Utopia e Paixão

Por Ronaldo Souza

Enquanto escrevia Utopias e Desejos, lembrei-me de imediato de Roberto Freire; psiquiatra, jornalista, diretor de teatro e escritor, que criou a terapia denominada Soma; a Somaterapia.

Acho que li praticamente todos os livros de Roberto Freire: “Cleo e Daniel”, “Coiote”, “Ame e dê vexame”…, mas os livros dos quais me lembrei no momento citado foram “Utopia e Paixão” (título deste artigo) e “Sem tesão não há solução”.

A utopia está incorporada ao poeta, artista, filósofo, escritor…, faz parte da vida deles.

Mas, engana-se quem pensa que só faz parte da vida deles!

Quando perguntei no referido texto (Utopias e Desejos) “É possível viver sem utopia?”, já dei à pergunta uma conotação que insinuava que não, não é possível viver sem ela. Para logo em seguida dizer que “mesmo estando incorporada à vida, utopia é algo que muitas vezes foge da compreensão”.

Veja o belo depoimento de Eduardo Galeano, escritor uruguaio, autor de “As veias abertas da América Latina”.

Era admirável a paixão de Paulo Freire pelo ensino/aprendizagem, o que o tornou um educador respeitado, admirado e referência em todo o mundo.

De uma certa forma, o ensino/aprendizagem idealizado por Paulo Freire é uma utopia.

Utopia é paixão!

Ensino/aprendizagem é paixão.

Algumas palavras perderam importância e peso, de tanto que têm sido utilizadas com absoluta ausência de significado real. Tornaram-se um imenso vazio e cairam na vala das banalidades.

Amigo é uma delas.

O sentimento que nos faz realmente amigos é forte demais e nada tem a ver com a conotação que se dá há muito tempo à palavra. Que o diga o significado mais recente; o das redes sociais, onde todos são… amigos!

Banalizado também está o amor que se diz ter pela profissão/especialidade.

Sempre me causou arrepios ouvir em reuniões “amo meus alunos” e ouvir e ver coisas diferentes fora das “câmeras e microfones”.

Amo isso, amo aquilo e, diante da primeira oportunidade, num estalar de dedos, abandona-se isso e aquilo.

Estamos realmente precisando de cursos de harmonização. Almas e corações estão em desarmonia!

O que significa para o ensino, por exemplo, o pedido de redução de carga horária de um professor?

Dar aulas não nos transforma automaticamente em professores.

Ser professor é algo muito maior.

Não são muitos os que compreendem Paulo Freire e sua paixão pelo ensino.

Só trilha esse caminho, como diz Eduardo Galeano, quem sonha, quem delira, quem tem paixão, quem faz da utopia a sua forma de caminhar.

Sem tesão não há solução!

Utopias e Desejos

Por Ronaldo Souza

Independentemente de eventuais divergências e concordâncias com as opiniões de um autor, a importância dele tem muito a ver com a sua capacidade de iluminar caminhos. Alguns vão além e se tornam mestres em ampliar/abrir novos caminhos e mostrar novas possibilidades.

Assim também é com o professor.

Ocorre que essa característica só se torna possível quando o professor/autor identifica e assume os riscos de mudar o que existe, muitas vezes, já consagrado pelo tempo.

Ganhei recentemente de minha mulher mais dois livros, ambos de Rubem Alves.

Rubem Alves é inspirador e boa parte de sua escrita é dedicada às coisas do ensino.

Em “Ostra feliz não faz pérola”, um desses livros, deparei-me com o texto abaixo, cujo título é “Desejos”. 

Quem irá concordar ou divergir do desejo dele?

Talvez não seja o que mais importa, mas, sim, o que ele será capaz de despertar em cada um de nós.

Desejos podem ter origem nos sonhos, nas utopias, e estas costumam ser vistas de forma pejorativa nesse mundo onde reina o pragmatismo.

É possível viver sem utopia?

Mesmo estando incorporada à vida, utopia é algo que muitas vezes foge da compreensão. 

Por essa razão, e sabendo que falarei disso em outro momento, resolvi dar o título “Utopias” a este meu breve texto de introdução ao “Desejos”.

Utopias e desejos andam juntos.

Veja Rubem Alves.

