“Cansei de Ensinar”

O homem deve alguma coisa ao homem. Se ele ignora a dívida, isto o envenena e se ele tenta pagá-a, o débito só faz crescer. Sim, o homem deve alguma coisa ao homem e a qualidade da sua doação é a medida do homem.
John Steinbeck

Por Ronaldo Souza

Eles ficavam logo no primeiro box do ambulatório, à direita.

Uma aluna e um aluno faziam a dupla.

Diante de uma dificuldade me chamaram.

Ainda estava “no ar”, sentando no mocho, quando ela sentenciou:

“Professor, o senhor não cansou de ensinar não? Eu cansei de ensinar”.

Olhei-a e somente aí vi o que ainda não me tinha chamado a atenção; ela parecia ter a idade um pouco acima da média dos outros alunos, o que “confirmava” que já tinha tido tempo para ter ensinado alguma coisa em algum lugar.

Em outras palavras, em algum momento e por algum tempo de sua vida ela tinha sido professora. Por quanto tempo e de que, não perguntei.

Comecei a mostrar o que deviam fazer, iniciei o procedimento e logo em seguida disse que dali por diante eles continuariam.

Nos poucos minutos em que orientava e mostrava como fazer, o questionamento dela tinha fincado âncoras na minha mente.

E, incrível, ao mesmo tempo, desenhou-se toda a resposta na minha cabeça, de tal maneira que antes de levantar me dirigi a ela e, ainda sentado, respondi.

Para mim foi tão marcante aquele momento que ao me levantar já tinha como certo que um dia escreveria alguma coisa sobre o acontecido.

Isso foi há cerca de 2 ou 3 anos.

Apesar do tempo decorrido, posso lhe garantir que seria capaz de contar a você sem margem de erro o que disse a ela.

Naquele momento, havia um paciente na cadeira, o que não me permitia me alongar na resposta.

Aqui, entretanto, vou me permitir estende-la um pouco mais.

Ninguém cansa de ensinar

Olha, quanto ao que você disse, acho que ninguém cansa de ensinar.

Se você perguntar a alguém, qualquer pessoa, que já tenha tido oportunidade de dar uma aula, fazer uma palestra, uma conferência, o que seja, se ela gostou, muito provavelmente você a ouvirá dizer que foi sensacional e uma das coisas mais prazerosas que ela já fez.

E essa coisa sensacional, esse prazer, parece que não tem fim.

Que fique bem claro, entretanto, que entre as razões para isso, reconheça-se, está o ego.

Não há como negar.

Poucas vezes o ego é tão confortável e prazerosamente massageado quanto quando se dá aula. A endorfina abre uma “nova” rede de capilares e se dissemina pelo corpo, ilumina o professor e acende a sua alma.

E é bom que seja assim, pois o ego ocupa lugar de destaque no mundo acadêmico.

O grande problema é quando ele se apossa do professor, algo que não é incomum, pelo contrário. Alimenta-lo nessas condições muitas vezes significa atropelar até mesmo as amizades. 

Pode haver algo mais prazeroso e saudável do que contribuir para o desenvolvimento do ser humano?

Por que razão você acha que professores são as referências maiores em países com alto IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)?

Algo assim, tão forte e prazeroso, não existe por um desejo que se manifesta  e se faz somente no momento em que você entra na sala para dar aula. Implica em muito mais coisa, desde o momento em que se organiza a aula, algo também muito prazeroso.

Para desenvolver a atividade, para ensinar, há todo um contexto, no qual o relacionamento com diversas pessoas, como colegas professores e alunos, tem peso muito grande. Incluem-se o diretor/coordenador da faculdade, cúpula diretora da instituição, funcionários…

Nesse contexto, você verá e terá que aprender que as inter-relações nem sempre são tão simples e há momentos em que elas passam por retrocessos que têm a ver com a estagnação ou até mesmo involução do desenvolvimento.

De grande relevância nesse processo, contribui para isso o momento que se vive.

Por mecanismos que parecem se repetir ciclicamente, não é incomum que a inteligência e a sensibilidade sofram abalos graves e o conhecimento seja desprezado.

Nesses momentos, todo o panorama se modifica e aí tudo fica mais difícil ainda. Resta-nos então a esperança, eterna companheira, de jamais perdermos a esperança.

Não pelo ensinar, mas por todo o contexto, é bem possível que se aquela aluna fosse professora hoje, tivesse ficado mais cansada ainda.

Talvez nunca tenha sido tão difícil ensinar.

Está muito cansativo e não são poucos os professores que dizem que está ficando insuportável.

E, por favor, dizer que isso seria mais um desafio da docência é desprezar a sensatez.

A complexidade do ensino-aprendizagem não se resolverá com pensamentos lineares como esse.

Para que serve a esperança?

Como a utopia descrita uma vez pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano, para caminhar.

Caminhemos então de mãos dadas com ela.

Se neste momento parece ser a nossa única alternativa, que o façamos com força.

“Somos muitíssimo mais do que nos dizem que somos”.
Eduardo Galeano

Navegar é preciso; viver não é preciso

Fernando Pessoa

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

Circuito Nacional de Endodontia

Por Ronaldo Souza

Em 2006, o Prof. Gilson Sydney me propôs a criação de um “evento” de Endodontia em Curitiba e Salvador, um ano em cada cidade.

De imediato aceitei a ideia, mas também de imediato propus faze-la de maneira um pouco diferente.

Por imaginar o quanto poderia ser cansativa e repetitiva a sua realização somente em duas cidades, sugeri uma pequena modificação.

Tendo em vista que o evento nascia apoiado fundamentalmente na força de uma amizade que se consolidara ao longo dos anos, propus a incorporação de outro grande amigo nosso, o Prof. Carlos Estrela.

Como envolveria três cidades, Curitiba, Goiânia e Salvador, seus respectivos estados e regiões do país (Sul, Centro Oeste e Nordeste), sugeri então o nome Circuito Nacional de Endodontia.

Foram momentos ricos de idealização e criação e os nossos batimentos cardíacos acelerados acusavam a pulsação arterial mais forte por conta de uma alegria “jovial de jovens não mais jovens” (permitam-me) e por isso contagiante.

Mas, estranho, a sensação não era plena.

E a razão era o fato de que outro grande amigo estaria ausente desse feliz encontro.

Pelo fato de à época estar morando na Inglaterra, o Prof. José Antônio Poli de Figueiredo e o Rio Grande do Sul “não estavam” no Circuito.

O Circuito Nacional de Endodontia nunca teve como lastro as faculdades às quais estavam vinculados os professores, nem as suas cidades e respectivos estados.

O seu grande lastro, e isso ficou evidente e foi registrado desde o início, era a amizade daqueles homens.

E foi muito interessante como desde o primeiro momento, ainda 2006 em Salvador, eu e Gilson “estabelecemos” que o Circuito Nacional de Endodontia não teria presidente, talvez como reflexo do que a vida ensina sobre a às vezes frágil estrutura psicológica do homem.

A vaidade pode levar o homem por caminhos que ele nem sempre deseja trilhar.

Mas esta é apenas uma particularidade. Há outras.

Por um pedido meu, também ficou estabelecido que as duas primeiras etapas seriam Curitiba (2007) e Goiânia (2008). Salvador ficaria por último, como de fato ocorreu, em 2009.

Na sequência, em 2010, quando voltava a Curitiba, ao Circuito foi incorporada a cidade de Campinas (SP), através do Prof. Rielson Cardoso. Em 2011, ele já ocorreu em Campinas.

Nesse espaço de tempo, três cidades e seus respectivos estados manifestaram desejo de se incorporar ao Circuito.

Conversamos, observamos, mas não aconteceu.

Nunca foi desejo do Circuito Nacional de Endodontia ser grande.

