Recado aos pobres de direita

Por Raquel Domingues do Amaral – Juíza Federal

Sabem do que são feitos os direitos, meus jovens?

Sentem o seu cheiro?

Os direitos são feitos de suor, de sangue, de carne humana apodrecida nos campos de batalha, queimada em fogueiras!

Quando abro a Constituição no artigo quinto, além dos signos, dos enunciados vertidos em linguagem jurídica, sinto cheiro de sangue velho!

Vejo cabeças rolando de guilhotinas, jovens mutilados, mulheres ardendo nas chamas das fogueiras! Ouço o grito enlouquecido dos empalados.

Deparo-me com crianças famintas, enrijecidas por invernos rigorosos, falecidas às portas das fábricas com os estômagos vazios!

Sufoco-me nas chaminés dos Campos de concentração, expelindo cinzas humanas!

Vejo africanos convulsionando nos porões dos navios negreiros.

Ouço o gemido das mulheres indígenas violentadas.

Os direitos são feitos de fluido vital!

Pra se fazer o direito mais elementar, a liberdade, gastou-se séculos e milhares de vidas foram tragadas, foram moídas na máquina de se fazer direitos, a revolução!

Tu achavas que os direitos foram feitos pelos janotas que têm assento nos parlamentos e tribunais?

Engana-te! O direito é feito com a carne do povo!

Quando se revoga um direito, desperdiça-se milhares de vidas …

Os governantes que usurpam direitos, como abutres, alimentam-se dos restos mortais de todos aqueles que morreram para se converterem em direitos!

Quando se concretiza um direito, meus jovens, eterniza-se essas milhares vidas!

Quando concretizamos direitos, damos um sentido à tragédia humana e à nossa própria existência!

O direito e a arte são as únicas evidências de que a odisseia terrena teve algum significado!

O Sol de todos os dias

Por Ronaldo Souza

Desde a primeira reunião da Escola de Aperfeiçoamento Profissional (EAP) da ABO-Bahia sob a gestão da atual diretoria, disse que eu me sentia como se estivesse “voltando” para a EAP e na oportunidade fiz questão de frisar o horizonte que via surgir à minha frente em termos do que aconteceria com a instituição nos anos seguintes.

Hoje, com o tempo, vejo que aquela percepção se mostrou parcialmente acertada, pois, na verdade, a administração atual se supera a cada dia.

O que se vê é uma mudança total, sob todos os aspectos.

É inquestionável a transformação pela qual passa a ABO-Bahia.

Muita coisa já foi feita em termos de instalações, de mudança na sua infraestrutura e muito ainda há para fazer.

Mudanças que podem até passar despercebidas pela comunidade odontológica da Bahia.

É natural.

Comunidade, aliás, que reconhece o que a ABO representa, afinal que outra instituição trabalha e promove tantos eventos para o dentista da Bahia como faz a ABO, inclusive o maior deles, o CIOBA?

Para citar apenas um desses momentos, a criação do Laboratório de Microscopia.

Apesar de pequenos atrasos por conta de adequações no projeto, e por isso ainda precisando de pequenos ajustes, vi um sonho pessoal se concretizar.

Já estamos trabalhando “dividindo” as turmas nos 6 microscópios do laboratório, para em seguida ir para a clínica.

Tem sido muito gratificante.

Mas quero falar de algo muito especial.

As imagens que você vê lá em cima no início do texto são da sala dos professores da ABO-Bahia.

Quando foram enviadas para o grupo de coordenadores dos cursos, algo especial me tocou.

É bem possível que outras salas de professores existam e que sejam mais imponentes do que essa, não vamos brigar por isso.

Não sei, porém, se elas terão a dose de amor que se empregou na construção dessa.

Por que falo de amor em algo que para muitos essa palavra tão cara não pode e não deve ser usada?

Deixando de lado as eventuais dificuldades financeiras para que ela se tornasse possível, é sobre cada tijolo colocado em “construções” como essa que falo.

Depois de muitas realizações importantes, até por serem necessárias para uma instituição que tem entre os seus objetivos fazer pós-graduação lato sensu de qualidade, foi essa sala de professores que me tocou e me fez compreender que tijolos são colocados em toda e qualquer construção, mas há tijolos que carregam algo mais consigo.