Desejos

Por Rubem Alves

Quero viver muitos anos mais. Mas com alegria. Quero ter forças para travar as batalhas que julgo importantes! A preservação da Amazônia! Viver com mais sabedoria! Entre a multidão dos meus desejos para a educação, elejo como minha prioridade acabar com os vestibulares. Os vestibulares são, a meu ver, a coisa mais estúpida que estraga a educação. Não me importam os vestibulares como processo seletivo para a entrada nas universidades. Importa-me o que eles fazem com todo o processo escolar que os antecede. Em primeiro lugar, eles são inúteis. Os supostos saberes exigidos para os malditos exames estão condenados ao esquecimento. Eu não passaria nos vestibulares, nossos reitores não passariam nos vestibulares, os professores de cursinhos não passariam nos vestibulares. Os especialistas em português tombariam diante dos problemas de física e química. Os professores de física e química tombariam diante das questões de análise sintática. Memória ruim? Não. Memória inteligente. A memória inteligente sabe esquecer o que não faz sentido. E a desgraça é que as escolas, desde o seu início, vivem sob a sombra do grande bicho-papão. Quem determina os saberes a serem sabidos são os professores que preparam as questões para os exames. E, então, as questões fundamentais da educação, da formação humana dos alunos, são enviadas para o porão. O prazer da leitura? Quem pensa que leitura dá prazer quando ela é obrigatória? Não existe forma mais rápida de fazer um aluno detestar a leitura que fazer dela um dever de que se terá de prestar contas. A apreciação da música, a educação dos sentidos, a curiosidade vagabunda… Tudo é deixado de fora. Tanto sofrimento para nada – porque tudo é esquecido. Além de inúteis são perniciosos, porque criam hábitos mentais tortos. Para cada pergunta há uma resposta correta! Mas na vida  não é assim! Nem na ciência. A ciência se faz com uma infinidade de erros. Sem os vestibulares, as escolas estariam livres para realmente educar. Quero o fim dos vestibulares. Mas que processo os substituiria? Minha sugestão: um sorteio… Loucura? Parece, mas não é.

Modelando o canal

Por Ronaldo Souza

Engana-se quem pensa que o ato operatório é um ato mecânico. É um ato mecânico no momento de sua execução, entretanto, ele não existe somente nesse momento. Ele existe antes na mente do operador. É lá que tudo começa.

Compreendido de uma forma, será executado daquela forma.

Não parece difícil deduzir, portanto, que, uma vez mal idealizado, é grande a tendência de ser mal realizado; o fracasso deverá ser o seu destino.

O que é instrumentar o canal?

Instrumentar é, com um instrumento, ou, com instrumentos, exercer uma ação (mecânica) no canal.

O que é irrigar o canal?

Considerando-se a postura clássica, irrigar é, com agulhas/cânulas de irrigação/aspiração, exercer essa ação (física) no canal.

Ações distintas, instrumentação e irrigação, que, juntas, constituem o preparo do canal. Na sequência, virá o complemento desse ato operatório; a obturação.

O que lhe parece mais completo, o que definiria melhor o tratamento endodôntico e tornaria mais fácil a compreensão de suas etapas e objetivos?

  1. Instrumentar o canal e obturar
  2. Irrigar o canal e obturar
  3. Preparar o canal e obturar

Na primeira alternativa, a irrigação estaria de fora. Na segunda, seria a vez da instrumentação. Na terceira, ambas estariam contempladas.

A compreensão precisa preceder a execução!

Atos operatórios devem ser executados sem a devida compreensão do que e porque estão sendo feitos?

Em outras palavras, é sensato fazer sem saber por quê?

O que é modelar?

Modelar é dar uma forma.

Sob a perspectiva em questão, modelagem pode ser vista como sinônimo de preparo de canal?

Com um único instrumento, por exemplo, ainda que sua conicidade não esteja bem alinhada com a do canal, pode-se fazer uma boa modelagem. No entanto, não há como firmar isso como uma verdade consolidada quando se trata de atingir o grande objetivo do preparo do canal: controle de infecção.

Expressão trazida do “cleaning and shaping” (limpeza e modelagem) de Schilder e bastante divulgada e aceita, ela parece estar levando a interpretações equivocadas.

Repito.

Modelar é dar uma forma.

Nada mais!

A contra argumentação com o “fica subentendido que…” se torna perigosa porque pode trazer despreocupação e negligência ao ato do preparo do canal. Como tem sido dito e escrito ao longo dos anos que o objetivo do tratamento endodôntico é a obturação do canal, para esta ser bem-feita basta que se faça uma boa… modelagem.

Sendo assim, ao se obter um canal cônico (modelado), com espaço suficiente para sua obturação, ele estaria pronto para ser obturado.

E, como se sabe, modelagem não é sinônimo de preparo de canal bem-feito.

Que não se contra-argumente dizendo que ninguém ensina isso, porque cairemos na subjetividade de como as coisas são ditas, compreendidas e executadas.

Não podemos ter ilusões desse tipo.

A verdade subentendida não é a verdade.

Mesmo reconhecendo-se o lamentável desprezo que se costuma ter pela subjetividade das coisas, precisamos entender que estamos tratando de conceitos.