De ser o melhor, sim. Sobre isso, temos a nossa análise.

Mas um velho desejo tinha agora todas as possibilidades.

E em 2016, numa conversa a caminho do aeroporto, o professor Figueiredo me confirmava a “chegada” do Rio Grande do Sul.

Ali estava o velho e bom amigo “inglês” que impedira a plenitude da alegria “jovial de jovens não mais jovens”. Em 2018, o evento foi realizado em Porto Alegre.

Mais recentemente tivemos mais dois contatos, mas, por razões diversas, não aconteceu.

Até então nos moldes tradicionais, foi em 2009 em Salvador que ocorreu o primeiro debate do Circuito Nacional de Endodontia, atividade que passou a ser uma característica do evento; em todas as etapas, o turno ou o dia é finalizado com um debate.

Tornou-se uma marca forte.

Não tenho nenhuma dúvida de que outros eventos também adotarão essa postura, tão saudável e essencial para o real desenvolvimento de qualquer especialidade.

Sejam bem-vindos.

Estarei na torcida para que isso aconteça.

Características assim foram definindo o “jeito” de ser do Circuito, o que não tardou a ser reconhecido pela comunidade endodôntica.

O Circuito Nacional de Endodontia não exibe a Endodontia, conversa com ela.

E mais do que isso, traz a Endodontia para a discussão, para o debate. A Endodontia é exposta à discussão, afinal “da discussão nasce a luz”.

As empresas comerciais ligadas à Endodontia, parceiras de vários momentos, souberam entender, porque também perceberam que ali havia algo mais.

O Circuito Nacional de Endodontia representa o triunfo da ciência endodôntica e da atividade clínica num corpo só, mas, sobretudo, a festa da amizade.

Quando amizade e princípios estão no comando, tudo é mais sólido, mais consistente.

Nesse sentido, o Circuito Nacional de Endodontia é um evento único.

E este foi o legado maior que o Prof. Gilson Sydney nos deixou.

Poucas vezes vi exemplo maior desses valores.

Gilson é um exemplo para todos nós.

Entretanto, não são poucas as vezes em que a vida se põe à nossa frente e abre o seu leque de eventuais dificuldades, oportunidades e alternativas e nesse momento estou me afastando desse evento que se tornou o mais representativo da Endodontia brasileira e que poucos serão capazes de imaginar o que representa para mim. 

Não tenho nenhuma dúvida de que o Circuito Nacional de Endodontia estará em mãos que saberão preservar as suas conquistas.

Aqui, sob o Céu e o Sol da Bahia e a proteção dos Orixás, estarei torcendo por isso.

Ser Professor

Por Ronaldo Souza

Não sei se já havia um roteiro traçado, se foi obra do destino, se foi um presente, se foi o tempo necessário para aprender a ser e a respeitar, não sei.

A verdade é que só fui ser professor quando já tinha 27 anos de formado.

Foram 27 anos de consultório.

Todos os dias, pela manhã e à tarde, no início entrando pela noite.

Depois, mais 10 anos entre consultório e docência, com o primeiro ainda dono da maior fatia das minhas horas.

Trinta e sete anos, no total.

Hoje, docência e pesquisa.

Quando aconteceu de me tornar professor, a sala de aula passou a ser uma espécie de palco, o palco da minha vida.

No melhor dos sentidos, como se fosse um grande auditório ali passou a se dar o espetáculo da minha vida.

E todos os palcos e auditórios pelos quais já passei sempre foram e são uma sala de aula.

Nada mais que isso.

Entenda assim o que representa a sala de aula para mim.

Talvez eu ainda nem saiba direito o que é exatamente ser professor, mas a sala de aula é uma espécie de território sagrado.

Na sala de aula não há negociação.

Na sala de aula não pode haver negociação.

A sala de aula não é lugar de negociação.

É, como disse, território sagrado.

Ali é onde o professor se despe e expõe vasos e vísceras.

Ali é onde o professor se mostra bom e ruim, belo e feio, forte e fraco, virtuoso e vergonhoso.

Como ele é.

Ali não há o “ser ou não ser”, o professor é.

Ainda que cada vez mais pareça ficar mais claro que o aluno sequer percebe, ali, naquele lugar sagrado, o verdadeiro professor é.

Que bom seria que todos percebessem.

Que bom será quando todos perceberem.

Mas entenda que o professor não vive esperando por essa resposta.

Como dizia (Heitor) Villa Lobos; “quando faço uma música, é como se escrevesse uma carta para a posteridade; não espero resposta”.

O professor já tem a resposta.

Já tem a resposta do que ele é, do que ele representa, perceba-se ou não, e essa resposta não depende do juízo de outros.

O professor não bate metas.

Não precisa.

Não deve.

Ele não concorre ao funcionário do mês e a sua foto não precisa de uma parede.

Mas quando o professor esquece o que é ser professor e “abandona” a sala de aula, quando tem outros encontros marcados e desvia o olhar, tudo muda.

É quando tudo fica feio.

“Eu sou um acadêmico, não um gerente”.

Esta frase faz parte de um dos ótimos diálogos entre o Papa Bento XVI e o ainda Cardial Jorge Bergoglio (hoje Papa Francisco), no belo filme “Dois Papas”, do brasileiro Fernando Meirelles.

O professor é um acadêmico, não um gerente ou qualquer outra coisa.

Estamos nos perdendo.

“O erro não se torna verdade por se difundir e multiplicar facilmente. Do mesmo modo a verdade não se torna erro pelo fato de ninguém a ver.”
Gandhi

A verdade não pode surgir pela força da repetição do descompromisso, por mais que isso possa parecer normal.

Tem sido muito triste ver professores esquecerem o compromisso com o ensino, com o aluno.

Ainda que certos valores possam trazer mais conforto e bem-estar à vida pessoal do professor, não deveriam ser esses os que norteiam a sua vida.

Por esses professores, o respeito deixa de existir com relativa facilidade, por mais que não seja demonstrado e consequentemente percebido.

Tem sido muito difícil conviver e lidar com o momento!

O aperto de mão!

O abraço, esse então, é terrível!

Tornou-se mais difícil conservar o sorriso, tão necessário para a foto do álbum.

Como conceber um professor que não fala mais pela Universidade, ou pelo menos somente por ela?

Os seus dois olhos não mais são um.

Agora são dois.

Cada um em uma direção, cada um visando objetivo diferente.

Olho por olho.

Para quem trabalha a Universidade?

Como pode ela ser plena se o professor não é mais.

Como pode ela ser plena se o professor se autoimpôs a perda do maior dos seus bens, a liberdade?

Quando o professor perde a liberdade, decreta-se a sua morte.

Com ele, morre a Universidade.

Procura-se uma parede.

A foto está esperando.

Filtrando os filtros

Por Ronaldo Souza

Levantar a bandeira contra a corrupção e fazer dela uma “luta diária” é uma das melhores, mais práticas e acertadas formas de oportunismo e de esconder a própria corrupção de maneira que poucos percebam.

A experiência ensina que é muito comum o corrupto assumir a linha de frente do combate à corrupção.

Não precisa fazer nenhum esforço para confirmar, basta observar o momento atual.

Não pense que o moralismo é novidade.

Há muito tempo é assim, pelo menos no Brasil.

Em vários momentos da nossa história isso ocorreu e sempre com a participação decisiva da imprensa, judiciário e boa parte dos políticos brasileiros.

A participação da sociedade se dá de duas maneiras; através dos donos do dinheiro bancando a empreitada (o custo é alto) e a pressão que passa a existir por parte de alguns segmentos que se deixam enganar sempre e muito facilmente.

