Por Ronaldo Souza
Era uma pessoa próxima a mim.
Em conversas do nosso grupo sempre dizia que quando alguém lhe pedia dinheiro na porta de um supermercado para alimentar os filhos dizia não e complementava; “diga o alimento que precisa que eu compro”.
Segundo ele, para sua surpresa alguns resmungavam e não aceitavam.
E nos dizia então; “tudo jogada. Vou dar dinheiro para sustentar vício?”
Algo nobre. Pelo menos assim lhe parecia.
Por outro lado, contava também que quando um paciente lhe pedia para fazer “um preço menor” no tratamento não escondia a sua indignação e negava veementemente, dizendo que considerava um desrespeito ao profissional.
Nada mais natural do que se sentir ofendido na sua dignidade profissional. Dizendo com jeito para não se tornar agressão gratuita, o profissional deve se impor e se fazer respeitar.
Em outros momentos, outros dias, outra cerveja…, ele gostava de se gabar da sua esperteza e capacidade de negociar.
Eram algumas histórias e exemplos de como lidava, por exemplo, com trabalhadores que faziam serviços no seu consultório ou apartamento.
Nessas horas, o meu desconforto.
“Ah, comigo não é como eles querem não. Ou o preço vem pra o que eu quero ou não tem negócio”.
Um desses momentos me levou à irritação e total reprovação, que só a amizade de então me fez ficar calado.
Aliás, hoje reconheço que algumas vezes fiquei calado quando não devia.
Ele estava na praia e se aproximou um senhor vendendo redes, daquelas que no Nordeste são muito utilizadas.
– Que absurdo, cê tá maluco? Acha que vou pagar isso por uma rede?
– Não, doutor, mas isso aqui é rede de primeira, veja a qualidade…
– Não pago de jeito nenhum!
O diálogo era sempre nesse tom, até que o pobre coitado se rendesse e aceitasse o preço bem abaixo do inicial, dado por ele, o esperto negociador.
Aconteceu assim também com o vendedor de redes.
Meu Deus!!!
Onde estavam o reconhecimento e a valorização da dignidade profissional, tão bem defendidos por ele no seu consultório?
Ou aquele vendedor de redes não é um profissional?
Se é, não é indigno e humilhante desfazer-se dele e do seu produto?
Ou profissional é só aquele que é profissional liberal, um doutor?
Perceba as duas relações.
O paciente de um consultório e o doutor. Quem é o senhor da situação?
Mesmo que o paciente também seja outro doutor, a “autoridade” naquele instante é o profissional que presta o serviço.
E entre um vendedor de redes e o cliente, a quem muitas vezes o próprio vendedor, na sua humildade, chama de doutor mesmo não sendo?
Alguém aí conhece alguma praia do Nordeste?
Conhece aquele sol escaldante e consegue imaginar o que é um homem caminhar sob ele, na areia quente, carregando diversas redes para tentar vender?
Consegue imaginar o esforço físico que isso exige?
Qual será o peso do que carrega?
E aí encontra um esperto negociador que, aos goles de uma cerveja gelada e um tira gosto delicioso, resolve lhe “tirar o couro”.
“Comprei a rede por um preço bem baratinho”.
Este foi o comentário ao final da narrativa do pigmeu que venceu o gigante que, depois de trabalhar toda a semana, vai às praias nos finais de semana vender redes para complementar o sustento da família.
A caridade redentora
E o pigmeu acha que se redime quando diz “escolha o alimento que precisa que eu compro”.
Só se for perante si mesmo.
Perdemos a noção do que é dignidade, principalmente quando se trata da dos outros.
E saímos por aí exibindo a caridade seletiva que nos redime.
“Parecer ser ou não, eis a questão”.
Diria Hamlet nos tempos de redes sociais.
Ah, como são propícios os tempos atuais!
Onde está a consciência que nunca tivemos dos problemas sociais?
Questões sociais não são problemas do indivíduo.
Não sou eu, não é você, não é ninguém que vai resolver questões como as de alguém que pede o pão para comer na porta de um supermercado.
Não são gestos desse tipo de quem quer que seja que irão “resolver” a vida dessas pessoas.
Questões sociais são problemas do indivíduo, aí sim, quando este está inserido no contexto social.
Problemas desse tipo, educação, saúde…, questões de grande complexidade, são atribuições da sociedade (coletivo de indivíduos) através de ações sociais do Estado.
Pedintes em sinais de trânsito representam uma dessas mazelas.
Crianças vendendo balas, doces, todo tipo de coisas, pelas ruas das “grandes” cidades são a face mais cruel e covarde desse processo.
São os Programas Sociais que devem enfrentar questões tão complexas, não a bala que você compra num sinal de trânsito ou o pacote de feijão no supermercado.
E por favor, não fale de solidariedade humana, bla, bla, bla, bla…
Não faça pouco da inteligência e sensibilidade de quem tem. Não se trata disso.
Somente a indigência intelectual nos redime quando imaginamos que atitudes pequenas e esporádicas podem suprir as necessidades básicas de alguém.
Só os medíocres pensam assim.
Todos os medidores sociais já apontavam para a redução desse quadro perverso.
Órgãos oficiais internacionais já destacavam e premiavam o Brasil pela saída do mapa da fome.
O Brasil já tinha inserido nas suas leis que percentuais (que chegavam a 15%) do que se lucrasse com o Pré-Sal seriam destinados para Saúde e Educação.