São aqueles que trazem em si uma certa dose de amor.

Não conheço a vida pessoal de nenhuma das pessoas da diretoria que estiveram à frente da idealização e realização da sala dos professores da ABO, mas não tenho nenhuma dúvida do quanto foi colocado ali de…, mais uma vez não estranhe, de amor, sim.

Realizações assim não encontram a sua maior razão de ser na obra em si, no seu tamanho, na sua importância, mas no que simbolizam.

Vi naquelas imagens tão simples algo muito maior do que elas podem permitir ver por um olhar menos atento.

Há ali, permitam-me dizer, a presença forte do que um dia cometeram a tolice de chamar de sexo frágil; a mulher.

Naquelas imagens está refletida toda a força da mulher, que se expressa com a beleza e leveza que só ela tem e que, por isso, muitas vezes somos incapazes de ver.

Quando finalmente chegará o dia em que veremos a mulher como ela é, com a beleza e sensibilidade que a tornam forte, mas de um jeito muito especial?

O meu universo feminino é muito forte e giro em torno dele, não o contrário.

Os meus agradecimentos aos deuses do amor por fazer parte dele e a minha admiração pelas mulheres que o compõem, parte mais importante de minha vida que são.

A esse universo dedico todos os meus dias.

Entretanto, hoje, desejo parabenizar todas as Mulheres através das Mulheres da ABO-Bahia.

Maria Angélica Behrens Pinto, Maria Rita Sancho Rios Xavier, Viviane Almeida Sarmento, Ivea Carolina Santiago Sant’ana, Mirna Cristiane Ribeiro Cruz Fernandes, Fátima Gouveia Cabral de Abreu, Jacinta Rios Azevedo Lomba, Maria Amélia Ferreira Drummond, Amélia Cristina Cintra Santos Mamede e todas as funcionárias.

Trump e Bolsonaro são presidentes cafajestes

Por Kennedy Alencar

Donald Trump exerce a Presidência dos Estados Unidos de forma autoritária e imperial, de modo parecido com o do presidente Jair Bolsonaro no Brasil. Bolsonaro copia Trump.

Nesta semana, o presidente brasileiro cometeu um crime ao se queixar de reportagem da jornalista Patrícia Campos Mello, da “Folha de S.Paulo”. Cometeu, primeiro, um crime contra a honra dela.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, deveria tomar providências, porque é a única autoridade que pode investigar e denunciar o presidente da República por crime comum. Aras não o fará porque fez acordo com Bolsonaro para ganhar a chefia do Ministério Público Federal.

Bolsonaro também incorreu num crime de responsabilidade porque quebrou o decoro. Esse delito já foi cometido por ele inúmeras vezes. Cabe ao Congresso tomar providências. Como um impeachment depende do fator político, não há, por ora, clima para isso.

Por último, Bolsonaro foi mais uma vez cafajeste ao atacar as mulheres. Ele sempre fez isso. Atacou a deputada Maria do Rosário, a jornalista Manuela Borges e outras jornalistas antes de fazer a cafajestada desta semana com Patrícia Campos Mello.

Bolsonaro tem comportamento cafajeste como Trump. São presidentes cafajestes.

A diferença entre EUA e Brasil é que os militares americanos não baixam a cabeça como baixam para Bolsonaro no Brasil. As Forças Armadas endossaram uma aventura que será muito danosa para a instituição. Como instituição, não poderiam ser correia de transmissão de um governo.

Essa história vai acabar mal para os militares, que embarcaram de cabeça numa administração de uma figura autocrata, despreparada e desqualificada como Bolsonaro.

Nos EUA, há também reação de diplomatas, procuradores e juízes ao assalto de Trump às instituições. A imprensa aqui reage faz tempo, diga-se de passagem. Não normaliza a cafajestada e os crimes do presidente.

O resultado da eleição americana será importante para o Brasil e os Estados Unidos. 

As rusgas de um homem com rugas na alma

Por Ronaldo Souza

A sua ignorância já passou para os anais do judiciário brasileiro.

Afinal, não é todos os dias que se tem oportunidade de ouvir um juiz de direito chamar Câmara (dos Deputados) de Câmera.