Chega a um ponto em que quem se põe no meio do caminho tentando desmascarar o “conto do vigário” (expressão antiga usada em Portugal e no Brasil que define uma história criada para enganar alguém), passa a ser taxado de corrupto.

E aí, inocentemente ou mal intencionadas (nos tempos atuais a segunda alternativa tem sido o padrão), essas pessoas que lutam contra “a corrupção que tomou conta do país” saem chamando os outros de corruptos.

Qualquer pessoa que tenha o mínimo de inteligência e discernimento percebe isso facilmente, particularmente nas redes sociais.

Nelas vivem e delas se alimentam pessoas que são conhecidas dentro de suas categorias profissionais e especialidades como desonestas, mas que aos domingos costumam ir ao Farol da Barra e às demais avenidas paulistas espalhadas pelo país com as suas indefectíveis camisas amarelas da CBF (padrão FIFA) para protestar contra a… corrupção.

Achando pouco, alguns chegam a se enrolar na bandeira brasileira, numa demonstração inequívoca do amor pelo país e de que são exemplares pessoas do bem.

Deixemos de lado a hipocrisia, também tão em moda atualmente. São facilmente identificados, reconhecidos e citados em conversas informais.

Só eles não sabem disso.

Por mais que sejam desonestos, como muitos são, por mais que sejam cínicos, como muitos são, por mais que sejam canalhas, como muitos são, como falar deles?

A ética não permite.

Ética!

Como Democracia, é uma palavra que anda na boca de todos e que se tornou algo sem valor.

Tão repetidas que são, ambas se tornaram vulgares e provocam irritação só em serem ouvidas.

Veja o futebol, para muitos um ambiente não muito recomendável.

Observe que quando um comentarista, um repórter, um jornalista, seja o que for, fala mal de um jogador, não se considera algo antiético.

Mas quando um comentarista fala de outro comentarista, isso é antiético.

Quando um repórter fala de outro repórter é antiético.

Da mesma forma, quando um jornalista fala de outro jornalista.

A mesma coisa se o jogador fizer isso com relação a outro jogador.

Aproveito e abro um parêntese.

Há muitos anos fiz parte do Departamento Médico do Bahia e um dos ambientes mais éticos que conheci foi o dos jogadores.

Diria que praticamente não ouvi um jogador falar mal de outro (um em particular não era respeitado por eles e acho que foi o único que vi não ser poupado).

Talvez muitos estranhem o que acabei de dizer (não sei como é hoje, muita coisa mudou), mas conviver um pouco com eles me ensinou algumas coisas.

Fecho o parêntese.

Por que eu disse que o futebol é “para muitos um ambiente não muito recomendável”?

Todos achamos que o futebol não é um ambiente recomendável pelo “baixo nível” dos jogadores.

Infelizmente, devemos reconhecer que muitos jogadores de futebol têm origem em estratos sociais menos favorecidos sob o aspecto socioeconômico, o que leva a uma educação formal de nível inferior ou até inexistente.

Como consequência, somos induzidos a um erro grosseiro; confundir esse aspecto com caráter.

Onde eu disse “aproveito e abro um parêntese”, agora faço questão de reafirmar; foi entre os jogadores de futebol onde vi um dos mais fortes exemplos de ética.

Não teria muitas facilidades para dizer a mesma coisa em relação a outros segmentos sociais com os quais convivi e convivo.

Olhe à sua volta.

Por que precisamos de Conselhos de Ética nas nossas profissões?

Por que precisamos de Conselhos de Ética nos nossos cursos de graduação e pós-graduação?

Quem são os professores de Ética?

Você os conhece bem?

Já parou para pensar nisso?

Quais são os resultados práticos desses cursos?

Ética é algo ensinável?

Ética é algo que se aprende?

Freios e filtros

Ao longo dos séculos as sociedades precisaram de freios, que foram sendo instituídos de diversas maneiras.

O maior deles, sem dúvidas, a religião nos diz muita coisa e daí podemos tirar, quem sabe, o maior exemplo; os Dez Mandamentos, da Igreja Católica.

Até que ponto sociedades ou segmentos sociais mais desenvolvidos poderiam “dispensar” esses freios?

E os códigos e conselhos de Ética?

Diante dos tantos questionamentos (alguns vistos aí em cima) que parecem existir com relação a eles, quem poderá nos dizer que somos éticos ao falar de um jogador de futebol, mas não somos se falarmos de um colega de profissão?

Por que?

Quem poderá nos julgar?

Quem poderá nos condenar?

Sem dúvida, este é um tema muito delicado, mas há nisso tudo uma questão muito importante.

Que prejuízos o gesto, a palavra ou a ação do profissional traz ou pode trazer a um colega ou à classe?

Por que gestos, palavras ou ações no sentido contrário e que, portanto, visam proteger colega e/ou classe são passíveis de condenação moral ou mesmo judicial?

Mais do que freios, em sociedades ou pelo menos em segmentos sociais desenvolvidos, filtros seriam bem mais adequados a situações assim.

Freios são imposições da sociedade, que para isso conta com a ajuda de instituições como a Igreja e o judiciário.

Os freios costumam ser punitivos, expressão de sociedades ainda repletas de seres subdesenvolvidos.

Filtros são atributos adquiridos pela educação continuada, pelo desenvolvimento civilizatório.

Por isso, mais do que filtros sociais, eu os chamaria de filtros civilizatórios.

Apesar de não ser tão simples (precisaríamos de uma educação muito apurada, que só investimentos e tempo poderiam trazer), certamente seriam, se não a solução, mecanismos importantes nesse processo.

Freios são necessários?

Ainda sim, porque sociedades civilizadas ao ponto de elimina-los exigiriam muitos recursos, de investimentos e tempo.

Mas se freios ainda são necessários, deveriam existir em quantidade e intensidade menores.

A barbárie nada exige, a não ser bárbaros e estes ainda existem em todo o mundo.

A civilização, ao contrário, é muito exigente.

Muitas gerações são necessárias para que de fato o processo civilizatório de um povo manifeste os seus primeiros sinais.

Estamos no caminho certo?

Uma coisa é certa. 

O fracasso dos códigos e conselhos de Ética e o fracasso de medidas meramente punitivas em detrimento à educação da sociedade parecem saltar aos olhos e refletem uma sociedade com grande atraso do seu processo civilizatório.

É claro que filtros, como tudo mais, também precisam de análises constantes.

Observando-os recentemente com mais atenção, percebi que alguns me seguraram demais quando me fizeram impotente diante de colegas que não apresentavam comportamento compatível com o juramento profissional, feito naquela noite inesquecível em que tudo foi festa.

Diante dos erros cometidos, o que poderia ter sido feito?

Olhando-os com mais atenção agora, vejo que alguns ainda me seguram quando me fazem outra vez impotente diante de professores que se perderam em compromissos que vão além, mais do que deveriam, daqueles assumidos pelo professor ciente do seu papel.

A omissão diante do visto traz enorme desconforto nesses bons mas duros tempos em que a lucidez se tornou uma cruel companheira.

Seria melhor ficar cego.

“Se tivesses olhos para ver o que sou forçada a ver todos os dias, também quererias ficar cego”.
Personagem de (José) Saramago, no seu antológico livro “Ensaio sobre a Cegueira”.

A cegueira é amiga, traz conforto.

“O que os olhos não veem, o coração não padece”.

A lucidez fere, machuca e lhe tira o sono.

“Vocês não sabem o que é ter olhos num mundo de cegos… sou simplesmente a que nasceu para ver o horror”.
Mesma personagem, no mesmo livro.

Aí está o grande dilema.

Não sou cego.

Veríssimo fala do Deprimente da República

A estupidez não é novidade no Brasil, temos uma história de ódio e violência
que vai longe. A novidade é a estupidez com acesso às redes sociais

Por Ronaldo Souza

Essa entrevista de Luis Fernando Veríssimo está sensacional.