E conceito é teoria.

Nunca é demais lembrar que jamais faltará quem negue a importância da teoria. Esses, por sua vez, jamais compreenderão que uma especialidade do tamanho e da importância da Endodontia não pode se permitir tornar-se algo meramente mecânico. 

Qualquer especialidade que despreza os seus conceitos se torna pequena aos olhos da Ciência. 

É o que está ocorrendo com a Endodontia.

Sendo assim, talvez não seja recomendável que se associe modelagem a controle da infecção. A simples compreensão do significado da palavra a limita nesse sentido. Além disso, poderá trazer para o aluno mais atento a percepção de inadequação do ato em si, diante da responsabilidade que a ele seria atribuída. Daí, virá, para esse aluno atento, o desencanto com a especialidade.

Com o conceito de preparo do canal e a abrangência dos seus passos (acesso-instrumentação-irrigação-medicação intracanal), os nossos alunos desenvolverão percepção mais ajustada ao que realmente significa esse ato operatório.

Só há uma maneira de se conseguir controle da infecção: através do preparo bem-feito do canal.

E é sempre bom lembrar que controle de infecção é, ou deveria ser, o grande objetivo do tratamento endodôntico.

O professor e o tecnicismo educacional

Por Ronaldo Souza

A prática concreta do professor do ensino superior assenta-se sobre três pontos principais: o
conteúdo da área na qual o professor é um especialista; sua visão de educação, de homem
e de mundo; a habilidade e os conhecimentos que lhe permitem uma 
efetiva ação pedagógica em sala de aula

Uma vez uma professora me disse que “político é tudo igual, é tudo farinha do mesmo saco”.

Naquele momento, de maneira disfarçada, encerrei a conversa, voltando a falar das coisas do ambulatório.

É que para mim, já há algum tempo, aquela frase “político é tudo igual, é tudo farinha do mesmo saco” representava uma das maneiras mais insensatas de alguém exibir ignorância sociopolítica e por isso se tornara uma senha. Assim que alguém dizia aquilo, era a minha deixa para sair da conversa.

O pensamento binário parece ter fixado residência em muitas mentes. Bom e mau, homem de bem e bandido…, uma forma elementar de viver. Veem a vida como uma equação exata.                   

Só é visto o que está à vista.

Pelo primarismo intelectual, é assustador o “bandido bom é bandido morto”.

Sob o manto do pragmatismo, muitas vezes se esconde a estupidez.

Recorro a Einstein:

“Só há duas coisas que não têm limites: a estupidez humana e o infinito. Mas ainda não tenho certeza quanto ao último”.

Não percebem, mas, sob a perspectiva da frase que virou senha, muita coisa poderia ser dita em qualquer segmento profissional. Para se ter uma noção bem clara dessa questão, ainda que existam professores e professoras com esse perfil, seria sensato dizer que “professor é tudo igual, é tudo farinha do mesmo saco”?

Quem o fizesse, estaria incorrendo no mesmo erro, por fazer uma generalização igualmente estúpida e incorreta.

Vamos lá.

A prática concreta do professor do ensino superior assenta-se sobre três pontos principais: o conteúdo da área na qual o professor é um especialista; sua visão de educação, de homem e de mundo; a habilidade e os conhecimentos que lhe permitem uma efetiva ação pedagógica em sala de aula

Este trecho, que você leu lá em cima, é o início da introdução do livro “O Professor Universitário em Aula”, dos professores Maria Cecília de Abreu e Marcos Tarciso Masetto 1.

Como um dos três pontos principais para a prática docente do bom professor, consta avisão de educação, de homem e de mundo”.

À parte a questão de gênero (de homem), que, nos tempos atuais, possivelmente seria tratada de outra forma, avisão de educação, de homem e de mundodiz praticamente tudo.

Vejamos o que vem logo em seguida, no mesmo parágrafo.

No desempenho do docente do ensino superior, é comum existir uma lacuna; o professor se caracteriza como um especialista no seu campo de conhecimentos; este é, inclusive, o critério para sua seleção e contratação; porém, não necessariamente este professor domina a área educacional e pedagógica, nem de um ponto de vista mais amplo, mais filosófico, nem de um ponto de vista mais imediato, tecnológico.

Observe que, mais do que um especialista na sua área, o ser professor do ensino superior tem uma amplitude bem maior do que a que se costuma ver. 

Desse universo fazem parte avisão de educação, de homem e de mundoe domínio daárea educacional e pedagógica…, sob “um ponto de vista mais amplo, mais filosófico….

Não haveria nenhum problema quanto ao professor especialista na área correspondente e o critério para sua contratação, se houvesse uma evolução no sentido de se perceber a real dimensão do que é ser professor do ensino superior, estágio final na preparação do profissional que irá servir à sociedade! Mas isso não parece acontecer, pelo menos na frequência que se imagina e deseja.