Não caia na tolice de lhe pedir para usar sob e sobre; ele não sabe. Já se enrolou várias vezes.

Burrice e ignorância que tanto depõem contra os concursos públicos para a classe de juízes federais, já tão fragilizada conceitualmente diante da sociedade.

No entanto, possivelmente, se não a sua maior performance, uma das mais fulgurosas foi sobre as relações conjugais.

As relações conjugais, como sabemos, nem sempre são simples, razão pela qual não é incomum que casais se separem.

Quando a vida se impõe sobre o “até que a morte os separe” e desfaz o que fez, é comum que entre os cônjuges, além do amor tenham ido embora também a paz e a harmonia.

E tudo se torna traumatizante.

Mas há juízes que tornam o “até que a morte os separe” mais traumatizante ainda.

Quando a vida resolve separar o que parecia caber somente à morte, um juiz pode fazer um estrago ainda maior.

É quando, ao assinar o atestado de óbito daquela relação, o juiz assina também o óbito da língua.

O casal de pombinhos se transforma em “conjes”, cada um para seu lado.

Um inferno!

A falta de amor dói a quem pensava que a chama jamais se apagaria.

Dói também, e muito, a falta de amor do juiz pela língua.

Como juiz, além de incompetente (dito por vários juristas e professores de Direito), passou todo o processo da lava jato mentindo. Atropelou tudo que era possível.

Flagrado pelo The Intercept em diálogos e ações escabrosos com promotores da lava jato que corromperam todo o processo judicial, nada aconteceu. Algo, aliás, comum na sua vida, sempre blindado pela imprensa.

Ninguém teve mais dúvidas da sua decisiva participação na farsa da condenação e prisão de Lula.

Ali ficou patente a armação.

Porém, para os que ainda eventualmente continuassem acreditando na sua seriedade, sua falta de dignidade se exibiu sem nenhum pudor ao aceitar ser ministro do presidente que ajudou a eleger com a prisão de Lula; era a desmoralização de um homem já desmoralizado há algum tempo.

No mais recente episódio dessa cruel e covarde perseguição a Lula, divulgaram-se notícias do seu enquadramento na Lei de Segurança Nacional, numa tentativa absurda de prende-lo outra vez.

Não importaram o completo sem nexo da tentativa e a afronta à Constituição Brasileira.

Tentou esconder que não tinha autorizado a operação.

Veja o que o ConJur (site jurídico) chegou a chegou:

A lei nº 7.170 não costumava ser evocada para investigar adversários políticos. A notícia causou espanto entre os operadores de Direito e juristas consultados pela ConJur, que reprovaram veementemente o ato. Conclui-se, portanto, que o inquérito faz expressa referência à requisição do Moro e à LSN. E que o ex-juiz da “lava jato” foi expressamente comunicado que o IPL havia sido instaurado por requisição dele.

Covarde.

Entre mentidos e desmentidos da sua tentativa de enquadrar o ex-presidente na LSN não importou o ridículo em que caiu mais uma vez. O que importou foi que se criou mais uma chance de trazer o nome de Lula para as manchetes, sempre de forma negativa.

Fatos novos, que de novos nada têm, são requentados com frequência para esse fim.

Sobre Gilmar Mendes, disse que é natural que tenha algumas “rugas pontuais” com o ministro.

Não há limites para sua burrice e ignorância, por isso jamais se deve dizer que ele atingiu o ápice; haverá sempre mais. 

Se estivesse vivo, Fellini diria; “E la burrice va”.

Adora criticar o “nine“, como carinhosamente se refere a Lula, mas o “ten“, pra variar, derrapou feio outra vez.

Dessa vez sobre rusgas e rugas.

Culpa da língua portuguesa, sempre bonita, porém, muito exigente.

As rusgas na labuta diária do homem trazem rugas e envelhecimento precoce à sua pele.

Há homens admiráveis que carregam na face esse sinal indelével do tempo.

Marca inconfundível de lutas, conquistas e derrotas.

Há, entretanto, outros.

Corpos jovens ou não que revestem almas envelhecidas desprovidas de retidão.

Carregam consigo as rugas da alma.

Dificilmente perceptíveis, mas muitas vezes denunciadoras da indignidade.

O Brasil realmente não anda bem de heróis e mitos.