Brilhante como sempre, a sutileza dele chega a níveis inalcançáveis (seria inalcanssáveis? Por favor, liga aí e pergunta ao ministro da educação) para a reserva selvagem do deprimente da república (segundo Fraga, jornalista gaúcho e um dos entrevistadores, o primeiro à esquerda na imagem aí embaixo).

Tentei trazer só as questões principais, mas como ficou difícil “deixar” alguma coisa terminei trazendo quase toda ela. Como sei que “eles” não vão ler (tem mais de cinco linhas e aí eles nem tocam) e se lessem não iam “pegar” nada mesmo, fiquei mais tranquilo.

Como diz a apresentação (logo abaixo), Veríssimo aceitou dar a entrevista em nome do combate à estupidez.

E como disse o próprio Veríssimo em outra entrevista há cerca de 3 semanas, combater a estupidez desanima.

Realmente, o estágio em que se encontra a estupidez no país é altamente desanimador. 

Veja a apresentação feita pelo próprio Brasil de Fato e em seguida a deliciosa entrevista.


Por que o maior cronista brasileiro vivo aceitou esta entrevista? Não oferecemos grana nem glória – que glória, aliás, poderíamos oferecer a quem acaba de ter o romance O Clube dos Anjos traduzido para o mandarim? Aceitou pelo combate, o melhor deles, o combate à estupidez. Aí, deu no que deu: Luis Fernando Verissimo concedeu sua maior entrevista, tanto em número de perguntas como de respostas – para quem fala pouco, o homem fala pra chuchu. De quebra driblou, com brilho, não apenas o Bolsonaro como a malícia dos entrevistadores. Enfim, todos saímos ganhando, exceto o governo. Governo? Pobre palavra, como tantas outras, nas mãos dos brilhantes ustras da incomunicação.

Entrevista com Luis Fernando Veríssimo para Jornal Brasil de Fato

‘O nosso lado está com a razão mas o lado deles está armado’

Ayrton Centeno – Lembro que, lá na virada do milênio, no auge do neoliberalismo, você disse que estávamos entrando em um novo século só não se sabia qual. E agora, já descobriu?

Luis Fernando Verissimo – A gente só conhece o futuro quando ele chega, e aí não é mais futuro, é presente, e irreversível. Quem diria que o século em que estávamos entrando, no Brasil, era o 19?

Ernani Ssó – Quando Bolsonaro disse I love you ao Trump não deveria estar vestido de rosa, conforme orientação da ministra Damares?

Verissimo – Dizem que o mais constrangedor foi o Bolsonaro pedir uma mecha do cabelo do Trump e oferecer, em troca, a Petrobras.

Fraga– Vamos supor o clássico clichê com o Bozonaro: que um dia ele fosse, de espontânea vontade, pruma ilha deserta. Que livros, discos e filmes  tu achas que o deprimente da república levaria?

Verissimo – Gibis do Capitão América.

Ernani– Por falar em clichê, digamos que você, num desses acasos tão comuns nas anedotas, está em um elevador com o Bolsonaro, o Moro e o Guedes e a joça tranca entre dois andares. Você daria uma bolacha em cada um e depois alegaria escusável medo, surpresa ou violenta emoção?

Verissimo – O difícil seria decidir em quem bater primeiro. O Guedes não porque só ele sabe como fazer o elevador funcionar, ou diz que sabe mas não conta? O Moro porque nem registraria o golpe, continuaria com a mesma cara de “o que é que eu estou fazendo aqui?” e saudade de Curitiba? Ou o Bolsonaro por qualquer razão?

Schröder– No teu entendimento, qual o ministro realiza melhor o projeto de gestão intelectual e técnica anunciada pelo Bolsonaro?

Verissimo – A competição entre ministros e secretários de governo é grande e fica difícil escolher o pior. No momento a liderança está entre o novo chefe da Funarte, segundo o qual o rock leva ao satanismo, e a conselheira cultural que disse que dois minuto de sexo bastam para impregnar uma mulher e mais do que isso causa dependência e socialismo.

Centeno– Paulo Guedes declarou que os pobres não sabem poupar. Como mais da metade da população vive com até R$ 413 mensais, parece que o ministro da economia fez faculdade sempre colando na prova de matemática. Ou não?

Verissimo – Guedes tem razão. Se todos os pobres do Brasil poupassem seu dinheiro nossos problemas estariam resolvidos, sem necessidade de um ministro da Economia. Mas os pobres insistem em gastar seu dinheiro em supérfluos, como comida. Assim não dá.

Centeno– Tem gente que acha que Bolsonaro e sua trupe nos prestaram um serviço: destamparam a face mais estúpida, sórdida e violenta do país que nunca havia aflorado até então. Você acha que devemos dizer “Obrigado” para ele?

Verissimo – A estupidez não é novidade no Brasil, temos uma história de ódio e violência que vai longe. A novidade é a estupidez com acesso às redes sociais.

Centeno– A sociedade brasileira está, como nunca, polarizada. Amigos rompem relações, famílias se dividem. Pior é que pessoas que você pensava que conhecia, de repente, aparecem falando em terra plana e votando em Bolsonaro. Você viveu esta experiência?

Verissimo – Sei que já tem gente usando faixas na testa com os dizeres “Estou com o Bolsonaro”, “Sou contra o Bolsonaro” e “Não quero falar de política”, sem as quais nenhum tipo de vida social será possível.

Centeno– Voltando àquela outra questão: lembra daquele clássico B de ficção científica, Invasores de corpos, do Don Siegel? Aquele onde as pessoas, ao dormirem, são substituídas por vagens vindas do espaço e se transformam em cópias sem empatia alguma. Não lembra algo familiar?

Verissimo – Estamos nos transformando em vagens. Hmmm… De certa maneira é um futuro menos assustador do que a reeleição do Bolsonaro com o Alexandre Frota como vice.

Centeno– Durante muito tempo, nossas elites sentiram-se afrontadas por Marx, homem do século 19. Hoje, parece que se sentem afrontadas por Copérnico, homem do século 16, que comprovou que nosso planeta gira em torno do Sol. Qual será a próxima conclusão secular da ciência que iremos afrontar?

Verissimo – Dizem que Copérnico, Galileu, Darwin e todos os opositores do criacionismo serão banidos dos livros escolares brasileiros e substituídos pela nova teoria do evolucionismo militar, segundo a qual toda a raça humana começou como soldados rasos e foi subindo de grau.

Ernani– Todo governo mente, claro, mas o caso do reinado Bolsonaro é especial: os mentirosos não apenas mentem como parecem, eles próprios, acreditar nas mentiras que dizem…

Verissimo – No caso do Bolsonaro o rei não só está nu como desfila com uma radiografia computadorizada do seu interior, e mesmo assim poucos, curiosamente, gritam “Ele está nu!”

Centeno– “Agora é guerra” você escreveu recentemente sobre a loucura que estamos vivendo. O problema é que, do outro lado, estão as milícias…

Verissimo – O nosso lado está com a razão mas o lado deles está com os AK 154, certo. Mas lembrem-se que o David não precisou de mais do que um estilingue.

Fraga– Dá pra imaginar como são as reuniões do condomínio do Bozo, com ele presente? Qual seria uma pauta típica?

Verissimo – Discutiriam, certamente, a contratação de porteiros mais confiáveis.

Schröder– Entre o Cabo Anselmo, o Tenente Bolsonaro e o General da Banda, quem representa melhor a tradição militar brasileira?

Verissimo – Sem dúvida o General da Banda, que nos impede de desesperar por completo dos nossos militares.

