Da série Histórias que precisam ser contadas. E serão
Por Ronaldo Souza
Este é o final deste texto, que foi dividido em 4 partes.
Sugiro que você leia as primeiras partes antes de ler esta, para entender melhor as razões pelas quais ele foi escrito (1ª parte aqui, 2ª parte aqui e 3ª parte aqui) ou leia novamente (se já leu), até pelo tempo em que foram escritas e postadas.
Como disse no final do texto anterior, deixei a publicação do artigo de lado, tratei de “esquecer”.
Não posso pautar a vida por episódios como esse.
Apesar do “desapontamento” com todo o episódio e a não publicação, apesar da importância da Endodontia e do que ela representa para mim, há algo maior, bem maior.
E é na direção desse algo maior que está focada a minha vida.
Já disse aqui que o encontro marcado que tenho é comigo mesmo e para mim o que mais importa é o caminho que tenho que seguir para chegar lá e, ao final de tudo, bater um bom papo comigo mesmo.
Era 2012.
A publicação daquele artigo ficaria para um dia qualquer.
Ou, quem sabe, para nunca mais.
Ocorre que ao final do dia 20 de junho de 2017, cinco anos depois, pouco antes da meia noite, cansado, resolvi ler um artigo que estava guardado me esperando.
Ao ler, vi que ali estava algo que refletia o que eu já pensava há muito tempo, só que agora escrito por alguém que conhece muito bem o assunto.
Depois de ler, fui dormir.
A mente, porém, inquieta, não estava mais ali, estava longe, viajando.
Viagem que uma vez iniciada não se sabe quando termina.
São as viagens da imaginação, à qual, segundo o comercial de uma bebida energética, deve-se dar asas.
A imaginação não deveria precisar de artifícios químicos para ganhar asas.
Às 02:30 da madrugada de 21 de junho eu ainda não tinha conseguido dormir.
A viagem se tornara longa.
Contei com o cansaço.
Ele veio.
Dormi.
Mas não por muito tempo.
Às 06:00 já estava enviando o artigo para dois grandes amigos, os professores Pécora e Figueiredo, dizendo; vejam que artigo interessante.
O título é “A miopia dos indicadores bibliométricos”, da professora Lilian Nassi-Calò.
Escrevi o texto “Qual é o nosso real tamanho?” e postei junto com ele. Se desejar, clique aqui, leia os dois com atenção e depois volte.
Trago alguns trechos dele:
“Isso levou os autores a concluir que o sistema atual de avaliação da pesquisa subestima trabalhos que possivelmente terão alto impacto na avaliação em longo prazo. É importante também ressaltar que artigos que se revelaram de alto impacto no decorrer do tempo foram publicados em periódicos de menor FI”.
“Quanto mais estamos ligados a indicadores bibliométricos de curto prazo, mais longe estamos de recompensar a pesquisa com alto potencial de ir além das fronteiras – e aqueles que o fazem”.
“Deveria causar surpresa o fato de que o uso de um indicador torne elegível um ou outro autor pelo fato de que tenha publicado em um periódico de FI mais alto, de que é mais importante saber onde ele publicou do que ler seu trabalho”.
“Se realmente a comunidade acadêmica deseja criar avaliações mais objetivas, todos aqueles envolvidos – desde pesquisadores em início de carreira até os presidentes das agências de fomento – devem usar indicadores qualitativos e quantitativos de forma responsável […] de forma a evitar o uso de indicadores que penalize os pesquisadores e projetos que tem o maior potencial para romper fronteiras”.
Fronteiras.
Talvez seja essa a grande questão.
Quantos trabalhos nos últimos tempos romperam as fronteiras do saber na Endodontia e, sobretudo, as da imaginação?
Aliás, quantos trabalhos mexeram com a imaginação nos últimos tempos na Endodontia?
Perdemos a noção de que bem antes do saber, na mesma rua mora a imaginação.
“A imaginação é mais importante do que o conhecimento”.
Einstein
Mesmo sendo Einstein, e acho que só mesmo ele para dizer algo assim, imagino o desconforto que essa frase gerou nos meios acadêmicos, tão doutores são os seus doutores!
Direto ao assunto
Agora, numa linguagem bem simples, bem ao estilo que adoto aqui no site, vamos direto ao assunto.
Quem deve ser fator de impacto, o periódico ou o artigo?
Quem quebra as barreiras?
Quem derruba os paradigmas?
O editor/revisor ou o autor?
Quem canta mais afinado, o urubu ou o sabiá?
Aliás, urubu canta?
Deixemos de lado as distorções e inversões e caminhemos.
De preferência, cantando como um sabiá.
Fiz este questionamento no texto anterior:
Uma vez que uma hipótese é levantada, a partir daí é que são efetuadas as etapas que construirão as evidências.
Como podem estas existirem se a simples possibilidade de discussão é negada desde o início por professores engessados que não aceitam o que lhes contradiz?
Não, não vou procurar saber onde estão a inteligência e o bom senso desse tipo de professor.
A construção de uma linha de raciocínio que se opõe ao estabelecido tende a criar muitos questionamentos. A possibilidade de uma nova concepção gera rejeições, às vezes fortes, que podem surgir por diversas razões.
É compreensível a resistência que se oferece diante do desconhecido, mas negar a discussão não parece combinar com a tão enaltecida nobre missão do professor.
