A história de um trabalho. 2ª parte

Obturação'

Da série Histórias que precisam ser contadas. E serão

Por Ronaldo Souza

Bati de frente com um muro chamado paradigma.

O paradigma da obturação.

Sabia que ia ser muito difícil ir de encontro ao que estava estabelecido para esse tema, afinal era consagrado como unanimidade.

Todos os autores, nacionais e internacionais, ensinavam que se o canal não fosse hermeticamente vedado o resultado final do tratamento endodôntico a ser esperado era o fracasso.

Era consensual: “A obturação é o fator determinante do sucesso em Endodontia”.

Obturação''

Mas eu não tinha mais nenhuma dúvida de que esse conceito de mais de 60 anos era um grande equívoco.

Antes de ver porque, um pequeno parêntese.

Se alguém pegar o meu currículo quando comecei a entrar de vez na carreira docente (ali por volta de 2000), vai observar que já os meus primeiros artigos são sobre preparo do canal, “limpeza do forame” (como eu chamava à época) e obturação.

Se esse alguém ler os artigos verá que em todos, TODOS, enfatizo o papel do preparo do canal e questiono o papel da obturação.

Questiono o limite apical da obturação, travamento do cone, vedamento hermético, importância do cimento…

Convido-o a ler alguns deles aqui Publicações (permita-me orienta-lo; para ver na ordem cronológica em que foram publicados leia os artigos da parte de baixo da seção para cima).

Não espere encontrar metodologias bem delineadas e sofisticadas. Muito pelo contrário, os trabalhos eram muito simples e tinha plena consciência disso.

Eu era um clínico dedicado exclusivamente ao consultório e, portanto, com muito pouco conhecimento de metodologias de pesquisa.

Além disso, não tinha acesso a nenhum laboratório.

Era simplesmente o desejo de mostrar como pensava aquele professor que dava os primeiros passos no mundo da docência.

Reconheço que seria normal e de uma certa forma até compreensível que os artigos não fossem “considerados” pela comunidade endodôntica.

Entretanto, para quem quis ler, já havia ali os primeiros sinais do que estaria por vir.

Quando fui para o mestrado (com 20 anos de formado), por exemplo, já tinha em mente o que fazer. A minha dissertação, publicada no artigo Interferência da camada residual no selamento apical, foi o primeiro teste.

Aproveito para fazer duas considerações.

  1. O Journal of Endodontics fez um editorial em dezembro de 2007 em que dizia que a partir de julho de 2008 nenhum artigo sobre avaliação da qualidade da obturação através de métodos de infiltração apical seria aceito. De corante nem pensar.
  2. A avaliação da qualidade da obturação através desses métodos foi então rejeitada por pesquisadores e professores.

Meu recém inaugurado laboratório de pesquisa, constituído por um frasco de corante, era o meu consultório e só funcionava, claro, aos sábados e domingos.

O único método ao meu alcance era justamente… infiltração apical de corante.

Assim, a minha também recém inaugurada carreira de “pesquisador” estava condenada.

O que fazer, então?

Uma vez que eu não tinha nenhuma estrutura que me permitisse investigar a real participação da obturação no processo de reparo, resolvi recorrer a algo que tinha feito no meu consultório; analisar se havia alguma relação entre o limite apical da obturação e o reparo de lesões periapicais.

Um dos temas mais polêmicos em Endodontia.

Resolvi escrever e publicar o trabalho que fora iniciado em 1987 e concluído em 1996, exatamente 10 anos.

O mesmo cujos resultados já vinha mostrando Brasil afora e que vinha tendo rejeição ampla, total e irrestrita por parte de toda a comunidade endodôntica do país.

Para dar um exemplo, em um debate em 2009 em que alguém da plateia fez uma pergunta sobre a forma como eu vinha abordando o limite apical de trabalho e particularmente o papel da obturação, um dos professores negou a validade da minha concepção sob o argumento da ausência de evidências científicas.

Um breve comentário; a colega que fez a pergunta me procurou no intervalo do debate para dizer que tinha visto minha aula em Curitiba e tinha gostado da abordagem que eu apresentara, tanto sobre a instrumentação do canal cementário quanto da obturação. Por isso ela tinha feito questão de colocar o tema para a discussão.

Logo após a negação daquele professor, o professor Pécora, à frente no tempo e no discernimento, foi enfático:

“Então ninguém pode ir além do que está estabelecido? Ninguém pode ter a ousadia de mudar os conceitos”?

A vida seguiu.

Resolvi então partir para a primeira publicação, que pretendia ser parte de uma tríade, com mais dois artigos que lhe sucederiam.

Nuvens pesadas

Tentei publicar em dois periódicos de “impacto”.

Os dois rejeitaram.

Em 2011, publiquei no Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology, Oral Radiology and Endodontics.

O editor era Lars Spangberg.

Triple Oral

A aceitação do artigo foi rápida (duas semanas), mesmo sendo tempo de Natal e Réveillon, como você pode observar no grifado em vermelho e verde na imagem acima.

Ainda bem que “caiu” nas mãos de Spangberg.

Se tivesse caído nas mãos de dois revisores brasileiros o artigo não só teria sido recusado como esquartejado, salgado e exposto em praça pública, devidamente carimbado:

Pior artigo do mundo

Por que digo isso?

Porque dois professores aqui no Brasil se juntaram e quase me levam ao suicídio.

Um deles pediu ao outro para fazer uma análise crítica sobre o artigo.

Isso foi feito num fórum de Endodontia na Internet.

Em plena praça pública.

Confesso que quando vi fiquei sem entender.

Por que aquela atitude?

Qual seria o objetivo?

Li.

Acabara de aprender um pouco mais sobre a vida e do que alguns homens são capazes.

E corri para a janela.

Minha mulher percebeu e não permitiu que eu cometesse aquela loucura.

Isso mesmo, tentei me jogar.

Sabe em que andar eu moro?

Quinto.

Tinha alguma chance de estar aqui agora escrevendo?

Confesso que quando tomei aquela pancada fiquei muito incomodado.

A degradação de alguns homens é por demais conhecida, a vida nos mostra todos os dias.

Mas, mesmo assim, não consegui entender o objetivo daquilo.

Restava-me respirar fundo, absorver e metabolizar.

Foi o que fiz.

Sem pressa.

E à medida em que as coisas iam ficando mais claras, também foi ficando claro que era o momento de tomar decisões.

Foi então que resolvi mudar o foco de muita coisa, inclusive deste site.

No final de 2015 e começo de 2016 (perceba que se passaram 4 anos desde a publicação e sua carimbada como o pior artigo do mundo pelos nobres colegas), comecei a escrever vários textos sobre temas que sempre achei que mereciam uma discussão sob uma nova ótica.

Por conta daquele episódio, um deles foi justamente o das tão famosas e exigidas evidências científicas.

Quer conhecer melhor essa história?

Leia primeiro o artigo publicado (é só clicar nele) Apical limit of root canal filling and its relationship with success on endodontic treatment of a mandibular molar: 11 year follow-up, leia depois os textos abaixo na sequência da numeração e volte. É o tempo que escrevo a continuação deste texto.

  1. X + Y é igual a que?
  2. Um “expert” perdido entre a má fé e a obtusidade
  3. Um “expert” perdido entre a má fé e a obtusidade 2
  4. Um “expert” perdido entre a má fé e a obtusidade 3
  5. Um “expert” perdido entre a má fé e a obtusidade – final

Aviso de utilidade pública – Informo aos amigos e colegas que a tentativa de suicídio narrada acima é uma figura de retórica.

Aviso de utilidade pública 2 – Mas que eu fiquei p… da vida, fiquei.