Ernani– Naquela velha comédia One, two, three (no Brasil, como sempre, ganhou um título “criativo”: Cupido não tem bandeira) do Billy Wilder, um jovem acha justo que a humanidade seja varrida da terra. Então, o personagem do James Cagney responde: “Não se saiu tão mal uma espécie que deu o Taj Mahal, Shakespeare e a pasta de dentes com listinhas”. Bom, Bolsonaro não criou a estupidez que se vê do Oiapoque ao Chuí, apenas levou as pessoas a ostentarem ela na rua e baterem no peito com orgulho. A pergunta é: depois disso a espécie tem alguma defesa, apesar da pasta de dente com listinha?

Verissimo – Além de Shakespeare, do Taj Mahal e da pasta de dente com listinha eu teria uma enorme relação de justificativas para a passagem do homem sobre Terra, começando pelo pudim de laranja e terminando pelo Charlie Parker. A espécie não é culpada pelos seus dementes e torturadores.

Edgar Vasques – Como imagina que os historiadores descreverão este período que enfrentamos? Que começou em 2016 e virou demência em 2018. E qual o papel da mídia na abertura das portas do inferno?

Verissimo – A História terá dificuldade em entender o fenômeno Bolsonaro, mas talvez desenvolva uma lógica para explicá-lo. Para a História, o tempo acaba explicando até o ilógico. Quanto ao papel da mídia, não existe uma mídia só. Entre coniventes, subservientes, bem e mal-intencionados, heroicos e bandidos, tivemos de tudo. Acho que com o tempo a História também nos compreenderá.

Centeno– A propósito, o jornalista H. L. Mencken tinha uma definição implacável do jornal médio dos EUA. Diz que tinha “a inteligência de um carola caipira, a coragem de um rato, a imparcialidade de um fundamentalista, a informação de um porteiro de ginásio, o gosto de um criador de flores artificiais e a honra de um advogado de porta de cadeia”. E os nossos?

Verissimo – Mencken era um misantropo genial. O que ele pensava da espécie humana se multiplicava quando comentava a imprensa do seu país. Não sei se a nossa imprensa merece um rancor parecido. Ou talvez não mereça outra coisa.

Ernani– Bolsonaro quer transformar todas as escolas em escolas militares. Mas, considerando o nível intelectual do general Heleno, do general Mourão e do próprio Bolsonaro, não é de se pensar que a inteligência militar é uma contradição em termos, como dizia Gore Vidal?

Verissimo – Escolas militarizadas são a consequência natural do espírito que se instalou no país, com a eleição do Bolsonaro. Vamos ver qual será a primeira a receber o nome Coronel Ustra.

Centeno– Admitindo-se a hipótese criacionista – o que parece ser questão de tempo nas escolas públicas ou não – onde Deus errou ao criar o Brasil?

Verissimo – Deus criou um paradoxo, um país gigantesco e menor ao mesmo tempo.

Imagine

Por Ronaldo Souza

“Influenciada por Jéssica Senra – a jornalista baiana que viralizou ao falar sobre o caso – a atriz Juliana Paes também engrossou o coro contra a contratação do goleiro esquartejador de mulheres.

Ela lançou a tag ‘Meu ídolo não é feminicida’ e declarou-se, enfim, ‘defensora da causa da violência contra a mulher’.”

Este é um trecho da crônica “Juliana Paes não entendeu que lutar contra violência de gênero é lutar contra Bolsonaro”, de Nathalí Macedo, jornalista também baiana, no Diário do Centro do Mundo.

Nathalí sabe que há palavras e palavras, frases e frases, entrevistas e entrevistas.

Sabe também que as ditas ou feitas por “artistas” como Juliana Paes têm pouca ou nenhuma credibilidade.

Em cima do muro, veja o que ela disse há pouco tempo numa entrevista ao jornal O Globo:

“Torço para que o país dê certo independente de quem esteja em Brasília; Não bato palma para tudo que o presidente Jair Bolsonaro diz, mas vamos apoiar já que ele está lá. Não vou boicotar. Essa polarização é boba”.

Platitude na sua mais pura expressão.

É esperta quando diz “não vou boicotar”.

Será que imagina que ela ou qualquer outro mortal tem o poder de boicotar um presidente da república e faz isso a hora que quer e como quer?

Frase inteiramente descabida e tola que pretende ter algum efeito além de ser ridícula.

Não se trata de boicotar, até porque, de tão incompetente, o próprio governo se boicota e não faz outra coisa desde que tomou posse.

Pessoas como Juliana Paes dizem frases que parecem, aos tolos, ter algum conteúdo, quando, na verdade, nada dizem. Não dizem o que talvez até desejassem dizer e se escondem em palavras e frases ditas ao vento, sem nenhum valor.

Talvez por ignorância mesmo ou por conveniência cínica, desconhecem ou ignoram a verdade que poderia estar na frase, mas, por desonestidade ou covardia, não está.

Fazer uma tag ‘Meu ídolo não é feminicida’ e declarar-se “defensora da causa da violência contra a mulher” nessas condições é absolutamente lamentável.

Típico de quem, mais uma vez, por ignorância, cinismo, oportunismo ou covardia, seja o que for, não assume que para ser isso que ela quer mostrar não pode sair por aí dizendo que “vamos apoiar (Bolsonaro) já que ele está lá. Não vou boicotar. Essa polarização é boba”.

Puro oportunismo e demonstração de desconexão total com os fatos.

Como conceber tamanha incapacidade de correlacionar as coisas em pessoas que, como ela, têm acesso à informação?

Hastear a bandeira contra o feminicídio e dizer-se “defensora da causa da violência contra a mulher” e eleger e defender Bolsonaro é jogar pra torcida de forma vergonhosa.

E o que é pior, joga para as duas torcidas.

Bolsonaro representa tudo isso e mais alguma coisa que ela agora diz lutar contra.

Se agora Juliana Paes é isso que tenta mostrar ser, que venha a público, afinal ela é uma personagem pública, e assuma a sua reprovação aos homens que ofendem, humilham, agridem, estupram e matam mulheres, porque assim fazem mulheres de verdade.

Só assim ela teria alguma credibilidade, seria respeitada e fortaleceria a luta das mulheres.

Caso contrário, ela se torna uma mulher desprezível.

Ou será que somente o goleiro Bruno justifica a tag ‘Meu ídolo não é feminicida’?

E o outro ídolo, o mito?

E Mariele?

E Maria do Rosário?

E as tantas mulheres, inclusive jornalistas e atrizes, que foram e são ofendidas, humilhadas e agredidas por ele em todos esses anos de sua vida como político?

Será que a artista de novelas Juliana Paes não está vendo o que esse governo fez e está fazendo com a atriz e grande dama da dramaturgia brasileira Fernanda Montenegro, mulher como ela?

Ou ela, como tantas outras, também não é capaz de associar e correlacionar palavras, gestos e ações de homens como ele e os que o assessoram?

“Defensora da causa da violência contra a mulher”???

Como diria o escritor português Eça de Queiroz, “ou é má fé cínica ou obtusidade córnea”.

Voltei no tempo, doze anos atrás, quando escrevi A vida é bela.

“Todos vamos ao teatro, ao cinema, aplaudimos, rimos, choramos e depois vamos a um jantar, deixando para trás qualquer relação que aquilo que nos fez aplaudir, rir, chorar, possa ter com as nossas vidas. É só diversão, lazer, entretenimento. Perdemos o senso crítico. Não aquele de julgar o desempenho do ator e da atriz, mas, o que nos leva a fazer projeções, inferências, tentando trazer aquela obra para a vida, ou vice-versa…

Falei então sobre o filme Central do Brasil, por coincidência, brilhantemente interpretado por Fernanda Montenegro e concluí assim o texto.