Reconheça-se que não é tão simples quanto pode parecer, ser clínico no consultório e professor na faculdade. E aí, claro, já fica patente que estamos falando principalmente da área da saúde, de dois segmentos profissionais em particular: Medicina e Odontologia.

É muito comum ouvir coisas assim:

O verdadeiro professor é aquele que desperta o aluno”;
O professor deve desenvolver o espírito crítico do aluno”;
O professor deve despertar o aluno para os anseios da sociedade”.

Não pode haver nenhum tipo de dúvida sobre o muito que há para se conversar a respeito dessas questões, mas eu logo faria uma pergunta que nesse momento julgo fundamental.

Há terreno para isso?

Quantas escolas permitem, de fato, esse processo?

Quando falo em escolas, refiro-me particularmente às Instituições de Ensino Superior (IES).

Trago para a nossa conversa o texto de Ebenezer Menezes2, sobre tecnicismo educacional, dando destaque a dois trechos em negrito:

Tendência verificada nos anos 70, inspirada nas teorias behavioristas da aprendizagem e da abordagem sistêmica do ensino, que definiu uma prática pedagógica altamente controlada e dirigida pelo professor com atividades mecânicas inseridas numa proposta educacional rígida e passível de ser totalmente programada em detalhes. Segundo o educador José Mário Pires Azanha, o que é valorizado nesta perspectiva, não é o professor mas sim a tecnologia, e o professor passa a ser um mero especialista na aplicação de manuais e sua criatividade fica dentro dos limites possíveis e estreitos da técnica utilizada. ‘Esta orientação foi dada para as escolas pelos organismos oficiais durante os anos 60 e até hoje persiste em muitos cursos com a presença de manuais didáticos com caráter estritamente técnico e instrumental.

Nessa perspectiva, professores se tornam organizadores de disciplinas/componentes curriculares.

Como desenvolver o espírito crítico do aluno nessas condições?

O que se vê, então, é o que aí está.

Sim, há muitas questões que precisam ser discutidas.

1. Abreu MC e Masetto MT. O Professor Universitário em Aula: prática e princípios teóricos. 8ª ed. São Paulo, MG Ed. Associados. 1990

2. Menezes, Ebenezer Takuno de. Verbete tecnicismo educacional. Dicionário Interativo da Educação Brasileira – EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 2001. Disponível em www.educabrasil.com.br/tecnicismo-educacional/.

Caminhos da Endodontia

Por Ronaldo Souza

O ideal seria que a polpa fosse preservada para exercer as suas diversas funções, entre as quais a de proteger o dente.

Sabemos, entretanto, que, apesar de todo o potencial do esmalte-dentina, numa grande quantidade de vezes esse ideal não é alcançado.

Através dos mecanismos conhecidos, microrganismos criam as condições que lhes permitem invadir essas estruturas e alcançar a cavidade pulpar, um processo de agressão contínua, gradativa e inevitável, quando o devido tratamento não é realizado.

Não tratada, a recomendação era remover a polpa, cortando-a como se usasse um bisturi, deixando como remanescente o que se estabeleceu chamar de coto pulpar. Somente a sua permanência nessas condições permitiria o reparo dos tecidos apico/periapicais.

Chegou-se a idealizar um “bisturi” endodôntico (uma lima Hedstrom “modificada”) para que lá, na porção final do terço apical, a 1 mm aquém do ápice radicular, cortássemos a polpa. Corte perfeito, plano, ferida única, o ambiente ideal para o reparo.

Num requinte, o desejo foi além, no sentido de se depositar sobre o coto pulpar uma “gota” de hidróxido de cálcio.

Recomendações (corte da polpa nas condições descritas e deposição da gota de hidróxido de cálcio sobre o coto pulpar) que o tempo e a clínica se encarregaram de mostrar irrealizáveis.

Detalhe; o reparo dos tecidos apico/periapicais não deixou de ocorrer.

A polpa agredida e não tratada costuma evoluir para a necrose e infecção do canal (sistema de canais).

Percebeu-se, então, que a simples remoção do que restou dela não era suficiente para o reparo da patologia que surge como consequência; a periodontite apical.

Assim, tornava-se necessário alargar o canal para remover a infecção e, diante da eventual permanência de alguns microrganismos, vedá-lo hermeticamente. Enclausurados entre a obturação e as paredes do canal e dessa forma afastados de qualquer fonte de nutrientes, o destino era a morte para esses microrganismos.

Além disso, com esse vedamento, estaria impedida a penetração de fluidos teciduais no canal, onde, segundo a literatura endodôntica, entrariam em processo de estagnação, decomposíção e gerariam subprodutos tóxicos que fariam surgir a lesão periapical, ou manter uma já existente.

