Evidências incômodas. Por isso, ignoradas

Forame menor 1'''

Por Ronaldo Souza

Há coisas que parecem passar despercebidas.

Mas só parecem, não passam.

Durante muitos anos uma regrinha desafiou a inteligência e o bom senso.

1 + 3 e 1+ 4.

No tratamento endodôntico de dentes com polpa viva, os canais deviam ser preparados com um instrumento inicial (aquele que se ajustasse no comprimento de trabalho, CT), e mais três de calibres superiores na sequência de alargamento (como muitos gostam de dizer).

E no tratamento endodôntico de dentes com polpa necrosada, os canais deviam ser instrumentados com o instrumento inicial e mais quatro de calibres superiores na sequência de alargamento.

Estava errada a orientação quanto aos níveis de instrumentação?

Possivelmente não.

Foi o conhecimento gerado à época.

Então por que “desafiou a inteligência e o bom senso”?

Você observou que falei “orientação” na frase um pouco acima?

Tornou-se compromisso obrigatório.

Aos alunos dizia-se que na polpa viva tinham que instrumentar com 1+3 e na polpa necrosada com 1+4.

Protocolo!

Aí estava o desafio à inteligência e ao bom senso.

Como se na Endodontia coubessem regras pré-determinadas.

Então, quando o aluno “partia” pra tratar um canal com polpa viva já sabia; 1+3.

Quando era polpa necrosada, 1+4.

Nada mais, nada menos.

O porque não importava.

Determina-se, faz-se.

Cumpra-se.

Independentemente de qualquer coisa, porém, era necessário, pelo menos assim se imaginava, que o instrumento e consequentemente a instrumentação, alcançasse todas as paredes do canal.

Diante de paredes dentinárias infectadas, e por consequência também os seus túbulos, sabia-se que um único instrumento não era capaz disso.

Daí, a necessidade de que outros de calibres maiores fossem, na sequência, tocando e “desgastando” as paredes.

Quantos?

1 + 3 e 1+ 4.

Sem dúvida, a regra mais utilizada.

Certa ou errada, o julgamento da regra não é a questão.

A questão é o consenso:

A necessidade do uso de alguns instrumentos para um bom preparo do canal, pelo reconhecimento de que um único não seria capaz de desempenhar esse papel.

Por que usamos soluções irrigadoras com algumas características como ação solvente de matéria orgânica, ação antimicrobiana, neutralizadora…?

Por sabermos que a ação dos instrumentos está longe de ser aquela que gostaríamos.

Virou chavão dizer que “estima-se que cerca de 35 a 40% das paredes dos canais não são tocadas pelos instrumentos…”

Como contornar essa situação?

Entre outras propostas, as soluções irrigadoras.

Já se preconizou de tudo.

De hipoclorito de sódio de 0,5% a 10% a ofurô, passando por detergentes, cremes, clorexidina…

Um evidente reconhecimento das limitações da ação mecânica dos instrumentos quanto ao seu maior objetivo:

Remover o conteúdo do canal.

Ora, ora, ora, que maravilha!

1+3=4.

1+4=5.

Quer dizer que 4 ou 5 instrumentos são utilizados na instrumentação do canal e mesmo assim se admite que “cerca de 35 a 40% das paredes dos canais não são tocadas” por eles!

E agora vem alguém e diz:

Basta usar 1!

“Era necessário, pelo menos assim se imaginava, que o instrumento e consequentemente a instrumentação, alcançasse todas as paredes.”

Lembra dessa frase?

Foi dita aí em cima.

Parece que isso hoje não é mais necessário.

Ou será que esse instrumento único é capaz disso?

Nesse sentido, o que há de tão revolucionário nele?

Sistemas de Rotação Alternada

Técnica da Força Balanceada

A Técnica da Força Balanceada foi proposta por Roane JB, Sabala CL e Duncanson MG Jr (The “balanced force” concept for instrumentation of curved canals. J Endod 1985 May; 11(5):203-11).

Deixemos de lado os detalhes para dizer que consiste da rotação da lima em um quarto de volta no sentido horário, para prender-se à dentina, e de meia a uma volta no sentido anti-horário.

Um quarto à direita, meia a uma volta à esquerda.

Percebeu que o maior giro (vamos chamar assim) é à esquerda?

No Brasil, o professor De Deus, Quintiliano Diniz de Deus, adaptou-a e criou a Técnica dos Movimentos Oscilatórios.

Ambas são realizadas com instrumentos manuais.

Uso a técnica de movimentos oscilatórios desde 1992, quando De Deus lançou a 5ª edição do seu livro.

Há 25 anos.

O que representam a “rotação da lima em um quarto de volta no sentido horário e de meia a uma volta no sentido anti-horário” e os “movimentos oscilatórios”?

Movimentos de rotação alternada.

Só que realizados com instrumentos manuais.

Os movimentos de rotação alternada “à direita e à esquerda” foram incorporados a sistemas mecanizados de instrumentação dos canais como o M-4 (Kerr), o Endo-Gripper (Moyco-Union Broach) e o Tep 10R, para citar três.

M 4

Endo Gripper

Passamos a ensina-los nos nossos cursos a partir da primeira turma de especialização em 2000, com o professor Gilson Sydney, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Usávamos no curso o M 4 e o Tep 10R (trazidos pelo professor Gilson) e o Endo Gripper, que era nosso.

Movimentos reciprocantes

O que são movimentos reciprocantes?

São movimentos de rotação alternada à esquerda e à direita.

São movimentos oscilatórios.

Com algumas modificações em relação aos citados anteriormente, a começar pelos instrumentos utilizados e pela cinemática aplicada a eles.

No M 4 e Endo Gripper os instrumentos utilizados eram os manuais, como se pode observar nas figuras acima, enquanto que nos reciprocantes, instrumentos próprios desenhados para esse objetivo.

Se no M 4 os movimentos eram igualmente de 30º à direita e à esquerda e no Endo Gripper também igualmente de 45º à direita e à esquerda, nos reciprocantes são diferentes.

Reciprocantes

No Reciproc, são girados 150º à esquerda e 30º à direita, o que faz um “total” de 120º.

Feito em três ciclos, ao final cumprem um giro de 360º.

No Wave One, 170º e 50º respectivamente, cumprindo também ao final um giro de 360º.

Percebeu que o giro maior é à esquerda, tal como a Força Balanceada de Roane e colaboradores?

Novo instrumento, nova cinemática, nova proposta.

A de instrumentar o canal com um único instrumento.

“Uma lima, uma hora, uma sessão. Como matar uma especialidade!”

Foi assim que Martin Trope definiu essa questão.

Mas não há como negar.

O poder de sedução é inegavelmente enorme, como também é a dificuldade em resistir a ele.

Num auditório cheio causa um impacto SEN-SA-CIO-NAL.

Saímos e vamos direto para o stand comprar.

“O aluno sairá apto a realizar o tratamento de canal com lima única”.
Autor (des)conhecido

Tem sido anunciado de diferentes maneiras, geralmente como algo de eficiência comprovada e irrefutável.

Desde o início é assim, quando ainda era um bebê recém-saído da proveta. 

Maravilha!!!

Vamos lá.

Instrumentos desenhados para esse tipo de uso; ótimo.

A qualidade do instrumento é inquestionável; ótimo.

Quanto à cinemática, particularmente gosto muito, razão pela qual utilizo a que lhe deu origem há 25 anos; ótimo.

Mas, professor, como fica o tocar nas paredes do canal?

Não precisa mais?

Ou o senhor já acha que os paradigmas podem ser quebrados sem as evidências necessárias?

Continuaremos nossa conversa.