A vida é bela. Viram? Então, com toda certeza, riram e choraram. Mais uma vez, a arte tenta mostrar como, às vezes, fazem a vida. Quem poderia, nas nossas vidas, gerar atos de tamanha violência, mesmo que disfarçada. Quem, pelo poder, poderia esquecer os mais elementares direitos à vida, através da arrogância e da prepotência. Mas, sobretudo, quem, como a personagem do filme, tem procurado dar vida à vida?

Sem profundidade, Juliana Paes representa um segmento que nada tem a acrescentar, que não vê e não sente a vida como ela é.

São passageiros do barco da conveniência.

Um barco de viagens curtas, cujo destino é a meta traçada.

Nada mais.

“Boa Praça”

Era o primeiro “Boa Praça” deste ano.

É como é conhecida uma “feirinha” muito legal, realizada regularmente em algumas praças de Salvador. Nesse caso, naquela em que faço minhas caminhadas, sobre a qual falei há poucos dias em Luzes do Natal.

Um pequeno pedaço da noite de domingo, 12/01.

A emoção tomou conta.

Hey Jude, don’t make it bad
Take a sad song and make it better
Remember to let her into your heart
Then you can start to make it better 

Something in the way she moves
Attracts me like no other lover
Something in the way she woos me
I don’t want to leave her now
You know I believe and how

A praça se emocionava a cada música, estava bonito demais.

Com a minha mulher e nossas filhas, emocionei-me algumas vezes ao som da banda cover dos Beatles.

Imagine.

Viajei.

Uma viagem gostosa, doce, suave, romântica.

Uma viagem em que emoção e lágrimas insistiam em não aceitar qualquer tentativa de contenção, como se quisessem se exibir.

Mas havia algo estranho, que incomodava.

Algo não batia.

O que queria dizer John Lennon com “Imagine there’s no countries…, nothing to kill or die for…, living life in peace…, a brotherhood of man…, and the world will be as one?

Um mundo sem fronteiras, sem posses, o homem vivendo uma irmandade, em paz, o mundo vivendo como se fosse uma coisa só, igual.

Será que aquelas pessoas sentiam John Lennon e atendiam ao seu pedido “to let her into your heart”?

Não, não conseguia acreditar que os que estavam ali participando entusiasticamente daquele pequeno e maravilhoso pedaço da noite de domingo estivessem sendo capazes de sentir os Beatles.

Não acreditava que estivessem sendo capazes de entender que para sentir os Beatles é preciso amor.

Não existe Beatles sem amor.

Apesar das aparências, aquele contexto já é conhecido e não permite grandes esperanças.

Ou alguém duvida que naquela praça, daquele bairro, onde só residem pessoas do bem, muitos que estavam ali, eu diria com grandes chances de serem maioria, seriam pessoas que, como Juliana Paes, falam do amor, do amor à mulher, mas idolatram quem a maltrata?

É possível entender e sentir o pulsar da alma da mulher e cantar o amor por ela “ao lado” de alguém que descreve o nascimento da filha como uma “fraquejada”?

Eles amam?

Conhecem verdadeiramente esse sentimento que alimenta o mundo, que o transforma e permite que os que amam ainda encontrem força e razão para viver nele.

Será que aqueles que estavam naquele espaço conseguiam entender a conexão que deveria existir ali para dali levar para tantos outros espaços como aquele?

Estavam sentindo as vibrações que emanavam naquele momento ou simplesmente mais uma vez voltariam para casa deixando para trás qualquer relação que aquilo que nos fez aplaudir, rir, chorar, possa ter com as nossas vidas?

Haveria ali, de fato, vida pulsante, ou seria aquele mais um barco da conveniência, com meros passageiros sem nada a acrescentar, que não veem e não vivem a vida como ela é?

Lembra que citei o escritor português Eça de Queiroz aí em cima, quando ele diz “ou é má fé cínica ou obtusidade córnea”?

Acho que são as duas coisas.

Eles se deixaram levar pelo preconceito e ódio e se tornaram obtusos e cínicos.

Desejo-lhes o mal?

Não, a cada um deles desejo que evolua, se reencontre e se reconcilie consigo mesmo para que tenha um final com a alma menos atormentada.

E aí só com amor no coração.

Só ele constrói.

Ou reconstrói.

All you need is love
All you need is love
All you need is love
Love
Love is all you need

Nasceu para vencer

Por Ronaldo Souza

“Mais um
Mais um Bahia…

Assim canta um dos trechos do Hino do Bahia.

Cantamos mais um no sábado (11/01) da inauguração do novo Centro de Treinamento do Bahia.

Centro de Treinamento, CT, Cidade Tricolor, Centro de Treinamento Evaristo de Macedo… como quer que venha a se tornar mais conhecido, é … mais um, mais um Bahia, mais um, mais um título de glória, mais um, mais um Bahia, é assim que se resume a sua história.

Sim, é assim que se resume a sua história, uma história repleta de glórias.

Desse passado de glórias, dá-se agora mais um grande passo para um futuro que honra e dignifica a existência de um clube de futebol.

E muitas coisas ocorreram até a chegada desse momento.

Coisas que também aconteceram na vida de outros clubes, mas que não tiveram a mesma resposta, algo aliás muito natural, afinal os clubes não são iguais.

Não é pelo desejo de alguém, seja do presidente ou mesmo da torcida, que um time é ou se torna grande.

Como disse Guilherme Bellintani, atual presidente do clube, no seu discurso, entre os requisitos necessários para que um time seja de fato grande, ele precisa de ousadia.

Não a ousadia dos simplesmente ousados, dos atrevidos, fruto da ignorância ativa.

A ousadia construída e alicerçada na consciência da visão capaz de transformar o imaginado no por realizar.

A inauguração da Cidade Tricolor – Centro de Treinamento Evaristo de Macedo, sem dúvida, pelas suas características, eleva o Bahia a um patamar jamais alcançado pelo clube e representa o grande salto de qualidade que está sendo dado.

Mas não é essa a maior ousadia.

O Bahia foi o primeiro campeão nacional do Brasil.

O Bahia foi o primeiro time do Brasil a disputar a Copa Libertadores das Américas.

O Bahia é o único time do Nordeste a se sagrar bicampeão brasileiro.

O Bahia foi o primeiro…

Não, não vou dizer que o Bahia foi o primeiro time do Brasil a ser manchete no The Guardian.

Não vou dizer que o Bahia foi o primeiro time do Brasil a merecer uma matéria especial no The Guardian.

Talvez até seja, não sei.

Afinal, o Bahia é o primeiro em um bocado de coisa.

E hoje é o time mais progressista do Brasil.

Não pense que é porque o The Guardian disse.

O The Guardian só fez reconhecer, como outros já o fazem e mais outros ainda o farão.

O Bahia é!

Ponto.

E também não é porque inaugurou o Centro de Treinamento (ainda inconcluído) mais moderno do Norte e Nordeste e um dos mais modernos e melhores do Brasil.

O Bahia é o time mais progressista do Brasil porque ousou ir muito além do jardim.

Nunca, jamais, em tempo nenhum, qualquer outro time de futebol do país se voltou para o seu povo, para a sua torcida, a Torcida de Ouro do Brasil como há poucos anos reconheceu a CBF, como fez e faz o Bahia.

Num esporte cuja origem das pessoas que na sua imensa maioria o praticam tem as suas raízes nas camadas mais simples da população, nunca um clube de futebol fez e está fazendo tanto para trazer essas pessoas de volta para o centro das discussões.

Nunca, jamais, em tempo nenhum, um clube de futebol ousou tanto assim.

Nunca, um clube de futebol estimulou e promoveu tantas ações de inclusão social como fez e está fazendo o Bahia.