Assim, surge e se afirma o desejo de vedamento hermético!

Diversas técnicas de obturação, cones de guta percha de todos os tipos, calibres e conicidades, cimentos obturadores com as mais variadas características, propriedades, radiopacidades, escoamento, ações químicas, biológicas… tudo foi dito e feito em seu nome.

Entretanto, ao longo de cerca de 70 anos, em nenhum momento o vedamento hermético conseguiu comprovar sua existência. Muito menos sua relação direta com o sucesso do tratamento endodôntico.

O que nos resta?

Os espaços vazios?

Quais?

Aqueles nos canais, deixados por obturações eventualmente incompletas, mas cada vez menos frequentes?

Ainda que muito longe do desejo de vedamento hermético, algo muito difícil de conceber, são inegáveis os avanços no sentido de, cada vez mais, termos condições de conseguir melhor selamento dos canais, objetivo mais facilmente atingido com o reconhecimento da necessidade de restaurações coronárias também cada vez mais qualificadas, integrando-se ao conceito de proteção da cavidade pulpar, do qual faz parte a obturação do canal.

Chegando a níveis animadores essa capacidade de proteção, por que não a acompanhou na mesma intensidade o percentual de reparo dos tecidos periapicais?

Por que, por exemplo, ainda há a necessidade de tantos retratamentos?

Talvez mais do que nos canais, por conta de obturações não tão bem-feitas, a preocupação com os espaços vazios esteja nas nossas mentes.

O reconhecimento de que os espaços vazios nos canais não possuem essa relação de causa e efeito com o insucesso do tratamento endodôntico parece nos levar a interpretações equivocadas.

Pode-se imaginar, por exemplo, que esse reconhecimento nos levaria a deduzir pela não importância da obturação.

Por sua vez, essa desimportância nos levaria a não reconhecer a relevância dos materiais obturadores e daí, quem sabe, à obturações negligentes.

Que tipo de impacto poderia ter esse tipo de interpretação?

Alguns, entre os quais, o equívoco de se projetar grandes prejuízos financeiros às empresas de materiais odontológicos.

É importante entender que a discussão sobre concepção e conceitos é fundamentalmente científica e, particularmente nesse caso, não envolve técnica de realização da obturação. Sendo assim, não eliminará a importância, mais do que isso, a necessidade da obturação.

Como não existe obturação sem materiais obturadores, não há possibilidade de que os materiais obturadores sejam descartados do arsenal endodôntico.

Sem chance!

Independentemente disso, a pesquisa é feita, ou deveria ser, com um olho no compromisso com a ciência e o outro na sociedade.

Ao clínico atento, que observa com senso crítico a cena endodôntica, cabe, e ele sabe disso, esperar que surja uma luz que pelo menos nos aponte com mais clareza a explicação para casos bem-sucedidos em canais com obturações que deixam a desejar e, ao contrário, a explicação para fracassos consagrados em casos de obturações hollywoodianas. 

E o pesquisador?

Talvez exista aí alguma apreensão.

Continuará a pesquisar sob a perspectiva do paradigma da obturação, ou irá, finalmente, abrir a sua própria caixa, de lá tirar aquela ideia esquisita, pesquisá-la, descobrir e mostrar ao mundo a Endodontia como ela é?

Obs. Este texto representa o “A Endodontia Invisível! 4ª parte”.

A Endodontia Invisível. 3ª parte

Por Ronaldo Souza

“O indivíduo crítico deve então recorrer a estratégias de resistência diante de tais discursos hegemônicos dentro dos quais há pouca liberdade para expressar pensamentos”.
Holmes D, et al. (Int J Evid Based Healthc 2006; 4: 180–186)

Teria sido esse artigo aí em cima uma “estratégia de resistência”?

Não foi essa a intenção.

O que ocorre é que ele era a primeira parte de uma tríade. Quando foi publicado, eu já estava com o segundo e mais importante artigo da tríade praticamente pronto. Ou seja, o caso clínico apresentado no artigo aí em cima não estava só, perdido no firmamento da Endodontia.

Isso mostra o quanto os professores, movidos por sentimento(s) que desconheço, fizeram uma crítica, além de desastrada, precipitada. Havia um trabalho clínico, realizado durante 10 anos (entre 1987 e 1996), com acompanhamento clínico/radiográfico de até 21 anos (o último feito em 2008), que estava guardado esperando o momento para ser redigido e publicado.

Racionalismo X Empirismo

Quando se fala de ciência, não há lugar para o dogma.

Ciência não é a casa da fé, do dogma, da certeza!

