Quebrando a minha resistência

A imagem confunde

Por Ronaldo Souza

Durante todos esses anos evitei trazer determinados artigos para o “feicibuqui”.

A convicção de que os eleitores de Aécio Bolsonaro não conseguiriam entender sempre me fez ver que não valia a pena traze-los. De modo geral eles apresentam grande dificuldade para ler qualquer coisa que tenha mais do que cinco linhas.

Observo há algum tempo, por exemplo, que quando ponho textos mais simples e diretos eles ficam mais excitados e aí fazem aqueles belos comentários – idiota; você é um idiota; você também é corrupto; quanta bobagem – e outras coisas assim que exigem grande esforço mental.

Contra argumentação que é bom, nem pensar! Não se pode exigir tanto.

Um já chegou a perguntar quanto eu estava recebendo para escrever e outro disse que não aguentava mais ler meus textos.

Sensacional, não é mesmo?

Cheguei a me imaginar como alguém que escreve tão bem que as pessoas, mesmo odiando, não conseguem ficar sem ler.

Mas eu os entendo.

Exercícios diários de extremo esforço para entender melhor o mundo no qual vivem me fizeram compreende-los melhor. Pelo menos a cada noite durmo com essa convicção.

Não nego, eu próprio melhorei e me tornei mais tolerante com eles.

Sempre resisti em postar textos mais elaborados, mais sutis, entre eles, os de Janio de Freitas, da Folha de São Paulo.

Janio, um dos jornalistas mais importantes do Brasil, é dono de um texto mais elaborado e normalmente sutil, razão pela qual são grandes os riscos de que não seja entendido pelos sem noção.

Se muito, devo ter postado uns dois textos dele.

Dessa vez, não.

Acredito que, buscando ser compreendido pelos eleitores de Aécio Bolsonaro, Janio foi, como sempre, elegante (não tem quem faça ele baixar o nível), mas, sobretudo, simples e direto.

Temo ainda pela compreensão de muitos, mas aí, paciência. Para esses, o jeito mesmo é continuar lendo Augusto Nunes, Merval Pereira, Joice Hasselmann…

Vamos ao texto, mas depois dele volto para falar com você.

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Bolsonaro e a Folha

Jair Bolsonaro não se conforma em ver na Folha textos que não lhe convêm. Tamanha é a sua consideração pelo jornal que reage com insultos, trata mal gente da casa, adverte que prejudicará a empresa, quando dos seus desagrados. Vê-se que é uma distinção exclusiva, e dessas que não se tem como agradecer nem corresponder. Mas é ainda mais rica a sua reação à importante e bem realizada reportagem de Thais Bilenky, baseada na observação de que, “pela primeira vez na história da República”, um presidente se empossará “sem nenhum representante” do Nordeste e do Norte “no primeiro escalão” do novo governo.

Primeiro, o Bolsonaro convencional: “A Folha de S.Paulo continua a fazer um jornalismo sujo e baixo nível”. E assim segue, esperando convencer de que fez “escolhas técnicas”. O que, mesmo se verdadeiro, não impediria a escolha de técnicos capazes e representativos das regiões que compõem cerca de metade do país.

Desta vez apareceu o segundo Bolsonaro, já sacando uma pretensa resposta técnica do seu governo: “Ainda em janeiro” o governo vai “construir instalação piloto para retirar água salobra do poço, dessalinizar, armazenar e distribuir” no Nordeste. Tudo a jato, porque será no mesmo janeiro a ida do ministro da Ciência e Tecnologia a Israel, ainda para procurar parcerias e a tecnologia necessária.

Está claro que Bolsonaro ignora o indispensável sobre a sua solução técnica. O interesse pela dessalinização vem de longe também no Brasil. A tecnologia não é problema. Suas modalidades são conhecidas aqui, já foram testadas, técnicos para aplicá-las não faltariam. Caso alguma dessas modalidades se mostrasse suportável financeiramente. Nem são as instalações, que custam uma só vez. O custo operacional é muito alto e permanente, em descompasso com as condições socioeconômicas da região.

