Dentista – “você está apto a exercer a Odontologia…” – e questões como as áreas de competência de cada especialidade.

Mas o que não cabe mesmo é a forçação de barra que se percebe com o uso abusivo de determinadas expressões e procedimentos, como se fossem a única solução para os problemas endodônticos.

Há catorze anos chamei a atenção para uma dessas questões. Veja.

“Ao se preconizar o vedamento hermético apical como o fator responsável pelo sucesso em Endodontia durante todos esses anos, cometeu-se um grande equívoco. Em condições normais, não há bactéria na região periapical, portanto, não é lá que reside o problema. As bactérias existem aos milhões na cavidade bucal e é o reconhecimento desse fato que faz com que, mais recentemente, alguns autores comecem a demonstrar a sua preocupação com o selamento coronário, a ponto de o considerarem, provavelmente, tão ou mais importante do que o apical (RAY & TROPE, 1995; WALTON & JOHNSON, 1997). De nossa parte não há nenhuma dúvida; o selamento coronário é mais importante do que o apical”.

Está escrito exatamente assim, inclusive com os negritos, na página 209, Capítulo 7 (Obturação do Sistema de Canais), do livro Endodontia Clínica, 2003.

Capa do livro

Você acha que para mim é alguma novidade falar da importância da restauração coronária?

Não, não é novidade.

Como também não há nenhuma novidade no oportunismo de se aproveitar mais uma chance para fazer mais marketing na Endodontia.

É mais um pedestal construído para se colocarem como diferenciados.

Fazer parte da Confraria dos Eleitos pelos Deuses.

Ah, como é uma delícia essa sensação!

Não é difícil, diria que até muito pelo contrário, é cada vez mais comum, encontrar quem adore dourar a pílula e se empavonar.

Estou me colocando contra a importância da restauração coronária?

“De nossa parte não há nenhuma dúvida; o selamento coronário é mais importante do que o apical”.

Você acha possível para quem disse isso há catorze anos?

A ênfase ao dizer que o selamento coronário é mais importante do que o apical, uma frase arriscada, dita num momento em que ninguém entendia assim e ninguém fazia essa abordagem, foi justamente para chamar a atenção sobre a importância desse tema.

Você está convidado a ir ao livro Endodontia Clínica para ver porque ele foi o único no Brasil a colocar essa questão nesses termos.

Há 14 anos.

Quando termina o tratamento endodôntico?

Às vezes tenho a impressão de que querem estender a conclusão do tratamento endodôntico.

O tratamento endodôntico é concluído quando o canal é obturado.

É nesse momento que ele é concluído.

A atenção ao paciente, não.

Essa não está concluída.

Ela se continua por um tempo que não há como preestabelecer. Varia de acordo com as necessidades e objetivos de cada caso.

Portanto, não vamos confundir uma coisa com a outra, isto é, tratamento endodôntico com atenção ao paciente. São diferentes.

Concluiu o tratamento endodôntico?

Faça um bom selamento coronário.

Há risco de fratura coronária?

Faça uma boa proteção da estrutura remanescente.

Quer fazer o que chamam de blindagem?

Faça.

Quem ama, blinda'''

Você acha que consegue blindar o dente?

Blinde.

Brinde pela façanha.

Mas, por favor, não diga que é indispensável ao sucesso do tratamento endodôntico, deixando clara a insinuação de que quem assim não faz…

Não faça isso porque mais uma vez é um jogo cruel e covarde para muitos profissionais cuja realidade pode não ser a mesma que a de alguns em grandes centros urbanos do país.

Por falar em grandes centros urbanos do país, é neles onde há também maiores riscos com relação à segurança pessoal e da família. As empresas do ramo sabem disso e exploram muito bem.

A blindagem é cada vez mais procurada, tanto por pessoas que compram veículos novos, como por empresários, profissionais bem sucedidos ou de grande patrimônio – alvos fáceis de sequestros, assaltos ou qualquer outro tipo de violência.

Essa frase é de uma propaganda de blindagem de carros.

Ao dizer “Quem ama, blinda”, o que será que querem dizer?

Será que querem dizer que quem não blinda não ama a família, como insinua a primeira imagem lá em cima?

Ao acenar com essa mensagem – empresários, profissionais bem sucedidos ou de grande patrimônio” a empresa sabe que está mexendo com o imaginário das pessoas e tocando fundo no sonho de consumo; o de serem profissionais bem sucedidos.

Entenda-se bem sucedidos.

Quantos gostariam de blindar os seus carros?

Arrisco dizer que muitos.

Quantos blindam?

Não muitos.

Só os profissionais bem sucedidos.

Por que?

Custo.

Mas quantos ficarão desconfortáveis por se saberem e, pior, pelos outros também saberem, que eles não estão entre os profissionais bem sucedidos?

Crie categorias que enquadrem os que não são, os que não fazem parte, os que não pertencem, que eles farão de tudo para serem, fazerem parte, pertencerem.

Blindarão seus carros, acredite.

Aí serão, farão parte, pertencerão.

E se sentirão diferenciados.

E segue o baile.

Há os que fazem blindagem dental.

Há os que não fazem.

Quantos temerão não serem vistos como profissionais bem sucedidos?

Quantos querem ser, fazer parte, pertencer?

Quantos “fazem um canal rapidinho”?

Quantos serão pressionados e se sentirão desconfortáveis por não fazer?

Quantos farão de tudo para fazerem?

E segue o baile.

É assim que funciona.

Prezado colega endodontista, dirijo-me agora diretamente a você.

Tenha também entre as suas preocupações de endodontista a de restaurar e proteger a coroa dental.

Dentes com grande destruição coronária merecem cuidados especiais. Restaure-os da melhor maneira possível.

Os materiais seladores/restauradores provisórios desenvolvidos cumprem bem o papel para o qual são destinados: selamento provisório.

Concluiu o tratamento endodôntico?

Faça um bom e cuidadoso selamento provisório, oriente o paciente quanto à importância e necessidade da restauração coronária e o encaminhe para faze-la.

Se você mesmo faz a restauração, ótimo.

Não se preocupe, seja de uma forma ou de outra, dá tempo.

O canal não será invadido por bactérias em correria desenfreada.

Cabe o mesmo raciocínio.

Não haverá toque de avançar cavalaria.

Não é assim.

A vida é simples.

Bela e simples.

Ela chega pra você e diz.

– Olha, quero lhe apresentar ao bom senso. Quero que você o conheça.

E aí o conhecemos.

Usá-lo ou não é uma questão de… bom senso.