Ciência é onde deveriam morar o racionalismo e o empirismo que, juntos, podem tornar mais fácil chegar ao conhecimento e assim criar evidências sólidas.

Vou trazer da 2ª parte deste texto uma provocação que fiz:

“Dessa forma, parece haver quantidade abundante de evidências dando suporte à concepção de que a obturação do canal é o fator determinante para o sucesso do tratamento endodôntico e, ao contrário, praticamente nada sobre a possibilidade de que esse papel caberia ao preparo do canal”.

Por que usei “parece haver quantidade abundante de evidências” se sei que há?

Não parece. Há!

Pelo menos é assim que todos pensam!

Agora, em cima dessa provocação, faço um questionamento:

  1. essas evidências foram construídas em base sólida?
  2. constituem, realmente, um conjunto consistente de evidências?

Evidentemente que não!

Como podem ser sólidas se jamais foram comprovadas?

Permito-me mais uma vez citar Silvia Regina Siqueira, Professora Associada da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (USP).

“Na prática, muitos caem na crença dogmática das evidências publicadas, que podem ou não ser aceitas no futuro e que poderão muito em breve ser substituídas por alguma outra novidade.

A evidência não é uma verdade sobre os fatos, mas uma teoria sobre a aparência, aguardando a próxima proposta revolucionária”.

Isso ocorre graças à ideia generalizada de que, se está publicado, merece fé. Por isso, é tão necessário que se estabeleçam normas que enquadrem.

Categorizar faz parte do processo.

Daí, nascem os qualis e os fatores de impacto!

E bíblias são criadas!

Por acaso, alguém comprovou o travamento do cone de guta percha como sinônimo de vedamento hermético?

Alguém comprovou a existência de vedamento hermético?

E, no entanto, todos os qualis e fatores de impacto deram isso como verdades inquestionáveis!

Dogmas também fazem parte do processo!

“Isso torna difícil para os estudiosos expressarem novas e diferentes ideias em um círculo intelectual onde a normalização e padronização são privilegiadas no desenvolvimento do conhecimento”.
Holmes D, et al. (Int J Evid Based Healthc 2006; 4: 180–186)

Para ajudar na discussão, trago, também da construção de minha linha de raciocínio, um trecho do 1º texto:

“Ao longo de todos esses anos, não se tem conhecimento da existência de um único trabalho que tenha comprovado a existência de vedamento hermético!”

Diante de todo esse contexto, deixemos de lado o que foi estabelecido, o que está consagrado (mas, jamais confirmado) e observemos sob a perspectiva da ciência.

Como vimos, há centenas, milhares de evidências que dizem que o reparo da lesão periapical se deve à obturação e, ao contrário, raríssimas evidências que apontam para o preparo do canal.

Onde está, de fato, a robustez científica?

Na quantidade de referências existentes que dizem que o reparo se deve à obturação, ainda que estejamos esperando há 70 anos pela sua comprovação, ou nas raríssimas evidências que apontam para o preparo do canal como o responsável por esse reparo?

Faço-lhes outra vez o mesmo questionamento e apresento a mesma resposta da 2ª parte desse texto.

“Há espaço para uma discussão desse tema?”

Sob a perspectiva de que as evidências existem em quantidade absurdamente maior a favor da obturação, não parece haver”.

Só que, agora, mudo a minha resposta: há espaço, sim! Basta tão somente, se não, ver, pelo menos imaginar a possibilidade de…

Se a lesão periapical é consequência da presença de infecção no sistema de canais e a Endodontia diz que, controlando a infecção, desaparece a lesão… o que estamos esperando?

Se enchemos o peito para falar aos nossos alunos da Endodontia apoiada em evidência, como ensinar tendo como base, como referência, ideias e concepções que durante longos 70 anos nunca se comprovaram?

Quando virá à luz a Endodontia que está aí, pedindo passagem?

Quando virá à luz e se tornará visível essa Endodontia?

Quando será permitido que isso aconteça?

O que nos impede de ver?

Se a visão física muitas vezes encontra limitações, a visão da imaginação não conhece limites.

De que vive a Ciência?

Da dúvida, da incerteza, da curiosidade, da busca, toda uma engrenagem que ativa a imaginação de professores e pesquisadores e acende a grande fogueira da Ciência.

A fogueira está aí, diante de nós!

O que estamos fazendo nós, professores e pesquisadores, para acendê-la?

O que faremos?

Achei muito forte quando em entrevista à TV Educativa da Bahia (em rede com as outras TVs Educativas do Norte/Nordeste), o psicanalista Christian Dunker (USP), respondendo a uma das perguntas, disse:

“Nós perdemos o desejo de melhorar!”

Muito forte!

