Por Ronaldo Souza
Nasci e lá vivi até os onze anos de idade.
Juazeiro (BA) era o meu universo.
A rua Antônio Pedro era a minha casa e a casa onde eu morava o local onde minha família se fazia família.
Foi lá, em Juazeiro, onde ouvi o Brasil ser campeão mundial de futebol em 1958 e 1962.
Foi em 1962 que poucos minutos após a final em que o Brasil se sagrara campeão, pelas mãos de meu pai fui às ruas. Ao ver homens vestidos com o uniforme da seleção brasileira, perguntei; pai, são os jogadores da seleção?
Você acha que existe um mundo melhor que esse, onde se misturam as desconhecidas fronteiras de sua cidade e a imaginação de uma criança?
Não, não existe.
Se a imaginação do homem não conhece fronteiras, imagine a da criança.
Era hora de crescer.
E parece que estava marcado assim na agenda de alguém, a quem eu poderia chamar de Deus.
Mas não era.
Era a agenda de meu pai.
Um homem que não tinha sequer o primário (como era chamado na época), mas que se alfabetizou num esforço absurdo (já com dois filhos), marcado pelo compromisso sem limites com o crescimento.
A sua companheira, minha mãe, que tinha primário completo, cumpria o papel que lhe tinha sido dado pelos tempos da raça humana.
E aquele tempo dizia que ela devia ser a fiel e inseparável companheira daquele homem, como assim foi até sua morte.
Na agenda de meu pai estava marcado que viajaríamos no começo de março de 1963.
Destino.
Salvador, a capital do estado.
Para morar lá.
Naquele tempo, dizer que ia morar na capital significava muita coisa, inclusive “status”.
Na cabeça de meu pai significava somente uma coisa.
Crescimento.
Era impressionante, uma sede inesgotável.
Entusiasmado por ir morar na capital, eu não percebia que deixava a parte final da infância para trás.
E, que minhas filhas não saibam, não há nada melhor do que a infância em Juazeiro.
Sei, sei, a sua também foi maravilhosa. Que bom.
Salvador
E vi o mundo surgir diante de mim.
As escolas em que meu pai e minha mãe me puseram no início me fizeram conhecer pessoas bem diferentes daquelas que faziam parte da minha vida até poucos meses atrás.
E a vida se apresentou com nova roupa.
Nas férias, porém, eu voltava a vestir a velha roupa. É que em todas, viajávamos para Juazeiro.
Inicialmente as viagens eram de trem.
Sim, já tivemos trens de passageiros também no Nordeste do Brasil, inclusive com vagões-restaurante e vagões-dormitório, um estilo europeu nos anos 1960-1970.
Eram simplesmente sensacionais, principalmente quando nos aproximávamos de Juazeiro, quando o trem fazia as paradas obrigatórias em cada uma daquelas cidades.
Na verdade, pequenos vilarejos, que se apresentavam às janelas do trem com seus doces, cocadas, brinquedos, rapaduras, roupas, frutas típicas…
Eram “cidades” que paravam e se transferiam para a estação de trem para vender os seus produtos a aqueles afortunados viajantes e conhecedores do mundo, que se encantavam por poder comprar “coisas” que sempre fizeram parte das suas vidas
Quem aí assistiu “Amarcord”, de Fellini?
Lembra da cidade que uma vez por ano parava e se arrumava toda, todos vestiam sua melhor roupa para ver passar, lá ao longe, um transatlântico de viagens de turismo, todo iluminado, num contraste lindo e absurdo onde todos os sonhos e desejos são possíveis?
Meu Deus, como é linda aquela cena!
Devia ser assim para o povo daquelas cidades.
Só que, diferentemente do transatlântico de Fellini, um sonho inalcançável, o trem era algo mais palpável e que ajudava na renda deles.
Mas hoje me permito imaginar o quanto cada um deles deve ter sonhado em um dia fazer aquela viagem no “meu” transatlântico.
O futuro
Quarenta anos depois da minha chegada a Salvador, viajei para dar um curso numa cidade do interior da Bahia.
Tinha acabado de lançar o meu livro.
Algo me dizia que eu jamais estaria pleno se não o lançasse também naquela cidade.
Juazeiro.
Fui de carro.
Eu, minha mulher e nossas duas filhas.
Não poderia ser uma viagem comum.
E não foi.
Era 2003.
Lula tinha sido eleito presidente do Brasil no final do ano anterior.
Aquelas casas, aquelas pessoas, aqueles mesmos vilarejos, que me diziam coisas importantes da minha vida agora eram importantes para a minha vida.
Compreender tudo aquilo era fundamental.
Aquelas pessoas que esperavam o “transatlântico” da linha férrea para viver um dia especial, agora viviam sob o céu das antenas de televisão.
A vida diminuíra de tamanho.
Eram outros os horizontes.
A televisão chegara já há algum tempo e ocupava agora o lugar mais importante da casa.
E com sua sedução, seus encantos, sua magia, a ilusão na medida certa, transformava a vida daquelas pessoas.
Como um ópio, a felicidade agora vinha de fora.
Muita coisa tinha mudado.
E muita coisa ia mudar mais ainda.