O homem deve alguma coisa ao homem. Se ele ignora a dívida, isto o envenena e se ele tenta pagá-a, o débito só faz crescer. Sim, o homem deve alguma coisa ao homem e a qualidade da sua doação é a medida do homem.
John Steinbeck
Por Ronaldo Souza
Eles ficavam logo no primeiro box do ambulatório, à direita.
Uma aluna e um aluno faziam a dupla.
Diante de uma dificuldade me chamaram.
Ainda estava “no ar”, sentando no mocho, quando ela sentenciou:
“Professor, o senhor não cansou de ensinar não? Eu cansei de ensinar”.
Olhei-a e somente aí vi o que ainda não me tinha chamado a atenção; ela parecia ter a idade um pouco acima da média dos outros alunos, o que “confirmava” que já tinha tido tempo para ter ensinado alguma coisa em algum lugar.
Em outras palavras, em algum momento e por algum tempo de sua vida ela tinha sido professora. Por quanto tempo e de que, não perguntei.
Comecei a mostrar o que deviam fazer, iniciei o procedimento e logo em seguida disse que dali por diante eles continuariam.
Nos poucos minutos em que orientava e mostrava como fazer, o questionamento dela tinha fincado âncoras na minha mente.
E, incrível, ao mesmo tempo, desenhou-se toda a resposta na minha cabeça, de tal maneira que antes de levantar me dirigi a ela e, ainda sentado, respondi.
Para mim foi tão marcante aquele momento que ao me levantar já tinha como certo que um dia escreveria alguma coisa sobre o acontecido.
Isso foi há cerca de 2 ou 3 anos.
Apesar do tempo decorrido, posso lhe garantir que seria capaz de contar a você sem margem de erro o que disse a ela.
Naquele momento, havia um paciente na cadeira, o que não me permitia me alongar na resposta.
Aqui, entretanto, vou me permitir estende-la um pouco mais.
Ninguém cansa de ensinar
Olha, quanto ao que você disse, acho que ninguém cansa de ensinar.
Se você perguntar a alguém, qualquer pessoa, que já tenha tido oportunidade de dar uma aula, fazer uma palestra, uma conferência, o que seja, se ela gostou, muito provavelmente você a ouvirá dizer que foi sensacional e uma das coisas mais prazerosas que ela já fez.
E essa coisa sensacional, esse prazer, parece que não tem fim.
Que fique bem claro, entretanto, que entre as razões para isso, reconheça-se, está o ego.
Não há como negar.
Poucas vezes o ego é tão confortável e prazerosamente massageado quanto quando se dá aula. A endorfina abre uma “nova” rede de capilares e se dissemina pelo corpo, ilumina o professor e acende a sua alma.
E é bom que seja assim, pois o ego ocupa lugar de destaque no mundo acadêmico.
O grande problema é quando ele se apossa do professor, algo que não é incomum, pelo contrário. Alimenta-lo nessas condições muitas vezes significa atropelar até mesmo as amizades.
Pode haver algo mais prazeroso e saudável do que contribuir para o desenvolvimento do ser humano?
Por que razão você acha que professores são as referências maiores em países com alto IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)?
Algo assim, tão forte e prazeroso, não existe por um desejo que se manifesta e se faz somente no momento em que você entra na sala para dar aula. Implica em muito mais coisa, desde o momento em que se organiza a aula, algo também muito prazeroso.
Para desenvolver a atividade, para ensinar, há todo um contexto, no qual o relacionamento com diversas pessoas, como colegas professores e alunos, tem peso muito grande. Incluem-se o diretor/coordenador da faculdade, cúpula diretora da instituição, funcionários…
Nesse contexto, você verá e terá que aprender que as inter-relações nem sempre são tão simples e há momentos em que elas passam por retrocessos que têm a ver com a estagnação ou até mesmo involução do desenvolvimento.
De grande relevância nesse processo, contribui para isso o momento que se vive.
Por mecanismos que parecem se repetir ciclicamente, não é incomum que a inteligência e a sensibilidade sofram abalos graves e o conhecimento seja desprezado.
Nesses momentos, todo o panorama se modifica e aí tudo fica mais difícil ainda. Resta-nos então a esperança, eterna companheira, de jamais perdermos a esperança.
Não pelo ensinar, mas por todo o contexto, é bem possível que se aquela aluna fosse professora hoje, tivesse ficado mais cansada ainda.
Talvez nunca tenha sido tão difícil ensinar.
Está muito cansativo e não são poucos os professores que dizem que está ficando insuportável.
E, por favor, dizer que isso seria mais um desafio da docência é desprezar a sensatez.
A complexidade do ensino-aprendizagem não se resolverá com pensamentos lineares como esse.
Para que serve a esperança?
Como a utopia descrita uma vez pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano, para caminhar.
Caminhemos então de mãos dadas com ela.
Se neste momento parece ser a nossa única alternativa, que o façamos com força.
“Somos muitíssimo mais do que nos dizem que somos”.
Eduardo Galeano