A Endodontia Invisível. 2ª parte

Por Ronaldo Souza

Nos últimos 20 anos, quantos artigos foram publicados em periódicos importantes falando das virtudes dos materiais obturadores, particularmente dos cimentos, e consequentemente da obturação?

É impossível dizer, de tantos que já foram!

No mesmo período, quantos artigos foram publicados em periódicos importantes falando algo como “o insucesso não ocorre pela falha da obturação, mas pela falha do preparo do canal.”?

Quantos além do de Sabeti MA, Nekofar M, Motahhary P, Ghandi M, Simon JH. J Endod. Jul 2006, que citei no texto anterior (http://localhost/wp/endo2/a-endodontia-invisivel/)?

Dessa forma, parece haver quantidade abundante de evidências dando suporte à concepção de que a obturação do canal é o fator determinante para o sucesso do tratamento endodôntico e, ao contrário, praticamente nada sobre a possibilidade de que esse papel caberia ao preparo do canal.

Sendo assim, uma pergunta se impõe: há espaço para uma discussão desse tema?

Sob a perspectiva de que as evidências existem em quantidade absurdamente maior a favor da obturação, não parece haver.

Tanto é que essa discussão não existe!

Recordo e trago de volta um pouco de Dave Holmes et al. (Int J Evid Based Healthc 2006; 4: 180–186):

Isso torna difícil para os estudiosos expressarem novas e diferentes ideias em um círculo intelectual onde a normalização e padronização são privilegiadas no desenvolvimento do conhecimento.

 O indivíduo crítico deve então recorrer a estratégias de resistência diante de tais discursos hegemônicos dentro dos quais há pouca liberdade para expressar pensamentos.”

O que são “estratégias de resistência”?

Que estratégias são essas que permitiriam resistir e falar do que não parece haver interesse em ver e por isso se torna… invisível?

Ora, o que é invisível não existe!

Por que e para quem falar do que não existe?

Aqui, eu abro um parêntese para trazer uma história.

Vejam o artigo abaixo que publiquei em 2011. Observem no retângulo vermelho que ele foi submetido à publicação em 21 de dezembro de 2010 e aceito em 06 de janeiro de 2011.

Portanto, entre o Natal e Réveillon de 2010/2011 (duas semanas) ele foi submetido e aceito. Este pode ser considerado um prazo rápido entre submissão e aprovação, porque não é incomum levar meses para isso acontecer.

Em pleno Natal-Réveillon!

Devo imaginar que Lars Spangberg (editor científico do periódico) e revisores não devem ter encontrado erros no trabalho e, por isso, aprovaram “de imediato”.

No entanto, dois professores de Endodontia brasileiros não viram assim o artigo e carregaram nas críticas. Jogaram pesado. Apesar da rápida aprovação por Spangberg, a deduzir pelas críticas dos dois professores estávamos diante de um artigo de baixa qualidade!

Leia o artigo na íntegra clicando aqui e faça seu julgamento.

As críticas foram feitas no site do Fórum Brasileiro de Endodontia, que tinha à época (não sei como está hoje) centenas (milhares?) de participantes.

Fiquei sem entender aquela postura. E, diante da batalha entre os anjinhos e capetinhas da mente, fiquei com os anjinhos e adotei o famoso “deixa pra lá”. Fiz a vida continuar.

Por que não?

Sabe aqueles momentos que lhe pegam meio alheio às coisas, “viajando”?

Cinco anos depois, um deles me pegou e me atirou um questionamento na cara! Por que deixar passar em “brancas nuvens”?

E aí, não faço a menor ideia do porquê, exatamente 5 anos depois escrevi alguns textos sobre o ocorrido, que postei entre 08 e 17 de janeiro de 2016. Agora, 6 anos depois (sempre começo de ano), trago de volta os textos, porque eles se encaixam bem no assunto sobre o qual estamos falando: A Endodontia Invisível.

Mas, agora, com algo a mais. Detalhes ditos aí em cima não estavam naquele momento entre 08 e 17 de janeiro de 2016.

Os textos estão exatamente da mesma maneira como foram postados na época. Peguei cada crítica feita, uma a uma, e respondi contrapondo a agressividade dos comentários com respostas bem humoradas.

Vou dar um tempo para que vocês possam ler os textos (abaixo), para eu voltar a postar os atuais na sequência que estamos fazendo.

Clique nos links para ler.

A Endodontia Invisível

Por Ronaldo Souza

Com grandes atuações de Wladimir Brichta e Walmor Chagas, o filme “A Coleção Invisível” (2013), de Bernard Attal, é de fazer respirar fundo. Talento, beleza e sensibilidade estão presentes o tempo todo.

