Da série Histórias que precisam ser contadas. E serão
Por Ronaldo Souza
Pouco tempo depois de me formar em Odontologia, algumas inquietações já começavam a povoar a minha cabeça.
Ao longo dos anos elas só foram aumentando.
- É possível obter a precisão de que todos falam na determinação do comprimento de trabalho?
- Se não for possível ter essa precisão não teremos sucesso?
- Existe um limite apical ideal para a instrumentação?
- Se existe, qual é?
- Será que as substâncias químicas auxiliares do preparo do canal fazem o que dizem?
- Será que o cimento obturador desempenha os papéis que lhe são atribuídos?
- O limite apical da obturação é fator fundamental para o sucesso em Endodontia?
- Será que o travamento do cone de guta percha representa o que dizem?
- É possível obter vedamento hermético do canal através da obturação?
- O vedamento hermético é o fator determinante do sucesso?
- Vedamento hermético existe?
Mesmo sabendo que muitos achavam que já tinham essas questões bem resolvidas, não era assim que eu via.
Há basicamente duas maneiras de se tentar obter essas respostas; investigação científica e clínica.
Deve-se ressalvar, entretanto, que seja uma ou outra, ou as duas, intuição e bom senso representam aspectos importantes nesse processo.
Aí entra em campo a imaginação.
Sim, essa mesma que, queiramos ou não, muitas vezes é podada pelos protocolos, assunto que foi tema do texto Protocolos, mal necessário?.
A imaginação nos leva ao questionamento, a fazer perguntas.
É a busca das respostas que nos leva ao conhecimento.
Foi dentro dessa perspectiva que em janeiro de 1987 fiz pela primeira vez a instrumentação do canal cementário, o que à época ficou mais conhecido como limpeza do forame.
Fui muito criticado e, ainda que superficialmente, já contei um pouco dessa história em Pondo os pingos nos is.
Portanto, agora em janeiro de 2018 fez 31 anos que sistematicamente em todos os canais com necrose pulpar, sem ou com lesão periapical, faço a instrumentação do canal cementário.
Perceba que não estou falando de ampliação foraminal, um equívoco conceitual.
Nada a ver uma coisa com a outra.
Naquele mesmo ano, mais precisamente em maio de 1987, também dei asas à imaginação para voar numa outra direção. Esta, bem mais complicada e perigosa.
Entretanto, ainda que mais complicada e perigosa, se no caso da instrumentação do canal cementário em situações de polpa necrosada era mais difícil “comprovar” a sua importância e validade, neste caso talvez fosse mais fácil.
Imaginei então.
Se eu fizer o que vou fazer em canais com polpa viva, dirão; ele deu sorte. Não deu errado porque eram canais com polpa viva.
Se eu fizer o que vou fazer em canais com polpa necrosada sem lesão, dirão; é mentira dele. Aí é tudo caso de polpa viva e ele está dizendo que é necrose.
O que me restava?
Exatamente.
Foi o que fiz.
“Fiz o que ia fazer” somente nos canais que tivessem lesão periapical.
Ocorreu-me um pensamento bem simples.
Se eu fizer o que vou fazer em casos de canais com necrose pulpar e lesão periapical e as lesões desaparecerem, ninguém poderá dizer que estou errado.
Mal sabia que estava ousando demais e mexendo em casa de marimbondo.
Trago de volta algumas das minhas inquietações lá do começo de nossa conversa.
- O limite apical da obturação é fator fundamental para o sucesso em Endodontia?
- Será que o travamento do cone de guta percha representa o que dizem?
- É possível obter vedamento hermético do canal através da obturação?
- O vedamento hermético é o fator determinante do sucesso?
- Vedamento hermético existe?
Posso ser sincero?
Para mim nada disso tinha nexo.
Soltei então todas as rédeas que poderiam conter a minha intuição, deixei o bom senso me conduzir por onde ele bem entendesse e liberei todas as asas da minha imaginação.
Não, não se preocupe, não estou.
Não estou nem um pouco preocupado com o que vão falar do que estou dizendo e da forma como o faço.
Entenda que há muito tempo meu encontro marcado é comigo mesmo.
Com mais ninguém.
Se falei aí atrás que “soltei todas as rédeas que poderiam conter a minha intuição, deixei o bom senso me conduzir por onde ele bem entendesse e liberei todas as asas da minha imaginação”, ao longo de todos esses anos em que fui fazendo o trabalho e vendo os resultados, comecei a pensar e dizer a mim mesmo; agora comece a deixar um pouco de lado a intuição e o bom senso.
