Baile obsceno

Mancini

Por Ronaldo Souza

Quando eu era ainda muito jovem, nos meus 18 anos, França Teixeira era o radialista esportivo mais famoso e festejado de Salvador.

Era muito inteligente, sagaz e dono de humor sarcástico e ferino. Com virtudes e defeitos, como qualquer um de nós, era de fato uma personalidade do nosso futebol.

Sempre que se reportava ao Tribunal de Justiça Desportiva da Bahia (TJD-BA), fazia-o com cuidados e elogios.

Contribuiu assim para que eu crescesse nutrindo respeito pelos membros dos tribunais de um modo geral.

Somente anos depois, quando aprendi a ouvir e ler o que não é dito nem escrito, as entrelinhas, entendi melhor o significado das palavras de França Teixeira.

Mesmo reconhecendo que cenas como as que foram vistas agradam a parte considerável da torcida, o último Ba-Vi deixará marcas negativas para o futebol da Bahia.

Por razões diversas, é compreensível a satisfação pessoal que podem gerar aquelas cenas a alguns, mas daí a serem aplaudidas vai uma diferença enorme.

Já tive oportunidade de dizer em outro texto que não foi o Ba-Vi, mas sim o Vi, o grande responsável pelo ocorrido, algo facilmente comprovável.

Não poderiam deixar de chamar a atenção a agressividade de jogadores como Kanu e Denilson, pelo Vitória, e a ostensiva reação de Edson, do Bahia.

No entanto, o grande destaque vai para os obscenos Yago e Rhayner, pela covardia demonstrada.

Ainda no tocante à briga, merece louvor a postura de vários jogadores como André Lima, Kaike e outros pelo rubro-negro e Lucas Fonseca, Nilton, Regis e outros pelo tricolor.

Pela contundência e confusão generalizada, a briga dos jogadores chamou a atenção de todo o Brasil, gerando os mais diversos comentários da imprensa local e nacional, todos exigindo punições severas.

Entretanto, para além das brigas, a cobrança mais forte e veemente de punição que ecoou Brasil afora foi no sentido das condições em que se deu o encerramento do jogo.

Foi consenso em todo o país a exigência por severa punição de quem teria orientado o término do jogo naquelas condições.

Ainda que inteiramente condenáveis, não são incomuns as brigas entre jogadores de futebol, ainda mais em clássicos como o Ba-Vi. Vide passado recente, um dos Ba-Vis do ano passado.

No entanto, a absurda orientação de provocar a expulsão de um atleta para, diante de número insuficiente de jogadores por parte de um dos times, promover o encerramento da partida, é simplesmente vergonhosa.

Recorre-se aqui à hipocrisia por não “ver” que não teria sido a primeira vez que um time abandona o jogo nas condições descritas e, quem sabe, não será a última?

De maneira nenhuma.

Mas essa atitude e a sua argumentação jamais poderão ser comparadas à briga de jogadores, mesmo com a contundência com que ocorreu, porque para esta pode-se argumentar com o calor do jogo, ânimos acirrados, o peso de um clássico…

Diferentemente, o encerramento do jogo da forma que aconteceu constitui prática antidesportiva vergonhosa sob todos os aspectos.

Ela nos atinge fortemente no que deve haver de mais sagrado para um povo que busca continuamente atingir o grau de desenvolvimento que o permita se ver como sociedade civilizada; a dignidade.

Como ficam os nossos filhos vendo aquilo?

Como aceitar e conviver com atitudes tão indecentes e pretender que a nossa juventude cresça saudável e digna?

De diferentes maneiras, foi obsceno o comportamento de Vagner Mancini.

A começar pela orientação que teria passado para Ramon para que Bruno Bispo provocasse o segundo cartão amarelo e a consequente expulsão.

Em seguida, a inútil tentativa de negar que teria dado essa orientação.

Na sequência, desafiar os repórteres a provarem a acusação de que ele teria feito aquilo, sob o argumento de que eles, repórteres, estavam lidando com ”pessoas do bem, de caráter, e em tom desafiador provocar; quem tiver a prova, que apresente.

Apresentaram.

Por leitura labial, cinco peritos comprovaram o que Mancini, estupidamente, tentou negar.

Inteiramente compreensível a sua alegria e o consequente abraço de comemoração com os advogados ao final do julgamento, mas fica uma enorme e indelével mancha no seu currículo, razão pela qual Mancini sai bem menor desse episódio.

Se foi realmente Mancini quem autorizou a expulsão, apesar das bobagens ditas a diretoria do clube não sofreria maiores consequências.

Caso contrário, ou seja, se, através do senhor Mário Silva, saiu dela a orientação para Mancini tomar aquela atitude, sai também desmoralizada.

Por outro lado, ainda que o tempo dissipe essa nuvem, a instituição Esporte Clube Vitória sai bastante prejudicada e terá essa grande mancha na sua história.

O que parece bastante improvável, no entanto, é que um garoto de 21 anos de idade, Bruno Bispo, jogando o seu primeiro Ba-Vi, cheio de sonhos, tenha idealizado e patrocinado sozinho aquela cena.

Creditar-lhe essa conta aponta para a covardia cometida contra ele.

Mas aí vem o que talvez represente o gesto mais significativo de toda a lambança.

O endosso de toda essa obscenidade.

A quem coube essa responsabilidade?

Para o bem do futebol brasileiro, particularmente do baiano, e em nome de toda a juventude desse país, imaginava-se que os homens da justiça desportiva puniriam exemplarmente os patrocinadores desse triste episódio.

Mas não foi isso que aconteceu.

Os jogadores, a parte mais fraca da corrente, bem ou mal foram punidos.

Punição que possivelmente será contornada com uma liminar que permitirá que joguem as partidas restantes do campeonato, aliás, prática recorrente no futebol.

Mas simplesmente resolveram ignorar todas as evidências que flagrantemente mostravam o acinte, o desrespeito e a má fé que revestiram o circo armado.

E o fizeram com argumentos inconsistentes e frágeis.

Foram nocauteados os princípios mais elementares não só do futebol, mas também daquilo que se espera de julgamentos de episódios que mancham indelevelmente a sociedade como um todo.

Nacionalmente, o futebol baiano sofre um grande prejuízo.

Internacionalmente, o futebol brasileiro também foi inegável e irreversivelmente atingido.

Mas, como sempre acontece, a história não guarda lugar para alguns homens.

A história, isso sim, terá um lugar reservado para esse julgamento do TJD-BA.

Lamenta-se que nesse caso não deverá ser dos mais honrosos.

Diante de toda essa obscenidade, a dança de Vinicius ganhou contornos de coisa de adolescente.

Todo o baile, não.

Esse foi obsceno.

Mesmo com sua esperteza e sagacidade, é muito pouco provável que hoje, se estivesse vivo, França Teixeira fosse capaz de fazer comentários que desconsiderassem o real significado de tudo que ocorreu.

Mesmo com todas as entrelinhas.