A condição humana

Por Ronaldo Souza

Recém formado, eu estava no Clube dos Médicos num domingo qualquer. A razão da minha presença ali era um grande amigo, amigo irmão, médico, radiologista.

Um grupo de médicos falava de um colega radiologista, recentemente falecido, reconhecido como grande profissional e maior radiologista da Bahia (assim mesmo, sem deixar qualquer margem de dúvidas sobre a sua competência). Rasgavam-se elogios a ele.

Era o pai do meu amigo médico.

De repente, um deles, também radiologista, diz:

“Era excelente! Com a morte dele, a Clínica… acabou; ele era a clínica. Agora acabou”.

Ali do lado, ouvindo tudo, mas sem participar da conversa, “parei”!

A clínica em questão era composta de quatro radiologistas e aquilo dele ser o grande nome da clínica era verdade. Portanto, até aí, nada de errado.

Aparentemente!

Na verdade, o que tinha acabado de ser dito não era um elogio, ou era, no mínimo, um elogio enviesado.

Pela primeira vez, eu era surpreendido pelo meu senso de observação e percepção e pelo que depois vim a ver com um pouco mais de clareza: o conhecimento que já demonstrava ter do ser humano, para mim um conhecimento surpreendente, até pela pouca idade.

Aquele elogio, certamente, encantou todos os médicos ali presentes. Um profissional elogiar com tanto entusiasmo um colega “rival”, que brigava pelo mesmo mercado não é algo comum de se ver.

Não somos tão grandes!

Por se tratar do pai de um amigo irmão, eu sabia de alguns detalhes daquela relação.

Aquele médico sabia que ele realmente era o melhor, mas não externou a sua opinião por conta disso. Ele o fez, em primeiro lugar, porque ele já tinha falecido, claro. Há pessoas que apresentam dificuldade de elogiar em vida, para elas não é simples assim. Em segundo, foi feito mais como uma forma de destruir aquela clínica, que era, sim, a melhor, graças ao pai do meu amigo, do que como forma de elogio.

Aos 25-26 anos, acho que por aí, eu começava a aprender como pode funcionar a vida. Mesmo o elogio nem sempre tem boas intenções.

Duro, triste e cruel, mas, lamento, verdade. 

Às vezes, você é marcado desde cedo para ver “a vida como ela é”, como dizia Nelson Rodrigues.

E vai descobrindo que o reconhecimento pelo trabalho e o eventual consequente elogio existem na proporção do quanto aquela relação (alguns chamam de amizade) ainda pode oferecer. Quando a fonte dá a sensação de ter secado e as chances de ainda render alguma coisa parecem ser mínimas, tudo vai se tornando evidente, ainda que o “amigo” não perceba.

A intensidade do golpe é mais sentida por quem recebe, não por quem dá.

Quando, até por gratidão (que costuma incomodar a consciência), ainda há espaço para um gesto, uma reverência, são feitos de forma comedida e geralmente em off, como se diz por aí! Em público, nem pensar, não é inteligente. No máximo para três ou quatro pessos, e, mesmo assim, de forma contida. Aquele do Clube dos Médicos, por exemplo, só existiu porque o beneficiário já não oferecia “riscos” aos reais objetivos de quem elogiou.

Terminei o ano velho e comecei o novo lendo um  livro, uma biografia, um dos presentes de Natal que as minhas filhas me deram.

Adorei!

Gosto de biografias. Fazem-me conhecer melhor a história de grandes homens e mulheres.

Alguns deles conseguem grandes e duradoras amizades e isso é sensacional. Mas, mesmo eles, nem sempre escapam do afago que vai na onda do quanto aquela relação (às vezes realmente parece amizade) ainda pode oferecer. 

Talvez caiba aqui um parêntese. Grandes e duradoras amizades não devem ser confundidas com grandes e duradoras convivências.

É um São Francisco enviesado e cruel: “é dando que se recebe!”.

Nada a dar, nada a receber!

Lembra de Nelson Rodrigues?

A vida como ela é.