É uma pena.

A cafajestagem bolsominion

Por Paulo Brondi, no Blog do Juca

Bolsonaro é um cafajeste. Não há outro adjetivo que se lhe ajuste melhor.

Cafajestes são também seus filhos, decrépitos e ignorantes. Cafajeste é também a maioria que o rodeia.

Porém, não é só. E algo que se constata é pior. Fossem esses os únicos cafajestes, o problema seria menor.

Mas, quantos outros cafajestes não há neste país que veem em Bolsonaro sua imagem e semelhança?

Aquele tio idiota do churrasco, aquele vizinho pilantra, o amigo moralista e picareta, o companheiro de trabalho sem-vergonha…

Bolsonaro, e não era segredo pra ninguém, reflete à perfeição aquele lado mequetrefe da sociedade.

Sua eleição tirou do armário as criaturas mais escrotas, habitués do esgoto, que comumente rastejam às ocultas, longe dos olhos das gentes.

Bolsonaro não é o criador, é tão apenas a criatura dessa escrotidão, que hoje representa não pela força, não pelo golpe, mas, pasmem, pelo voto direto. Não é, portanto, um sátrapa, no sentido primeiro do termo.

Em 2018 o embate final não foi entre dois lados da mesma moeda. Foi, sim, entre civilização e barbárie. A barbárie venceu. 57 milhões de brasileiros a colocaram na banqueta do poder.

Elementar, pois, a lição de Marx, sempre atual: “não basta dizer que sua nação foi surpreendida. Não se perdoa a uma nação o momento de desatenção em que o primeiro aventureiro conseguiu violentá-la”.

Muitos se arrependeram, é verdade. No entanto, é mais verdadeiro que a grande maioria desse eleitorado ainda vibra a cada frase estúpida, cretina e vagabunda do imbecil-mor.

Bolsonaro não é “avis rara” da canalhice. Como ele, há toneladas Brasil afora.

A claque bolsonarista, à semelhança dos “dezembristas” de Luís Bonaparte, é aquela trupe de “lazzaroni”, muitos socialmente desajustados, aquela “coterie” que aplaude os vitupérios, as estultices do seu “mito”. Gente da elite, da classe média, do lumpemproletariado.

Autodenominam-se “politicamente incorretos”. Nada. É só engenharia gramatical para “gourmetizar” o cretino.

Jair Messias é um “macho” de meia tigela. É frágil, quebradiço, fugidio. Nada tem em si de masculino. É um afetado inseguro de si próprio.

E, como ele, há também outras toneladas por aí.

O bolsonarismo reuniu diante de si um apanhado de fracassados, de marginais, de seres vazios de espírito, uma patuléia cuja existência carecia até então de algum significado útil. Uma gentalha ressentida, apodrecida, sem voz, que encontrou, agora, seu representante perfeito.

O bolsonarismo ousou voar alto, mas o tombo poderá ser infinitamente mais doloroso, cedo ou tarde.

Nem todo bolsonarista é canalha, mas todo canalha é bolsonarista.

Jair Messias Bolsonaro é a parte podre de um país adoecido.

A Bahia já me deu régua e compasso

A Bahia já me deu régua e compasso, quem sabe de mim sou eu, aquele abraço
Gilberto Gil

Por Ronaldo Souza

A primeira terra vista por Cabral.

A primeira missa foi rezada aqui.

O primeiro tudo foi aqui.

Aqui estão os primeiros registros da presença da Europa e da África no Brasil, com a força dessa mistura inexistente em qualquer outro canto do mundo e razão da sua inigualável e única riqueza em artes, folclore, música, cinema, culinária…

Nas suas ruas respira-se a história viva do Brasil.

Não, essa terra mágica, de estilo único, encantadora, acolhedora como nenhuma outra, de dias ensolarados e céu azul, terra onde a alegria e a felicidade deram as mãos, não há de deixar que seu povo se perca nos caminhos escuros da dor, do sofrimento, da desigualdade e da violência.

Somos filhos de Caetano e Gil e netos de Caymmi, na sua preguiça que só aos poetas é dado conhecer e curtir.

Mas não se esqueça, somos bisnetos de Castro Alves, que já tinha resolvido misturar o sangue de todos, brancos e negros.

