As incongruências na Endodontia

Incongruência

Por Ronaldo Souza

Falei bonito, não falei?

Incongruências.

Fui longe.

Agora chegue mais pra perto para conversarmos.

Em primeiro lugar, observe que não falei “As incongruências da Endodontia” e sim “As incongruências na Endodontia”.

Há diferença?

Muita.

Sempre digo aos meus alunos que a Endodontia não comete erros.

Quem comete erros, às vezes grosseiros, são alguns endodontistas ao interpretarem a Endodontia.

Recorro a Nietzsche:

“Não há verdades definitivas. Apenas interpretações sobre a realidade, condicionadas pelo ponto de vista de quem as propõe”.

Pequenos e grandes equívocos foram e têm sido cometidos em várias interpretações dadas às etapas da Endodontia.

Ao aponta-las, é claro que você não só poderá me achar pretensioso como também dizer a mesma coisa; que a minha interpretação é que está equivocada.

Então vamos juntos.

Já vi professores que acreditam e defendem a ideia de travamento perfeito do cone principal de guta percha e vedamento hermético da obturação preconizarem a técnica do cone único.

Não dá.

Ou uma coisa ou outra.

Desde já, vou deixar bem claro que, apesar da insistência com essa concepção, vedamento hermético da obturação de canal não existe.

Este é um equívoco inaceitável nos dias de hoje.

Insistir nessa concepção deixa de ser equívoco e passa a ser outra coisa.

Ponto.

A “certeza” do travamento do cone é dada pela percepção tátil.

Devo lembrar que percepção está intimamente ligada à sensibilidade, inclusive tátil, algo bastante variável entre os indivíduos.

Dizem que aluno tem pacto com o Diabo.

Vejamos.

Ao chamar o professor para ver se está bom o travamento, o aluno ouve:

– Não, não está bom. Trave melhor.

O professor dá as costas, o aluno chama outro professor. Este confere e diz:

– Tá bom.

Meu Deus!!!

É sensibilidade tátil e ela não é a mesma nas pessoas.

Sendo assim, varia de professor para professor!

Quer ver uma situação em que o aluno se torna sócio do Diabo?

– Professor, veja aqui se o travamento tá bom.

– Não, não tá não. Melhore.

O professor se afasta.

O aluno faz isso, faz aquilo, faz tudo, menos mexer no cone de guta percha. Espera alguns poucos minutos e chama o mesmo professor.

– Professor, agora tá bom?

– Agora sim, Agora tá bom!

O aluno acabou de matar o professor sem ele sequer desconfiar.

Já falei sobre essas duas situações em alguns lugares. É comum ver nas salas cabecinhas balançando e aqueles sorrisinhos sarcásticos, como que dizendo; já fiz isso.

Vamos um pouco mais longe?

A sua própria sensibilidade é altamente dependente do seu “estado d’alma”.

Você tomou um bom vinho na noite anterior, namorou, dormiu o sono da felicidade.

Acorda num dia bonito, céu azul, sol, daqueles que entram em você e fazem festa.

Como é que você acha que está o seu humor? E a sua inspiração e sensibilidade?

Lá em cima.

Imagine agora alguém cuja mulher, filho, pais, um ente querido, está com uma doença grave.

Será que podemos crer que essa pessoa está de alto astral e apresenta o mesmo comportamento?

É bem possível que o endodontista também seja um ser normal e, portanto, suscetível a situações que interferem na plenitude da sua capacidade.

Assim, a percepção tátil muito pouco provavelmente será a mesma.

Que me perdoem os ditos pragmáticos, mas ignorar isso é outro grande equívoco.

O homem não é alheio ao que está à sua volta.

O “travamento perfeito” do cone de guta percha e o consequente vedamento hermético, desejo de todos, representam algo que o bom senso condena.

Ao fazer a prova do cone de guta percha em um canal reto e observarmos a sensação tátil de travamento, tínhamos a “certeza” de que ele travara na porção mais apical do canal; no comprimento de trabalho.

Mesmo sonhando o sonho impossível, o do “travamento perfeito” e vedamento hermético, sabíamos que não costumava ser assim no canal curvo.

Observe no desenho da figura abaixo que a seta preta aponta para a porção mais estreita da obturação (em verde) e a seta branca para a porção mais larga dela (Fig. A). Era comum acontecer isso nos canais curvos, isto é, um discreto desvio do canal na sua porção final, graças à pouca flexibilidade dos instrumentos mais calibrosos.

Travamento do cone

Se o cone tivesse a largura que a seta branca aponta ele não passaria pelo canal no local para onde aponta a seta preta, porque este é mais constrito, mais estreito.

Assim, ele não travou ali no local que aponta a seta branca.

Mas não é ali onde ele deve travar?

Observe, agora na radiografia, que as setas apontam para os mesmos aspectos, só que mais dificilmente percebidos (Fig. B). Isso acontece mais vezes do que imaginamos, ainda que com menor frequência na era dos instrumentos rotatórios.

Quem complementa essas eventuais falhas na obturação?

Os cimentos obturadores (observe como inclusive ele extravasou para os tecidos periapicais).

Os cimentos são solúveis?

Sim.

Como confiar no vedamento hermético se ele em parte é constituído por um material solúvel?