Outras soluções para as dificuldades prementes dos nordestinos são consideradas preferíveis. Prova disso, e sem excluir a continuidade dos estudos de dessalinização, é o feito da ministra Thereza Campello no governo Dilma, já citado aqui mais de uma vez: em torno de um milhão —sim, um milhão— de cisternas familiares instaladas, eficiência rara em qualquer setor brasileiro em qualquer tempo. E, de pasmar, sem nem sequer um arremedo de escândalo.

Israel vale-se da dessalinização, sim. Mas conta com um suporte financeiro sem igual no mundo. Tem a contribuição segura, regular e fartamente generosa de judeus em numerosos países, além da colaboração múltipla dos Estados Unidos, por sua aliança. O Brasil, sem enganações convenientes aos da riqueza especulativa e não produtiva, está destroçado, desacreditado e sem dinheiro até para alimentar os sinais de vida.

Bolsonaro diz, por escrito, que os repórteres da Folha “vão quebrar a cara!” Se ele não quebrar a sua e o Brasil, com seus propósitos desatinados, não faz mal.

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De volta.

“…pela primeira vez na história da República”, um presidente se empossará “sem nenhum representante” do Nordeste e do Norte “no primeiro escalão” do novo governo.

A respeito dessa questão, só há o que lamentar pelo lamentável posicionamento de alguns nordestinos nos últimos tempos. Falarei sobre isso um dia, espero que em breve.

Sobre a questão da dessalinização, observe que Bolsonaro fará o país gastar milhões de dólares pelo projeto de Israel (interesse dos Estados Unidos), algo em que o Brasil já investe com sucesso desde 2004 em vários estados do Nordeste, Norte e em Minas Gerais.

Do jeito que as coisas andam, é possível que alguma mente débil queira comparar os dois modus operandi (de Brasil e Israel) para conseguir a dessalinização, desejando atribuir vantagens ao de Israel.

Tratar-se-á (como diria Michel Temer) tão somente de comparação vazia de algum cérebro disfuncional.

Nada mais.

Pelo menos em parte, Janio de Freitas derruba essa comparação tola argumentando com o alto custo de manutenção do projeto de Israel.

Especialistas usam o mesmo argumento.

Aliado de primeira linha dos Estados Unidos, uma das razões pelas quais o presidente eleito demonstra tanto empenho pelo projeto, dinheiro não é problema para Israel.

E as empresas israelenses vão faturar bonito.

Além da grande ignorância do governo eleito, que desconhece o país e o povo que vai governar, e de outros interesses, existem outros aspectos.

Criado pelo Ministério do Meio Ambiente na gestão do ex-presidente Lula, até pouco tempo o Programa Água Doce já tinha instalado 575 dessalinizadores em diversos estados nordestinos.

Veja o que diz o Rede Brasil Atual:

“A tecnologia, que o novo presidente acredita ser ‘inédita’, existe no Brasil há pelo menos 14 anos. É o Programa Água Doce (PAD), concebido em 2003 e lançado em 2004, durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) em parceria com instituições federais, estaduais, municipais e da sociedade civil”.

Há mais.

Bolsonaro e desassinilização'

Projetos como esse podem ser incorporados, mas aí entra em cena o enorme desconforto do governo eleito pelo fato de um prêmio internacional dessa importância ter sido ganho por Nadia Ayad, brasileira, negra, que faz parte de um projeto vitorioso, “Ciência sem Fronteiras”, criado no Governo Dilma.

Surpreende a atitude do governo que tomará posse daqui a três dias dizendo que vai acabar com as obras atreladas à ideologia?

Nem um pouco.

Como alguém ainda pode se surpreender com o Brasil?

Surpreende surpreender-se com as surpreendentes surpresas desse surpreendente país.

Isso sim.

Entretanto, engana-se quem pensa que responsabilizo Bolsonaro.

Como culpá-lo se ele nada sabe?

Na verdade, tenho muita pena dele.

Sabendo-se incapacitado, ele se submete (o que mais lhe cabe fazer?) a cumprir a agenda de outros.

A agenda de quem o pôs lá.