Insisto, isso já era lei.
Mas tudo está se perdendo.
O Pré-Sal está indo embora para mãos que não são brasileiras.
Os primeiros indicadores já começam a apontar para a volta do Brasil ao mapa da fome.
Muitas coisas nesse sentido já aconteceram, estão acontecendo e outras ainda irão acontecer.
Mas vamos a outro fato mais recente e que também já era previsto; professores estão sendo demitidos em larga escala sob os mais diversos e absurdos argumentos.
E aí vem você, professor, e se torna um dos vetores de divulgação de vídeos como esse abaixo nas redes sociais!
https://www.youtube.com/watch?v=U951-6cktrs
Quem produziu esse vídeo?
Quem é esse “garoto de rua” que filosofa em voz alta sobre a vida no início do vídeo falando um português tão correto, com pronúncia e dicção perfeitas de todas as sílabas (quando inúmeras pessoas escolarizadas não conseguem), com entonação de voz digna de um pequeno ator de novelas?
Quem fez o vídeo com câmeras posicionadas em pontos diferentes e microfone escondido?
Qual é o objetivo do vídeo? Comover as pessoas com o espírito do Natal?
Mas dessa forma!!! Recriando uma situação dramática e cotidiana das “grandes” cidades brasileiras de forma tão inverossímil?
Há por acaso algum erro na reação dos motoristas abordados no vídeo?
Você, doutor, por acaso abre o vidro do seu carro numa boa e atende com toda a atenção do mundo os que lhe abordam nos sinais de trânsito?
Sinto muito em lhe dizer que o vídeo em nenhum momento me tocou. Eu, que facilmente chego às lágrimas.
A pobreza dele, apesar de grande, traz consigo uma falsa realidade que é muito pequena diante da verdadeira e principal questão, da qual os idealizadores, como convém, passaram a quilômetros de distância.
E sabe qual é, doutor?
É que na vida real, a que não tem vídeos glamourizados, os sinais de trânsito voltarão a ficar cada vez mais cheios de garotos de rua (sem aspas) vendendo picolés e não dando como mostra o vídeo.
Não há filosofia barata que os faça dar picolés de graça nos sinais de trânsito, por uma razão bem simples. Eles precisam vender para levar algum pra casa, porque os pais estão desempregados e fazendo bico para sobreviver.
Quer saber mais, doutor?
Os vidros dos carros não serão abertos.
Você faz alguma ideia da razão disso?
Vou lhe ajudar, mas talvez seja melhor nem ler porque acho que não vai gostar.
Porque muitos daqueles que foram abordados por esse “garoto de rua” e milhares de muitos outros ajudaram a instalar um governo que, como eles, não tem a menor preocupação com o social.
Com a sua participação direta ou indireta ajudaram a gerar os milhões de desempregados que existem hoje no país.
E sem o seu trabalho
O homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata
Não dá pra ser feliz
Gonzaguinha
Quantos mais terão contribuído com seu “embrasileiramento CBFiano dominical” para o país chegar ao ponto que chegou?
Ou será que acham que nada têm a ver com isso?
Para onde irão esses desempregados?
Alguns irão para os semáforos.
Outros para…
Arrepia só de pensar.
Vídeos como esse e o objetivo para o qual são criados alcançam a hipocrisia da sociedade lá no fundo, nos recônditos da alma, onde ela, hipocrisia, descansa resguardada.
Até quando seremos tão… ingênuos?
“Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista.”
Esta frase é de D. Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, um homem admirado e respeitado no mundo todo.
O outrora amigo e esperto negociador não tem a menor ideia do que isso significa e também do que representam homens como D. Hélder Câmara.
É triste, muito triste, ver que boa parte da sociedade brasileira, particularmente segmentos como a classe média, tenha perdido a capacidade de perceber coisas tão óbvias.
Justamente ela, classe média, em cujos ombros recaem as consequências mais drásticas do empobrecimento do país.
Ainda pior do que isso, não percebe o risco que hoje corre o mundo, por causa da luta de homens como D. Hélder e sua grande obra humanitária.
Um deles?
O Papa Francisco.
Temos finalmente um grande homem como Papa, que cumpre os ensinamentos de Cristo e que nos faz pensar cada vez mais em outros como São Francisco.
E o que ocorre?
Em outubro deste ano, o jornal inglês “The Guardian” publicou uma reportagem de Andrew Brown, The war against Pope Francis (A guerra contra o Papa Francisco), que traz coisas assustadoras.
Veja um pequeno trecho do que diz Andrew Brown logo no começo da sua matéria.
“O Papa Francisco é atualmente um dos homens mais odiados do mundo… Neste verão, um proeminente clérigo inglês me disse: ‘Mal podemos esperar que ele morra. É impublicável o que dizemos dele em privado…”
E o que diz e faz o Papa Francisco?
Tudo que Jesus Cristo disse e fez na Terra.
Ora, não acabamos de festejar justamente o dia do nascimento de Cristo?
O que é o famoso espírito de Natal se não o de amor e solidariedade entre as pessoas!
Ou será que é somente entre as privilegiadas?
Por falar nisso.
Espero que você tenha tido um Feliz Natal.
E que tenha dentro de si esse espírito de solidariedade a todas as pessoas durante todos os dias.