Continuemos juntos e voltemos para o cone único.

Observe a figura abaixo em que vemos a fotografia de um cone de guta percha em um canal de molar inferior. Esse cone está bem travado (Fig. A).

Cone único'

Acompanhe, agora na radiografia, a linha radiolúcida que “corre” ao lado do cone em toda a extensão da parede do canal contrária à furca. Isso significa que entre o cone e a parede do canal existe espaço desde o terço cervical até o comprimento de trabalho que não foi preenchido pelo cone (setas brancas).

Veja agora na parede próxima à furca como o cone está “colado” a ela nos terços cervical e médio (setas pretas). Ali, radiograficamente falando, o cone de guta percha está aderido à parede dentinária.

Logo em seguida, quando ele chega ao terço apical surge a imagem de espaço vazio entre o cone e a parede do canal, que persiste até o CT (setas vermelhas).

Perceba assim que em boa parte, particularmente no terço apical, o cone de guta percha não faz um bom contato com as paredes do canal. Nem poderia.

O cone usado nas imagens é um cone convencional, ou seja, conicidade .02, mas, repito, está bem travado.

O cone indicado para a técnica do cone único deve possuir maior conicidade, geralmente algo como .04, .06, nessa faixa.

Assim, atribui-se a eles a capacidade de, pela maior conicidade (taper), preencher bem os terços cervical e médio, o que eliminaria os espaços vazios observados na figura acima.

Inegável a possibilidade de esses cones se adaptarem melhor nos referidos segmentos do canal, mas claro que seria inconcebível imaginar que por isso haveria o perfeito selamento do canal em toda sua extensão (será que tem alguém que pensa que é isso que acontece?).

Tudo vai girar em torno da conicidade dada ao canal e do cone escolhido para a obturação.

O que ocorre é que, uma técnica extremamente simples, a do cone único, tem seu grande momento, o seu momento mais delicado, justamente na escolha do cone.

A maior conicidade pode favorecer bastante a adaptação do cone nos terços cervical e médio, mas pode prejudica-la no apical e isso pode acontecer mesmo nos canais retos (voltaremos a falar sobre isso).

Em outras palavras, o cone pode ficar bem adaptado nos dois primeiros terços e mal adaptado no terço apical, particularmente no comprimento de trabalho.

Mas como isso é possível se o cone está bem travado?

Se na figura acima, mesmo usando um cone .02 o travamento não se deu no comprimento de trabalho (setas vermelhas e brancas), o que pode acontecer com a conicidade maior?

Gosto muito de uma expressão e aqui me permito usa-la.

O que pode ocorrer é que mais facilmente a maior conicidade pode fazer com que o cone fique “entalado” em qualquer parte do canal, até mesmo na sua entrada. Assim, a sensação de travamento é confirmada, porém não necessariamente no CT, mas onde o cone estaria “entalado”.

Volte à figura acima e perceba que o cone está mais bem aderido aos terços cervical e médio (setas pretas) do que no apical (setas vermelhas e brancas).

A sensação do travamento do cone pode ter sido dada por qualquer ponto entre os terços cervical e médio ou até mesmo na entrada do canal.

Qual é a grande razão do travamento perfeito do cone da forma como tem sido ensinado e preconizado?

Vedar hermeticamente o canal no terço apical, para evitar que por ali penetrem os fluidos teciduais dos tecidos periapicais e assim passem a servir de nutrientes para bactérias residuais pós-preparo.

Abro um parêntese para dizer que não cabe aqui aprofundar e discutir esse ponto de vista.

Sendo assim, sob essa perspectiva do travamento do cone no CT, o que é melhor, a técnica da condensação lateral ou a do cone único nas condições descritas?

Conto rapidamente uma história.

Há alguns poucos anos, tomando uma cerveja com o professor Hênio Horta e seu grupo em Belo Horizonte, ele me disse que eles tinham feito uma pesquisa comparando a capacidade de selamento da técnica da condensação lateral com a do cone único e os resultados mostraram que a condensação lateral selava melhor.

Perguntei porque não publicava.

Falou que tinha que ter “alguns cuidados” por causa de (Quintiliano Diniz) De Deus, um dos grandes professores de Endodontia do Brasil e entusiasta do cone único. Eram muito amigos.

Infelizmente, ambos, Hênio e De Deus, já não estão mais entre nós.

Para que não fique nenhuma dúvida, sou adepto da técnica do cone único. Nos nossos cursos ela é ensinada.

No entanto, diante do que vimos, acho que para quem acredita no travamento do cone de guta percha como garantia de vedamento hermético, talvez não seja a técnica mais recomendável.

Aliás, nenhuma seria, pela simples razão de que vedamento hermético não existe.

E aí, o que fazem os nossos eventos?

Tornam-se frustrantes porque praticamente só falam de aparelhos, sistemas, motores, cimentos obturadores (normalmente apresentados como solução dos problemas) , limas de última geração…

Por que o establishment da Endodontia não estimula discussões que discutam de fato Endodontia (a redundância é intencional) nos eventos?

Não quero e não posso crer que não há outro interesse que não seja subliminarmente estimular as plateias a comprar.

E aí, vai um reciprocante ou um rotacional?

Danadinhos, não são?