Somos também amigos de Dodô e Osmar e por isso sempre estaremos aqui brincando o carnaval, também único e que nenhum outro povo sabe fazer e brincar igual.

No seu carnaval, Bahia, não sabem muitos, estão os gritos reprimidos e sufocados do Navio Negreiro de Castro Alves.

Vá Bahia, cante mais uma vez e mostre ao mundo a alegria de saber cantar como ninguém, tendo, lá dentro, bem fundo, no mais âmago do seu ser, reprimidas e sufocadas, todas as dores de negros, brancos, índios, homens, mulheres, todos.

Vá Bahia, mergulhe fundo e tire de lá toda sua dor e sofrimento e emerja e num só golpe de ar venha à tona e exploda de emoção.

Eu, enquanto ser humano…

Por Ronaldo Souza

“Vou estar enviando um e-mail; vou estar fazendo isso ainda hoje; vou estar orientando sua tese em breve; vou estar apresentando essa palestra no mês que vem; vou estar trabalhando…”.

Acho que posso afirmar com pouca possibilidade de erro que a pessoa que “inventou” o gerúndio como forma de falar não fazia a menor ideia do que estava fazendo e do sucesso que iria ter.

As coisas são assim, surgem e tomam conta de tudo, sem mais nem menos.

Não fazem nenhum sentido, nada com nada, lé sem lé, cré sem cré, mas viram o charme do verão.

Você viu isso onde?

Ah, não sei, mas “tá todo mundo falando”!

Cria-se uma onda e todos vão.

“Eu, enquanto ser humano…”

Um mantra.

A impressão que se tem é que parece que falar assim dá um ar solene, uma certa distinção.

Um ar superior.

Por que será que o “superior” é tão sedutor?

“Eu, enquanto ser humano…”

Haveria algo premonitório nessa frase?

O que distingue o humano do animal?

Racionalidade, pensamento…

“Eu, enquanto ser humano” pressupõe, portanto, que eu raciocino, penso e consequentemente ajo como um ser humano.

Portanto, enquanto ser humano, eu penso, reflito, planejo, desenvolvo, evoluo, cresço.

Mas há um “tempo” embutido, é uma condição temporária.

Está implícito que a condição de ser humano em mim vai se esgotar em algum momento.

Vai durar somente enquanto…

Até quando serei?

Quando chegar a hora em que não serei mais humano, serei capaz de perceber?

Aterrorizante!

Chegou.

Agora que não há mais o enquanto, que findou a minha validade como ser humano, o que sou?

Instinto!

Xingamentos, ofensas, agressões e assassinatos homofóbicos, agressões e assassinatos de mulheres, negros, índios, assassinatos por encomenda, queima de arquivos, ódio e violência explícitos na primeira fila, já fazem parte dos nossos dias como algo natural.

Esses urros não são desconhecidos.

São familiares, pois fazem parte da história dos nossos antepassados.

Como também na história dos antepassados, poderosos envolvidos e poderosos abafando todos os pecados e ruídos são os comandantes e direcionam gestos, palavras e ações que, por instinto, seguirei.

Terreno apropriado, homens e mulheres assumem de forma despudorada nas redes sociais a “legalização” da escravidão, quem sabe a maior chaga da raça humana.

Pessoas que nunca tiveram direito a nada.

 

E nada mudou.

Mesmo travestida de doutor, a ignorância abre a sua cauda e como um pavão exibe toda sua exuberância.

Os que comandam e seus seguidores/eleitores estão irmanados nessa ignorância asquerosa revestida pela podridão humana.

Manifesta-se o que pode haver de pior no ser humano.

As bestas estão soltas.

Deu-se a premonição!

Chegou.

Pior.

Chegaram.

Chegaram ao fim ao mesmo tempo muitos prazos de validade de ser humano.

“Eu, agora animal…”

Irracionalidade, irreflexão, instinto…

Estamos vivendo outra era.

Onde não nascem fortes

Por Ronaldo Souza

Como deputado, passou 28 anos de sua vida xingando, ofendendo e agredindo mulheres, negros e índios, todos, por razões diversas, pessoas pertencentes a segmentos mais vulneráveis e fragilizados.

Nada mudou.

Não compareceu a nenhum debate na campanha presidencial, fugiu de todos.