Nunca, um clube fez tanto para trazer de volta esse segmento da sociedade cujo mérito, o fato de ter sido a grande razão de existir do futebol brasileiro, de te-lo feito forte e motivo de orgulho nacional, como já foi, pasmem, foi esquecido.

Aos poucos afastado, o povo brasileiro, berço de grandes craques e do gênio do futebol nacional e internacional, vê agora o acenar de uma bandeira.

Uma bandeira branca, chamando para a Paz no futebol.

Uma bandeira branca que traz todas as cores, raças, credos, religiões, gêneros…, hoje tremula no coração de um clube de futebol.

Sim, um clube que tem coração e alma.

Que deu ao seu povo o direito de escolher o presidente do seu time, algo tão parte da sua vida, como nenhum outro fez.

Até pelo preço da cerveja para o seu torcedor dentro da Fonte Nova o Bahia brigou.

E ganhou.

Fez reduzir o seu preço.

“O Bahia reduziu preços, deu voz aos torcedores, abordou questões políticas e se dedicou ao ‘carinho, integração e amor”, diz a matéria do The Guardian.

Sem dúvida, ousadias jamais tentadas.

Ousadias ousadas demais.

Ousadias do Bahia.

Bahia
Bahia minha vida
Bahia meu orgulho
Bahia meu amor…

Bahia, orgulho de um povo, orgulho de uma nação.

Pessoas do Bem

Por Ronaldo Souza

“Direitos humanos são para humanos direitos”

Ah, como é bom sabermos que somos pessoas do bem, não é mesmo?

É sempre bom fazer parte da categoria dos predestinados porque seremos os predestinados escolhidos por predestinados que se autopredestinaram para então poder determinar quem são os predestinados.

É muito bom, é sensacional.

Como nascem os predestinados?

Inicialmente, a predestinação é vislumbrada.

A primeira coisa que fazem é se autopredestinarem.

Eles se autodeclaram.

Os eleitos pelos deuses criam então uma categoria, a dos predestinados.

E aí criam medalhas, prêmios…

Como projeto bem sucedido e que avança, em breve será criada a Sociedade das Pessoas do Bem.

Inteligência, sensibilidade e conhecimento serão os requisitos fundamentais para fazer parte dela, mas consta que os autodeclarados, que irão fazer a seleção, já estão pensando em modificar para dificultar mais a “entrada” de membros. Estão percebendo que esse critério de seleção é pouco restritivo, pois observações feitas nas redes sociais (que serão o grande termômetro da Sociedade das Pessoas do Bem) têm demonstrado o enorme aumento da inteligência, sensibilidade e conhecimento na sociedade brasileira e assim entraria gente demais.

E toda sociedade que se pretende poderosa e distinta tem que ter mecanismos fortes de restrição.

“Bandido bom é bandido morto”

Existem inúmeros momentos que refletem claramente esse grande aumento da inteligência, sensibilidade e conhecimento na sociedade brasileira.

A frase lá em cima, “direitos humanos são para humanos direitos”, representa um deles, um momento que beira a genialidade.

Bandido bom é bandido morto” é outro desses momentos, sem dúvida, uma frase de rara sensibilidade e de demonstração do grande desenvolvimento dos futuros membros desse seleto grupo.

Não à toa, este será o lema da Sociedade das Pessoas do Bem.

Tudo ficará mais fácil e confortável.

Por exemplo.

Quando os garis, aqueles seres que recolhem o nosso lixo no dia-a-dia (infelizmente vamos continuar precisando deles), criarem essa distinção na classe saberemos quem são os garis do bem e os garis do mal.

Será muito bom porque escolheremos para recolher o nosso lixo somente os garis do bem, claro.

Exigiremos do prefeito que somente eles façam isso, os garis do mal ficarão para os bairros da periferia, onde certamente não moram pessoas do bem.

E o prefeito terá que acatar, afinal, precisa do nosso voto, o voto das pessoas do bem, que é um voto diferenciado, vale mais.

Assim será com dentistas, médicos, arquitetos, advogados, engenheiros…

Ficará mais fácil fazermos a tão sonhada separação, elemento indispensável para a criação, desenvolvimento e perpetuação de qualquer sociedade que se preze.

Teremos lojas específicas para as pessoas do bem (de griffe) e para as outras.

E os restaurantes e bares?

Serão identificados de acordo com a sua categoria.

Para não chocar muito e nos chamarem de excludentes, serão criadas decorações específicas para identificação de quem é quem.

Tudo isso por arquitetos do bem, claro.

E atenção!

Fica estabelecido que todos os membros da Sociedade das Pessoas do Bem serão obrigados (sociedade sem democracia não funciona) a postar fotos e mais fotos das viagens a Miami, inclusive da comida que comem nos restaurantes chiques (não, tire isso e ponha chic, original em francês e mais compatível com a Sociedade).

Sabe qual é a boa?

Há notícias de que restaurantes em lugares assim estão pensando em criar uma taxa que você paga só para sentar e tirar foto do prato. Será um preço acessível para um investimento que vale a pena para manter o status de pessoa do bem, sem ter que comer aquilo.

Para os restaurantes é um retorno interessante porque se livram mais rapidamente das pessoas do bem do Brasil, que costumam ser muito bem vistas por lá, pela finesse que possuem.

Depois você sai e vai comer um McDonald’s, afinal é um “prato” americano, portanto, também internacional.

Não é legal?

Os consultórios serão bastante diferentes.

Haverá consultórios dos dentistas do bem e consultório dos outros, para os outros, porque é claro que não só os pacientes do bem precisam ser atendidos, mas também os outros que não são do bem (devem ser do mal).

Haverá consultórios dos dentistas do bem e consultórios dos outros.

Haverá consultórios dos médicos do bem e consultórios dos outros.

Não poderá haver falhas nessas decorações.

Assim será com sanitários públicos, supermercados…

Não se preocupe, não haverá como dizer que é segregacionismo, por uma razão bem simples.

Ninguém tem culpa de ser uma pessoa do bem.

E ninguém tem culpa também de que eventualmente só existam brancos entre as pessoas do bem.

É seleção natural.

É evolução.

É Darwin.

Ou ……?

Paradigmas da Endodontia. Final

Por Ronaldo Souza

O êxito final do tratamento endodôntico está condicionado à qualidade da obturação

Por incrível que deveria parecer, ainda hoje se ensina a obturação como fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico.

Essa concepção, criada por Ingle em 1956, tornou-se possível e se difundiu mundo afora graças ao famoso estudo de Washington. Apoia-se fundamentalmente em dois pilares; o travamento apical perfeito do cone de guta percha e o consequente vedamento hermético que proporcionaria, contando, claro, com a participação do cimento obturador.

Vejamos isso.

A grande causa, a maior, das alterações pulpares é a cárie. Fiquemos nela para facilitar a compreensão.

1. Por onde chegam as bactérias que promovem a cárie, pela coroa ou pelo ápice radicular?

Precisa responder?

2. Em condições normais, na região periapical existe bactéria?

Não.

Bactérias conseguem sobreviver nos tecidos periapicais?

Ainda motivo de controvérsia, normalmente não. Alguns autores dizem que é possível, outros dizem que não. Como este texto não pretende ser um artigo científico formal, não colocarei aqui nomes de autores que defendem uma ou outra concepção e muito menos as bactérias que teriam essa capacidade. Só lhe digo que seriam muito poucas.

Por que essa dificuldade das bactérias em sobreviver nos tecidos periapicais?

Porque expostas ao ambiente periapical, estariam sujeitas e dificilmente resistiriam ao sistema imune do paciente (no sistema de canais estão protegidas) e isso só ocorre em situações bem específicas.

Em condições normais, portanto, não existem bactérias no periápice.

Como se ensinou e se ensina a fazer obturação ao longo dos anos?