No primeiro texto deste tema, eu disse; Soltei então todas as rédeas que poderiam conter a minha intuição, deixei o bom senso me conduzir por onde ele bem entendesse e liberei todas as asas da minha imaginação.
Acompanhe comigo o caso clínico abaixo. Todos os canais do primeiro molar inferior esquerdo serão retratados, mas vamos destacar os canais mesiais, onde há um instrumento fraturado no terço apical.
A seta preta em A mostra o final da obturação, que não está bem feita. As setas brancas apontam para a lesão periapical. Observe como na radiografia da imagem em B (2 anos e oito meses depois), a obturação está bem “pior”, com grande espaço vazio que não existia (seta amarela) e as setas brancas mostram que a lesão periapical aumentou consideravelmente de tamanho. O instrumento fraturado aparece agora bem destacado.
De acordo com a literatura endodôntica, estes são indícios claros de que, por não ter sido possível fazer o travamento do cone de guta percha por causa do instrumento fraturado, não houve vedamento hermético. Não havendo vedamento hermético, ocorreu infiltração de fluidos teciduais e por isso a parte solúvel da obturação, o cimento, foi solubilizado e “desapareceu” do canal. Por essa razão, a obturação agora se mostra com muito mais falhas na imagem radiográfica. Pela mesma razão, a lesão periapical teria aumentado (setas brancas em B).
Em C já estou ultrapassando o instrumento fraturado com uma lima 08 para fazer a instrumentação do canal cementário, o que pode ser observado melhor em D, graças ao zoom da porção final da raiz.
Devo fazer a ressalva de que após a instrumentação dos canais foi feita medicação intracanal com hidróxido de cálcio, como faço e preconizo em todos os casos de lesão periapical.
Em E está sendo feita a prova dos cones de guta percha para a obturação. Perceba que os cones dos canais mesiais “alcançam” o instrumento fraturado. Na verdade vão um pouco além e se posicionam ao lado, no início da fratura (seta preta). Ali, juntamente com o cimento, poderia promover um bom selamento, ainda que prejudicado pela presença do instrumento fraturado. No entanto, intencionalmente, a obturação não será feita naquele limite, mas nos limites apontados pela seta amarela em F.
Por que fiz isso?
Se a literatura diz que o fracasso do tratamento endodôntico se deve à infiltração de fluidos teciduais nos espaços vazios deixados pelas falhas da obturação e a consequente ausência de vedamento hermético (figuras A e B), resolvi “convidar” os fluidos a penetrarem no canal. Se essa é a questão, não há nenhuma chance de reparo, pois agora o espaço vazio intencionalmente deixado é muito maior, quando comparado ao da figura A (seta preta).
Compare a imagem da figura G (dia em que os canais foram obturados) com a imagem da radiografia de acompanhamento de 2 anos depois (H). Não pode haver dúvidas quanto ao reparo da lesão periapical.
Quanto a essa abordagem do caso clínico apresentado acima, deixemos bem claro o seguinte.
Não estou propondo obturações desse tipo. A obturação precisa, deve e tem que ser feita com os mesmos cuidados de sempre e não será aqui que esgotaremos esse assunto. Trata-se simplesmente de chamar a atenção para vários aspectos do tratamento endodôntico, entre os quais estão:
- Travamento do cone de guta percha não é sinônimo de vedamento hermético
- Vedamento hermético proporcionado pela obturação, qualquer que seja a técnica, não existe
- A obturação não é o fator determinante do reparo
O fator determinante do reparo em Endodontia é o preparo do canal
Certamente, muitas dúvidas ficarão no ar.
É inevitável e ao mesmo tempo intencional.
Pretendo fazer com que você reflita sobre a Endodontia. É a única maneira de se fortalecer e não se deixar enganar por tanta coisa que estão “ensinando” por aí.
Aqui pra nós, que ninguém nos ouça; faz algum sentido falar nessa bobagem que chamam de surplus?
Como já escrevi aqui, “surplus” é embuste em inglês.
Faz algum sentido fazer obturações como essas que você vê abaixo e, pior ainda, ensinar a fazer isso?
Não pode existir tolice maior do que isso.
Onde podemos enquadrar essa maneira de fazer Endodontia?
No mais absurdo descompromisso com as coisas sérias ou no desconhecimento dos princípios mais elementares das ciências médicas?
Ou nos dois?
Não tenho nenhuma dúvida de que voltaremos a esse tema muitas outras vezes, mas termina aqui a série que chamei de “A história de um trabalho”.
Termina com a recente publicação do trabalho relatado nesses ‘4 capítulos’ de “A história de um trabalho”
O caso clínico apresentado e outros foram publicados agora em maio de 2018, no Endodontic Practice.
São 20 casos clínicos, dos quais 10 são apresentados no artigo.
Como falei, são todos do meu consultório, realizados entre 1987 e 1996 (10 anos), com tempo de acompanhamento de até 21 anos e com tomografia de alguns deles. O último acompanhamento foi feito em 2008.
Quando vi o material que tinha nas mãos (aí já era professor), resolvi que um dia sentaria para escrever sobre ele.
Sem pressa, como também já falei, só comecei a escrever enter 2010-2011 e se desenrolou então toda essa “história” que contei aqui.
Por tudo que relatei, no final do ano passado resolvi voltar a “pensar” na publicação.
Dei a ela um novo rumo e aí escolhi o Endodontic Practice, uma revista inglesa bem clínica.
Achei que devia contar a você.
Em virtude do que tenho visto ultimamente, essa conversa certamente não morre aqui.