Escondido atrás de ridículos atestados médicos, ia para outra emissora de TV dar longas entrevistas na mesma hora dos debates.

Recorrendo a atestados médicos como fez, ridicularizou-os à vontade, num absoluto desrespeito à classe médica que calada estava, calada ficou, calada está e calada vai permanecer, em flagrante contraste com tempos recentes, tempos em que sempre foi tratada com respeito.

Estão preocupados com princípios esses profissionais?

Gestos e atos vergonhosos do então candidato e atual presidente não representam nenhuma novidade, muito pelo contrário.

Gestos e atos vergonhosos da classe médica até hoje não foram explicados à sociedade.

Vergonhoso.

Vergonhoso e deprimente foi também o encontro com Putin, em Davos, em 2019.

Talvez a covardia nunca tenha sido tão explícita. 

As explicações que deu só o tornaram mais ridículo, o que não se imaginava possível.

Depois de tamanho fiasco, não foi a Davos agora em 2020.

Fugiu de novo.

A incompetência que pairou sobre Davos, quando era recém eleito, foi tão grande que tremeu de vez e o fez acovardar-se novamente.

Não se tem notícia se mandou atestado médico para justificar sua ausência.

Já disse várias coisas no governo para logo depois recuar por pressões que sofre.

Em uma das recentes, disse que ia tirar a secretaria de segurança do ministério da justiça.

Pressionado (houve quem preferisse dizer ameaçado; por quem???), recuou mais uma vez e disse que não ia mais tirar.

Depois de fazer elogios rasgados ao novo ministro da cultura, expressão do seu nazismo escancarado-enrustido, e agradecer por ele ter a coragem de aceitar o cargo, “demitiu-o” cerca de 48 horas depois.

Mas, corajoso como sempre, não teve coragem de demiti-lo pessoalmente (por isso o “demitiu-o” está entre aspas).

Pediu aos ministros que avisassem a ele que estava demitido.

Mas, quem apareceu diante das câmeras (por favor, alguém aí pode perguntar a Moro se aqui devo usar câmara ou câmera?) e microfones para anunciar a demissão?

Ele.

O mico.

O valente.

O destemido.

Enquanto isso, o outro, sempre humilhado e se humilhando mais, aceita tudo porque não pode perder espaço na mídia.

A dignidade pelo emprego.

O caçador implacável de corruptos (como eles aparecem nesses momentos de grande porre da sociedade) chegou ao ponto de tirar o miliciano amigo do chefe da lista de procurados.

O homem agora aparece assassinado.

Os de sempre, da imprensa e eleitores que constituem a reserva selvagem do presidente e que tanto falavam de queima de arquivo, agora se calam.

O que poderia ser um momento único de combate à corrupção, em que crimes de corrupção e assassinatos coexistem no mesmo cenário, em que estão diretamente envolvidos a família presidencial e colaboradores, será jogado para debaixo do tapete, como há tempos acontece com outros casos, como o de Marielle.

Sob o olhar que nada vê de dois heróis nacionais.

Enfim, heróis que não se sustentam em pé e por isso se seguram um no outro, mesmo sabendo que se traem mutuamente.  

Ocorre que há muito tempo o presidente já sabe que é traído dentro do seu próprio governo, o que o torna mais inseguro ainda. Daí as idas e vindas nas decisões tomadas, sob os aplausos do seu rico auditório.

O outro, bem munido de informações, que alguns chamam de dossiês, e de olho numa vaga no STF ou na candidatura à presidência, o que sobrar, faz qualquer negócio.

Só não pode “é perder esse emprego”.

Doente de Brasil

Por Ronaldo Souza

Como a vida tem nos embrutecido ultimamente.

Vivemos dias difíceis, onde a ignorância reina e dá as cartas.

O absoluto desprezo pelo mínimo de inteligência, sensibilidade e leveza nos deixa assustados e a percepção de impotência é inevitável e paralisante.

Impossível de ignorar, estou numa luta comigo mesmo para tentar “não ver” o que está acontecendo à minha volta.

Estou tentando ser o cego que a personagem de Saramago não conseguiu ser; “se tivesses olhos para ver o que sou forçada a ver todos os dias, também quererias ficar cego”.