Era (ainda é?) imprescindível que se conseguisse o travamento apical perfeito do cone de guta parcha, cortando-se a sua ponta para travar bem ou mudando o cone para um de calibre maior.

Quando você concluía a obturação estavam lá o cone principal e acessórios com os seus excessos saindo pela porção coronária. Você os cortava, aproveitava o momento de guta percha aquecida, portanto, plastificada, acomodava, condensava verticalmente e selava a coroa.

Independentemente das técnicas mais modernas, para muitos ainda é assim numa quantidade considerável de vezes.

Em que momento você gastava mais tempo? Promovendo o travamento perfeito do cone (o professor dizia que não estava bom e aí se cortava o cone com uma lâmina de bisturi ou trocava o cone até chegar ao travamento ideal) ou “acomodando” a guta percha na entrada do canal para colocar o cimento selador da coroa?

O que lhe disse a sua memória?

Percebeu a inversão?

No local por onde não “chegam” os microrganismos, o ápice radicular, você gastava um tempo enorme para fazer a obturação perfeita, que travasse o cone perfeitamente e vedasse hermeticamente o canal.

No local em que elas existem aos milhões, o ambiente bucal, e por onde elas iniciam o processo de invasão do sistema de canais, a embocadura do canal (terço cervical), você simplesmente concluía a obturação sem maiores preocupações, muitas vezes até com pressa e “jogando” o cimento selador coronário para “fechar” o dente.

Se as bactérias que promovem a cárie, invadem o sistema de canais, promovem necrose pulpar e infecção do sistema de canais chegam pela coroa/terço cervical do canal, por que cuidados especiais sempre foram destinados ao travamento do cone e vedamento hermético no ápice radicular?

Percebe a enorme distorção de valores e preocupações?

Este é o primeiro equívoco e foi consagrado durante mais de 60 anos.

Vamos simplificar o restante de maneira simples, direta e objetiva:

  1. O travamento do cone principal de guta percha como sinônimo de vedamento hermético nunca existiu e não existe.
  2. O vedamento hermético do canal nunca existiu e não existe.

Faz algum sentido insistir com o ensino de uma especialidade que tem como fundamento um princípio que nunca foi comprovado em mais de 60 anos?

Faz algum sentido insistir com o ensino dessa Endodontia que diz que o êxito final do tratamento endodôntico está condicionado à qualidade da obturação”.

Não importa quem disse isso, até porque representa o pensamento dos professores de um modo geral.

Há mudanças no horizonte?

Espero que sim.

Mais uma vez, como já fiz em diversos momentos, quem tiver trabalhos que confirmem a existência de vedamento hermético, por favor, envie ou diga onde encontra-los.

“A obturação é um componente importante para o tratamento, mas deve ser vista como um complemento para o controle de infecção”.
Figdor, D

Deixo aqui dois artigos sobre esse tema para você ler, é só clicar sobre eles. Vale a pena.

  1. Healing of apical periodontitis after endodontic treatment with and without obturation in dogs
  2. Relationship between the apical limit of root canal filling and repair

Já postei informações detalhadas sobre o primeiro no texto Paradigmas da Endodontia. 3ª parte e o que disse lá repito aqui. Estranho muito que um belo trabalho, publicado em 2006 (está fazendo 14 anos) até hoje não tenha despertado curiosidade e interesse dos pesquisadores em investir em mais pesquisas e publicações sobre a importância da obturação e seu real papel no tratamento endodôntico.

Estranho e lamento que seja assim.

Li o artigo abaixo há cerca de dois meses.

Falta de evidências para a necessidade de obturação do canal

Esta é a tradução do título desse interessante trabalho, que entre outras coisas diz: 

  • A despeito dessa óbvia falta de evidências da necessidade da obturação…
  • Tem sido repetidamente demonstrado que os materiais e técnicas de obturação existentes não conseguem promover vedamento hermético, sem espaços vazios…
  • As bactérias têm demonstrado que não só são capazes de crescer nos materiais obturadores como também de degrada-los
  • A presença da obturação não impede a bactéria de novamente ocupar o espaço interno do canal e causar o fracasso do tratamento
  • Mesmo se uma obturação perfeita fosse possível, haveria espaço suficiente para o crescimento bacteriano

Quando o li, entrei em contato com o professor Matthias Karl, um dos autores, professor na Alemanha, e desde então temos conversado bastante.

Logo no seu segundo e-mail, uma das coisas que ele me disse foi isso:

“Seeing the huge amount of stupid ‘research’ done in this field comparing sealer A vs. B and file C vs. D often drives me crazy and no one does the really important things… it is difficult to fight with established opinions…”

“Ver a enorme quantidade de ‘pesquisas’ estúpidas feitas nesse campo, comparando cimento A vs. B e lima C vs. D, muitas vezes me deixa louco e ninguém faz as coisas realmente importantes… é difícil lutar com opiniões estabelecidas”

Na mosca.

Devo esclarecer que, como se trata de comunicação pessoal, estou devidamente autorizado por ele a usar o seu texto.

Você faz ideia de quantos artigos já foram publicados comparando cimentos obturadores?

Você faz ideia de quantos artigos já foram publicados comparando limas?

Não faz?

Também não.

Posso lhe dizer, porém, que devem existir centenas.

Não é de “deixar louco” saber que existem centenas de artigos que falam de instrumentos e materiais, mas que praticamente inexistem artigos como o de Sabeti e colaboradores (o primeiro dos dois cujos links deixei aí em cima) que falam de Endodontia e mostram como ela é de fato?

Por conta de muitos “publicadores”, a nossa ciência anda cada vez menos científica.

Publicam, publicam, publicam… e o que fica?

Produz-se muito, aproveita-se muito pouco.

O prazo de validade é até que surja um novo instrumento, um novo cimento…

“Ninguém faz as coisas realmente importantes”.

Mas o currículo está lá para mostrar que aquele publicador é importante porque tem muitas publicações em periódicos importantes.

Segundo (Miguel) Nicolelis, brasileiro que é tido como um dos maiores cientistas do mundo, Einstein jamais seria pesquisador A1 do CNPq aqui no Brasil.

Pense no que isso significa.

Os paradigmas da Endodontia não são necessariamente repensados e modificados por quem publica muito em periódicos ditos importantes. Por alguns deles, tudo continua como está, nada se modifica e a Ciência se torna algo que só se repete. Por favor, vá à primeira parte deste texto, Paradigmas da Endodontia, e leia logo no começo “Como nasce um paradigma”. 

…com frequência, se processa uma separação definitiva entre o falado e o vivido, e a ciência se torna um jogo de conceitos… Malabarismo verbal, virtuosismo conceitual.
Rubem Alves

Os paradigmas são repensados e modificados por trabalhos que ousam, abrem novas perspectivas e mostram novos caminhos, ainda que eventualmente nem sejam publicados em periódicos consagrados e tão lidos nos primeiros momentos.

Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que vêem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas.
Schpoenhauer

A Ciência, como a Natureza, tem o seu tempo. É nele que “as coisas realmente importantes”, como diz o professor Matthias Karl, acontecem.

Enquanto isso, as coisas sem importância nos deixam loucos.

Repito aqui os dois questionamentos com que encerrei o Paradigmas da Endodontia. 3ª parte.

  1. Devemos continuar ignorando as evidências que “ameaçam” contestar as “incontestáveis evidências” da necessidade de travamento perfeito do cone de guta percha, vedamento hermético e da obturação como fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico?
  2. Devemos considerar o que pode estar surgindo de consistente na Endodontia ou simplesmente seguir encantados com as maravilhas da mais recente e avançada lima, sistema de instrumentação, sistema de obturação, do mais novo cimento obturador…?

Há uma Endodontia que ainda está por vir.