A vida em um consultório

Tibet

Por Ronaldo Souza

Há alguns anos um paciente me foi encaminhado para tratamento endodôntico de um molar inferior.

Suíço, trabalhava em Brasília, no Itamaraty.

Contou-me que já tinha morado em vários lugares do mundo e que passara alguns anos no Tibet, onde aprendeu a fazer meditação em níveis profundos (por isso tinha ido para lá).

Naquele momento, entretanto, por opção pessoal estava trabalhando em Salvador, no governo de Waldir Pires.

Disse-me que Waldir Pires era o maior estadista do Brasil e tamanha era sua admiração por ele que, pelo fato de vir trabalhar por opção pessoal na Bahia, temporariamente perdia alguns direitos que tinha no Itamaraty, entre os quais tratamento grátis com dentista e médico.

Apesar das “perdas”, sentia-se honrado em trabalhar para o governo daquele homem.

Admirei-o.

Após procedimentos iniciais de conversa, preenchimento da ficha clínica… ele fez um pedido.

Queria fazer o tratamento sem anestesia.

Era um molar inferior com polpa viva.

Por que falei no Tibet?

Porque foi onde ele aprendeu a fazer meditação e graças a ela nunca tinha feito tratamento odontológico sob anestesia.

Um detalhe.

Nunca tinha feito tratamento endodôntico.

Expliquei a ele que era inimaginável faze-lo sem anestesia.

Firme na sua decisão, insistiu na intenção.

Só me pediu alguns minutos para fazer meditação e entrar num outro plano (aqui são palavras minhas).

Ele sentado na cadeira, eu no mocho.

Ele se concentrando, eu temendo o que me aguardava.

Ele pronto, eu ansioso.

Começamos.

Sempre olhei muito para o semblante do paciente enquanto o tratava.

Já durante a anestesia, paciente geralmente de olhos fechados, eu de olhos abertos, olhando bem para as suas reações. Desde o simples piscar de olhos (fechados) até movimentos de braços, pernas…

Nele, sem anestesia, quadrupliquei a atenção.

Nunca minhas mãos tinham sido tão leves como naquele dia.

Ele, tranquilo.

Parecia que nada havia naquela sala além dele.

A broca cortando esmalte, agora em dentina.

Ousei entrar no seu mundo.

– Tudo bem?

– Tudo.

Avancei mais com a broca, mas, sabendo da sua inexperiência (novinha, primeiro emprego, primeiro dente no qual trabalhava), pedi a ela que fosse o mais suave possível.

Ousei outra vez.

– Posso continuar?

– Pode.

Fui notando “mudanças”.

Mais pálido, as primeiras e tímidas gotas de suor.

De novo.

– Posso continuar?

– Pode.

A broca já carregava sentimentos de culpa e diminuiu seu ímpeto.

Pluma, minha mão passara a ser muito, muito leve.

Mais palidez, mais gotas de suor, já não mais tão tímidas.

A insustentável leveza das mãos.

E da voz.

– Quer parar?

– Não.

Olhava agora para uma vela branca, que se derretia sob o comando de algo incontrolável.

Era o calor das entranhas contorcendo-se para suportar o insuportável.

Ainda em dentina, não aguentei.

Ele também não.

Paramos.

Naqueles minutos de eternidade me vi um torturador.

Ainda que um torturador sem sensações sadomasoquistas.

E, para conforto da minha alma, com “autorização” do torturado.

Mas autorização que não conseguia afastar o meu desconforto.

Ele estava literalmente branco, encharcado de suor, que banhava também a cadeira.

Disse que nunca tinha sentido dor tão intensa, tão forte que lhe provocava um esforço cada vez maior na busca da serenidade da mente.

Pela primeira vez não conseguiu.

Pelo que vi e pelo seu relato imaginei vísceras ardendo em chamas.

Marcamos então outra consulta.

Dessa vez com anestesia.

Muitas vezes não a vemos, mas a vida passa todos os dias pelos nossos consultórios.