Conviver se tornou um martírio, uma tortura, e não é privilégio meu, sei disso.

Estou no quarto dia em que procuro não ver nada relacionado a esse retrocesso estúpido, tosco e violento que chamam de “política”.

Omisso, fraco, covarde…, pode me chamar do que quiser, não vou me aborrecer com você.

É que também estou, como diz Eliane Brum, Doente de Brasil.

E todo doente precisa de tratamento, que muitas vezes não passa de repouso.

Repousar o corpo é frequentemente recomendado pelos médicos.

Mas não é desse repouso que preciso.

Não é o corpo, que só sofre as consequências.

É o espírito, a alma.

Procurando algo para ler e em que buscar alívio para as minhas dores, fui me refugiar em Rubem Alves.

E reli “Saúde Mental”.

Reli e reli de novo.

“… saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso”.

É o que diz Rubem Alves.

Em certos tempos, lucidez é algo indesejável porque traz danos à saúde mental.

Tente ser o cego que tanto deseja a personagem de Saramago.

E fiquei pensando.

Não podia ser melhor para salvar, ou pelo menos aliviar, o meu domingo.

Não peço a ele que salve a minha semana, seria querer demais, carga muito pesada.

O domingo já serve.

E aí o meu drama de consciência.

Fiquei sem saber se devia dizer alguma coisa antes de também lhe presentear com Rubem Alves, este senhor bonito (infelizmente recentemente falecido), sorriso mais bonito ainda e convidativo e acolhedor na imagem logo aí embaixo.

Mas senti que precisava conversar com você.

Já o fiz.

E aí está o presente que me dei e agora dou a você.

Bom domingo.

Saúde Mental

Por Rubem Alves

Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.

Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh se matou. Wittgenstein se alegrou ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakovski suicidou.

Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.

Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as ideias se comportam bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado, nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, basta fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme!), ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, que tenha a coragem de pensar o que nunca pensou. Pensar é coisa muito perigosa…

Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idiotas de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. É claro que nenhuma mamãe consciente quererá que o seu filho seja como Van Gogh ou Maiakóvski. O desejável é que seja executivo de grande empresa, na pior das hipóteses funcionário do Banco do Brasil ou da CPFL. Preferível ser elefante ou tartaruga a ser borboleta ou condor. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego. Mas nunca ouvi falar de político que tivesse stress ou depressão, com exceção do Suplicy. Andam sempre fortes e certos de si mesmos, em passeatas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.

Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos.

Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes. Uma delas se chama hardware, literalmente coisa dura e a outra se denomina software, coisa mole. A hardware é constituída por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. A software é constituída por entidades espirituais – símbolos, que formam os programas e são gravados nos disquetes.

Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos, o cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo espirituais, sendo que o programa mais importante é linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele. Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso de símbolos. Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas.

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensível às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos do Drummond e o corpo fica excitado.

Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e acessórios, o software, tenha a capacidade de ouvir a música que ele toca, e de se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta, e se arrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei, no princípio: a música que saía do seu software era tão bonita que o seu hardware não suportou.

A beleza pode fazer mal à saúde mental. Sábias, portanto, são as empresas estatais, que têm retratos dos governadores e presidentes espalhados por todos os lados: eles estão lá para exorcizar a beleza e para produzir o suave estado de insensibilidade necessário ao bom trabalho.

Dadas essas reflexões científicas sobre a saúde mental, vai aqui uma receita que, se seguida à risca, garantirá que ninguém será afetado pelas perturbações que afetaram os senhores que citei no início, evitando assim o triste fim que tiveram.

Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente perigosos. Já o roque pode ser tomado à vontade, sem contra indicações. Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do Dr. Lair Ribeiro, por que arriscar-se a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. A saúde mental é um estômago que entra em convulsão sempre que lhe é servido um prato diferente. Por isso que as pessoas de boa saúde mental têm sempre as mesmas ideias. Essa cotidiana ingestão do banal é condição necessária para a produção da dormência da inteligência ligada à saúde mental. E, aos domingos, não se esqueça do Sílvio Santos e do Gugu Liberato.

Seguindo esta receita você terá uma vida tranquila, embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, ao invés de ter o fim que tiveram os senhores que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já não mais saberá como eles eram.