Eles, intuição e bom senso, permitiram fazer as perguntas que a sua curiosidade lhe forçava a fazer. Serviram para você.
Mas agora você vai precisar explicar uma coisa.
Por que, contra toda a literatura endodôntica, nacional e internacional, o que você imaginou estava certo?
Disse então a mim mesmo.
Explique primeiro a você mesmo, depois aos demais.
Uma vez que fiz as perguntas, ao mesmo tempo em que ia vendo os resultados dos casos clínicos aparecendo, ia paralelamente buscando as respostas.
Nessa época eu era um clínico, recém tornado especialista em Endodontia.
Sequer pensava em ser professor.
Fui buscar a explicação.
E só o conhecimento explica.
Abro um pequeno parêntese.
No momento em que a intuição me levara a algumas perguntas, que agora eu ensaiava responder, algo até então desconhecido foi despertando e me fez ficar mais inquieto ainda.
Aqueles que me conhecem mais de perto sabem que já falei algumas vezes que houve um momento em que “fechei” todos os livros de Endodontia.
Não chegou a um ano completo, mas quase isso, em que diariamente (literalmente) estudava Histologia, Patologia e Microbiologia, particularmente essas três matérias.
Foi aí que resolvi fazer mestrado (1993), já com 19 anos de formado.
Lembre.
Eu não era professor.
Fecho o parêntese.
O trabalho sobre o qual estamos conversando foi feito no meu consultório entre 1987 e 1996.
Exatamente 10 anos o tempo em que foi realizado.
Tempo em que fui escolhendo os casos, até porque tinha que ver quais os pacientes que iam aceitar que eu fizesse o tratamento deles “daquele jeito”.
Nesse tempo, quando observava os primeiros resultados iniciais ganhava força e entusiasmo para fazer os outros.
E o que era que eu estava fazendo?
Simples, bem simples.
Continuei tratando os canais como sempre fizera, inclusive os com lesão periapical. Eram preparados e obturados a cerca de 1 mm aquém do ápice radicular.
Ao mesmo tempo, porém, em alguns a abordagem foi diferente.
Tudo que faço em um tratamento endodôntico (acesso, instrumentação, irrigação com as mesmas soluções irrigadoras, patência foraminal, instrumentação do canal cementário e medicação com hidróxido de cálcio) foi feito da mesma maneira nos dois grupos. Repito, todos com lesão periapical.
Menos na hora da obturação.
Nesse momento, os canais de um grupo, o experimental, não foram obturados a 1 mm aquém, mas sim em diversas medidas, que variaram de 2 a 7 mm aquém do ápice radicular.
Em alguns casos, durante os dez anos em que os canais foram tratados, enquanto alguns eram iniciados outros já estavam sendo observados com radiografias periapicais de acompanhamento.
Alguns deles, todos do grupo experimental, foram acompanhados por longo período de tempo, o maior deles de 21 anos.
A última radiografia desse caso foi realizada em 2008.
Mesmo antes dessa data eu já mostrava esse material em vários lugares do Brasil.
Apanhei muito.
Houve um momento, em 2005, em que pensei que fossem tirar meu “couro” vivo.
Como já falei, quando comecei a fazer esse trabalho era apenas um clínico e o fiz para atender a uma curiosidade pessoal. Até porque não compartilhava isso com ninguém.
Como no “meio do caminho” me tornei um professor, comecei a pensar; um dia sento e escrevo esse artigo.
Tinha plena consciência de que não poderia ser um texto qualquer.
Ter “apanhado” por mostrar o trabalho em eventos Brasil afora me deu a exata noção do quão seria difícil torna-lo palatável num artigo.
Afinal, contesta conceitos enraizados há mais de 60 anos.
O texto não lhe dá as mesmas condições que a apresentação oral. A entonação da voz, a ênfase, a veemência…, nada disso é possível na escrita.
Nesse sentido, escrever é sempre mais difícil.
Até que um dia sentei e comecei a escrever, mas com a consciência de que não poderia permitir que a ansiedade participasse desse processo.
Escrevia e “deixava lá” assim que os primeiros sinais de cansaço e falta de inspiração se manifestavam.
Deixava e chegava até a esquecer dele.
Um bom baiano não tem pressa.
“Para que tanta afobação? O futuro sempre nos chega à velocidade constante de sessenta minutos por hora”.
Einstein
Um dia terminei.
Não sem algumas vezes, claro, mudar parte do que já tinha escrito.