A Endodontia Invisível

Por Ronaldo Souza

Com grandes atuações de Wladimir Brichta e Walmor Chagas, o filme “A Coleção Invisível” (2013), de Bernard Attal, é de fazer respirar fundo. Talento, beleza e sensibilidade estão presentes o tempo todo.

É a história de um fazendeiro da Bahia (Walmor Chagas) que possuia uma coleção rara de gravuras e um jovem (Wladimir Brichta), cuja família tem uma loja de antiguidades, viaja para o interior da Bahia para tentar comprar. Aí se desenvolve o filme.

Um detalhe marcante é que a aquela altura da vida, o fazendeiro que possuia a coleção tinha ficado cego e Walmor Chagas, o ator que o interpreta, estava cego na vida real e morreu logo em seguida às gravações.

Fica claro agora que roubei o título do filme para dizer que hoje há uma Endodontia invisível. Mas, não é só isso.

Diferentemente da coleção invisível do filme, que era invisível porque não existia mais (e o fazendeiro não sabia, porque não enxergava mais), a Endodontia invisível existe.

É uma Endodontia que ninguém vê (será que me enganei e falei que ninguém quer ver?) e quando alguém tenta mostrá-la, a impressão que se tem é a de que ela desaparece, fica… invisível.

Em 1955, Ingle estabeleceu que “cerca de 60% dos insucessos endodônticos eram causados pela obturação incompleta dos canais radiculares”. Daí surgiu a necessidade de vedamento hermético e com ela a do travamento do cone de guta percha. Isso se tornou definitivo em todo o mundo endodôntico.

Há praticamente 70 anos essa concepção reina na Endodontia.

Ao longo de todos esses anos, aprendemos que o tratamento endodôntico é como uma corrente, cujos elos são iguais e têm a mesma importância. Entretanto, sem que se tenha percebido ou não, o que tem sido dito e ensinado é que a obturação é o fator determinante do sucesso no tratamento endodôntico, portanto, o seu elo mais importante. Se alguém duvida, é só observar a literatura endodôntica.

O que temos aprendido é que o vedamento hermético proporcionado pela obturação representa o fator responsável pelo nosso sucesso. Daí a importância, por exemplo, do travamento do cone de guta percha e, máximo do requinte técnico, o travamento perfeito do cone. Entram também em cena e com enorme destaque os cimentos endodônticos. Sobre eles, a literatura é infinda.

Dada a quantidade de vezes do que já se disse, escreveu e ensinou sobre o papel da obturação, torna-se desnecessário explicar o que é e como fazer para conseguir o vedamento hermético.

Detalhe:

Ao longo de todos esses anos, não se tem conhecimento da existência de um único trabalho que tenha comprovado a existência de vedamento hermético!

O que fazer?

Deveria ser fácil responder a essa questão, mas não é.

Entretanto, talvez seja interessante conhecer um pouco mais dessa história.

O que se vê acima são dois trechos do editorial do Journal of Endodontics de dezembro de 2007. Esse editorial tinha tudo para se tornar relevante. Não conseguiu e, na verdade, tornou-se lamentável. Quando o li, há pouco mais de 14 anos, passei a ver o JOE e a literatura endodôntica de outra maneira.

Ele aborda dois temas. Um deles é o que apresento aqui. Traduzi o título e os dois trechos para conversarmos. Vejamos o que dizem.

Procura-se: Uma Base de Evidências

Texto da coluna à esquerda:

Embora tenhamos usado o método científico na tomada de decisões em saúde por mais de um século, grande parte de nossa prática clínica ainda pode ser encarada como empirismo devido à escassez de estudos de alto nível de evidência em nossa literatura, como exemplificado por avaliações de resultados em endodontia (1, 2). Todos devemos defender um nível mais rigoroso de ciência para produzir uma verdadeira base de evidências para nossas práticas. O Conselho Editorial do Journal of Endodontics busca os mais altos padrões da ciência, e devemos pesar a confiabilidade de metodologias utilizadas, na avaliação dos estudos submetidos para publicação.”

Texto da coluna à direita:

O vedamento é importante, e métodos de avaliação que sejam confiáveis, reprodutíveis e que se relacionem com os resultados clínicos são necessários. O Conselho Editorial sugere que a comunidade científica suspenda os estudos sobre vedamento que comparem diretamente uma técnica endodôntica com outra. Em vez disso, incentivamos os pesquisadores a estudar a validade dos próprios em si. Serão considerados para publicação manuscritos que 1) comparem várias metodologias de avaliação de selamento para tentar reduzir o número de técnicas comparativas usadas, 2) demonstrar implicações clínicas significativas para médicos, pacientes e fabricantes, e 3) Ao avaliar a infiltração de microrganismos, distinguir o vedamento dos efeitos antimicrobianos dos materiais obturadores. Tentem criar um padrão-ouro que possamos usar para avaliar verdadeiramente o quão bem nossas técnicas podem selar o canal radicular para que possamos descobrir o que funciona e o que não funciona. Nossos pacientes merecem isso.”

