Cumprindo metas
Por Ronaldo Souza
Não há um título no texto abaixo de Silvana Tuleski.
Fui eu que coloquei “Macdonaldização da Escola”, mas ressalvo que a expressão foi retirada do próprio texto, como você verá.
Trata-se de um editorial de “Psicologia em Estudo”, periódico do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
É um artigo muito interessante que trata de uma grave distorção do ensino brasileiro atual, da qual poucos conseguem escapar.
Nesse cenário, o professor se acomoda e cumpre a função de “ensinador”. Não mais uma presença marcante e definidora de rumos, mas um vulto.
Também ele está em busca de resultados.
Ele agora tem metas e interesses bem definidos.
Assim todos se veem produzindo, num “enorme campeonato, no qual o indivíduo mais produtivo na lanchonete recebe prêmios que vão desde o quadro com a fotografia destacado na parede até…”, como define Silvana Tuleski.
Leia e reflita.
Vale a pena.
—————–
Macdonaldização da Escola
Por Silvana Tuleski
A árvore que não dá fruto
É xingada de estéril.
Quem examinou o solo?
O galho que quebra
É xingado de podre, mas
Não haveria neve sobre ele?
Do rio que tudo arrasta
Se diz que é violento
Ninguém diz violentas
As margens que o cerceiam.
(Bertold Brecht).
A partir do poema de Brecht percebemos que lidar com a palavra é sempre uma arte, podemos dizer que é a arte de tecer significados. Por exemplo, quando tomamos a palavra “ilusão” e verificamos no dicionário seu significado, encontramos as seguintes definições: 1. Engano dos sentidos ou da mente, que faz tomar uma coisa por outra; 2. Sonho, devaneio. Por outro lado, quando tomamos a palavra “óptica” temos as seguintes definições: 1. Parte da física que trata da luz e da visão; 2. Casa onde se vendem e/ou fabricam instrumentos ópticos; 3. Maneira de ver, de julgar, de sentir. Quando, por outro lado, unimos as duas palavras na expressão “ilusão de óptica”, poderíamos combinar e recombinar tais significados, pensando que se trata de uma “enganação dos sentidos ou da percepção visual”, ou talvez um “olhar que se satisfaz somente com a aparência das coisas”? No primeiro significado da expressão podemos pensar no objeto de investigação da Física, da Medicina em uma de suas especialidades como a Oftalmologia, e no segundo significado podemos adentrar o mundo das ciências humanas, como as Ciências Sociais, a Psicologia e outras.
Não obstante, para tecermos os significados, como para qualquer tecelão, é necessário o instrumento real, objetivo e concreto, que pode ser desde o tear mais simples até a máquina mais moderna. No caso do escritor o instrumento é a língua, que também pode ser trabalhada do modo mais simples, cotidiano, até o mais complexo e científico; mas, tal como para o tecelão, além do instrumento, que é o meio para se efetivar o trabalho, fundamental é também a matéria-prima. O fio do tecelão é, pois, para o escritor cotidiano, literário ou científico, o tema ou assunto a ser tratado.
No número atual da revista Psicologia em Estudo, diversos escritores (ou tecelões de ideias?) nos oferecem suas contribuições, a partir de várias abordagens teóricas, para que reflitamos sobre os problemas humanos tangentes à Psicologia, seja na esfera da saúde física e mental, das relações familiares atuais e suas contradições e da religiosidade humana, seja no tocante às condições e relações – saudáveis ou não – das configurações do trabalho em tempos de produtivismo. Outros, por sua vez, hão de conduzir-nos a conhecer áreas novas e emergentes na Psicologia, como, por exemplo, a voltada ao esporte, ou nos possibilitarão a análise de dispositivos como a imagem digital e seu impacto sobre a subjetividade.
Desta forma, tanto o escritor científico quanto o literário elegem um tema que corresponda a uma realidade e que, ao ser tratado em prosa, em verso ou de acordo com as normas científicas, como os aqui socializados, busca (des)velar esta realidade. Para Marx 1 (1985, p.271), por exemplo, “(…) toda ciência seria supérflua se a forma de aparecimento e a essência das coisas coincidissem imediatamente”; portanto, para ele, à ciência cumpre a função de ir além da “enganação dos sentidos”, ou o bom cientista é aquele que não se satisfaz com a aparência das coisas, e é nisto que ele se diferencia dos que se limitam a conhecer as coisas do cotidiano ou do senso comum. E ir além da aparência exige tempo para a investigação, reflexão e problematização, pois requer aprofundamento.
Em um texto de Pablo Gentili que li recentemente, denominado “Neoliberalismo e Educação: manual do usuário” 2 , o autor retrata o impacto do neoliberalismo na educação e utiliza um termo que considero interessante para uma reflexão que vá além da aparência dos fenômenos que nos impactam na atualidade: a crescente “macdonaldização da escola”. Ele nos explica que o ponto fulcral deste processo está no fato de as instituições educacionais estarem sendo reorganizadas a partir do modelo e padrão produtivista e empresarial. Em suma, a mercadoria a ser oferecida nestas instituições, tal como nas lanchonetes de fast food deve ser produzida o mais rápido possível e de acordo com normas rigorosas de controle, eficiência e produtividade. Tudo é pensado como um enorme campeonato, no qual o indivíduo mais produtivo na lanchonete recebe prêmios que vão desde o quadro com a fotografia destacado na parede até valores em dinheiro.
Gentili (2010) nos aponta que os fast foods surgiram para atender à demanda desta sociedade moderna pós-industrial, em que todos correm “muito”, estão sempre fora de casa e sem tempo para nada. A migração desta estrutura e dinâmica para a educação em todos os níveis e para a pesquisa científica determina o “fazer mais em menos tempo” em detrimento da qualidade e da “capacidade digestiva”, isto é, da capacidade de refletir e problematizar. Tem-se somente a “ilusão de óptica” de que se está produzindo e consumindo mais, mas não se observa que tal produção e consumo nem sempre representam o melhor. Quantitativamente, talvez estejamos alcançando o hanking nacional (ou internacional?), mas no aspecto qualitativo não recebemos, ainda, no Brasil, nenhum prêmio Nobel 3 , cuja outorga não se respalda na quantidade de pesquisas ou artigos disponibilizados em indexadores. Parece-me que estamos buscando mais a fotografia na parede que nos ateste a competência quantitativa do funcionário do mês, com pouca reflexão sobre os caminhos que estão sendo trilhados pelos pensadores brasileiros. Se deixarmos de ser os tecelões de ideias para revelar as mazelas do mundo, sucumbiremos, também nós, à “macdonaldização” da ciência?
Odeio os indiferentes.
Acredito que viver significa tomar partido.
Indiferença é apatia, parasitismo, covardia.
Não é vida.
Por isso, abomino os indiferentes.
Desprezo os indiferentes, também,
porque provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes.
Vivo, sou militante.
Por isso, detesto quem não toma partido.
Odeio os indiferentes
(Antonio Gramsci)
———————————-
1 MARX, Karl. Manuscritos Economia y Filosofia. Madri: Editorial Alianza, 11º Ed., 1985.
2 Publicado em Escola e desigualdade Social – APPSindicato/UFPR, Caderno I, projeto 2010/2012, Eixo I – Ano 2010.
3 A indicação ao prêmio Nobel de Medicina ocorreu pelo menos duas vezes para o brasileiro Carlos Chagas, em 1913 e 1921, mas não se concretizou. Disponível em http://www.iesc.ufrj.br/csc/2009_4/artigos/SeEspecial_2.pdf
———————————-
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 2, p. 233-234, abr./jun. 2010