Começo pelo fim, quando o texto diz “nossos pacientes merecem isso”.

Isso, o que?

Em julho de 2006, portanto, 1 ano e 7 meses antes do editorial, o artigo abaixo havia sido publicado no JOE.

Vamos primeiro ao título:

Cura da Periodontite Apical Após Tratamento Endodôntico Com e Sem Obturação em Cães

De forma bastante resumida, nesse trabalho as cavidades pulpares foram acessadas e deixadas abertas em contato com o meio bucal, para infecção e formação de lesões periapicais. Em seguida, 56 canais foram preparados da mesma maneira e depois divididos em dois grupos. No grupo controle, 28 canais foram obturados com cones de guta percha e cimento AH26 Plus. No grupo experimental, 28 canais não foram obturados. Após 190 dias, os dentes foram removidos e analisados microscopicamente.

As frases abaixo (tradução literal) sintetizam resultados e conclusões.

O que se poderia esperar após a publicação de um trabalho bem delineado, com questionamento claro e consistente de um paradigma da Endodontia, na revista científica mais importante do mundo endodôntico?

Nessas condições, o que se poderia esperar de um trabalho que, deixando de lado o pensamento único e consagrado, demonstra que não é a obturação, mas sim, o preparo do canal o fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico?

No mínimo, uma discussão científica entusiasmada, motivadora e apaixonante!

Nada aconteceu!

Aliás, aconteceu.

A recomendação em editorial do periódico mais importante da especialidade no sentido de que se mudassem os métodos de investigação da qualidade da obturação.

Tentem criar um padrão-ouro que possamos usar para avaliar verdadeiramente o quão bem nossas técnicas podem selar o canal radicular para que possamos descobrir o que funciona e o que não funciona. Nossos pacientes merecem isso.

Quantos trabalhos foram feitos e publicados “querendo ver” se é válido ou não o que diz o artigo de Sabeti e colaboradores?

Se alguém souber de algum, por favor me diga.

Não parece incompreensível que nada tenha sido feito nessa direção após um trabalho que deveria, no mínimo, estimular as nossas mentes e efervescer pesquisadores e laboratórios?

Quantos artigos estão sendo publicados desde então sobre as virtudes dos materiais obturadores, particularmente dos cimentos endodônticos?

Alguém conseguiu criar uma metodologia que se transformou em padrão-ouro para avaliar verdadeiramente…?

Ou seja, não se toca no paradigma.

Vejam o que dizem Dave Holmes e colaboradores no International Journal of Evidence-Based Healthcare (2006).

As ciências da saúde se orientam a partir de instituições cuja autoridade raramente é desafiada ou testada, provavelmente porque só elas controlam os termos pelos quais qualquer desafio ou teste prosseguiria.

Isso torna difícil para os estudiosos expressarem novas e diferentes ideias em um círculo intelectual onde a normalização e padronização são privilegiadas no desenvolvimento do conhecimento.

O indivíduo crítico deve então recorrer a estratégias de resistência diante de tais discursos hegemônicos dentro dos quais há pouca liberdade para expressar pensamentos.”

Ignora-se (nega-se?) qualquer possibilidade de se pensar em alguma outra coisa que possa buscar uma explicação mais plausível para o sucesso, ou o fracasso, e se abrem as portas para a “confirmação” de algo que jamais se confirmou?

Trago de volta a frase escrita lá em cima: ao longo de todos esses anos, não se tem conhecimento da existência de um único trabalho que tenha comprovado a existência de vedamento hermético!

No filme, a coleção invisível já não existia, mas, pela cegueira, o seu proprietário não tinha como saber.

A Endodontia invisível existe! O que nos impede de ver?

Vejam o que diz Silvia Regina D. T. Siqueira (Professora Associada, Escola de Artes, Ciências e Humanidades – USP).

O que vemos na prática é o desinteresse das revistas científicas quando os resultados não são os esperados“.

Volto ao editorial lá em cima, ao trecho da coluna à esquerda.

“Grande parte de nossa prática clínica ainda pode ser encarada como empirismo devido à escassez de estudos de alto nível de evidência em nossa literatura…”.

Isso, nossos pacientes não merecem!