É a história de um fazendeiro da Bahia (Walmor Chagas) que possuia uma coleção rara de gravuras e um jovem (Wladimir Brichta), cuja família tem uma loja de antiguidades, viaja para o interior da Bahia para tentar comprar. Aí se desenvolve o filme.

Um detalhe marcante é que a aquela altura da vida, o fazendeiro que possuia a coleção tinha ficado cego e Walmor Chagas, o ator que o interpreta, estava cego na vida real e morreu logo em seguida às gravações.

Fica claro agora que roubei o título do filme para dizer que hoje há uma Endodontia invisível. Mas, não é só isso.

Diferentemente da coleção invisível do filme, que era invisível porque não existia mais (e o fazendeiro não sabia, porque não enxergava mais), a Endodontia invisível existe.

É uma Endodontia que ninguém vê (será que me enganei e falei que ninguém quer ver?) e quando alguém tenta mostrá-la, a impressão que se tem é a de que ela desaparece, fica… invisível.

Em 1955, Ingle estabeleceu que “cerca de 60% dos insucessos endodônticos eram causados pela obturação incompleta dos canais radiculares”. Daí surgiu a necessidade de vedamento hermético e com ela a do travamento do cone de guta percha. Isso se tornou definitivo em todo o mundo endodôntico.

Há praticamente 70 anos essa concepção reina na Endodontia.

Ao longo de todos esses anos, aprendemos que o tratamento endodôntico é como uma corrente, cujos elos são iguais e têm a mesma importância. Entretanto, sem que se tenha percebido ou não, o que tem sido dito e ensinado é que a obturação é o fator determinante do sucesso no tratamento endodôntico, portanto, o seu elo mais importante. Se alguém duvida, é só observar a literatura endodôntica.

O que temos aprendido é que o vedamento hermético proporcionado pela obturação representa o fator responsável pelo nosso sucesso. Daí a importância, por exemplo, do travamento do cone de guta percha e, máximo do requinte técnico, o travamento perfeito do cone. Entram também em cena e com enorme destaque os cimentos endodônticos. Sobre eles, a literatura é infinda.

Dada a quantidade de vezes do que já se disse, escreveu e ensinou sobre o papel da obturação, torna-se desnecessário explicar o que é e como fazer para conseguir o vedamento hermético.

Detalhe:

Ao longo de todos esses anos, não se tem conhecimento da existência de um único trabalho que tenha comprovado a existência de vedamento hermético!

O que fazer?

Deveria ser fácil responder a essa questão, mas não é.

Entretanto, talvez seja interessante conhecer um pouco mais dessa história.

O que se vê acima são dois trechos do editorial do Journal of Endodontics de dezembro de 2007. Esse editorial tinha tudo para se tornar relevante. Não conseguiu e, na verdade, tornou-se lamentável. Quando o li, há pouco mais de 14 anos, passei a ver o JOE e a literatura endodôntica de outra maneira.

Ele aborda dois temas. Um deles é o que apresento aqui. Traduzi o título e os dois trechos para conversarmos. Vejamos o que dizem.

Procura-se: Uma Base de Evidências

Texto da coluna à esquerda:

Embora tenhamos usado o método científico na tomada de decisões em saúde por mais de um século, grande parte de nossa prática clínica ainda pode ser encarada como empirismo devido à escassez de estudos de alto nível de evidência em nossa literatura, como exemplificado por avaliações de resultados em endodontia (1, 2). Todos devemos defender um nível mais rigoroso de ciência para produzir uma verdadeira base de evidências para nossas práticas. O Conselho Editorial do Journal of Endodontics busca os mais altos padrões da ciência, e devemos pesar a confiabilidade de metodologias utilizadas, na avaliação dos estudos submetidos para publicação.”

Texto da coluna à direita:

O vedamento é importante, e métodos de avaliação que sejam confiáveis, reprodutíveis e que se relacionem com os resultados clínicos são necessários. O Conselho Editorial sugere que a comunidade científica suspenda os estudos sobre vedamento que comparem diretamente uma técnica endodôntica com outra. Em vez disso, incentivamos os pesquisadores a estudar a validade dos próprios em si. Serão considerados para publicação manuscritos que 1) comparem várias metodologias de avaliação de selamento para tentar reduzir o número de técnicas comparativas usadas, 2) demonstrar implicações clínicas significativas para médicos, pacientes e fabricantes, e 3) Ao avaliar a infiltração de microrganismos, distinguir o vedamento dos efeitos antimicrobianos dos materiais obturadores. Tentem criar um padrão-ouro que possamos usar para avaliar verdadeiramente o quão bem nossas técnicas podem selar o canal radicular para que possamos descobrir o que funciona e o que não funciona. Nossos pacientes merecem isso.”

Começo pelo fim, quando o texto diz “nossos pacientes merecem isso”.

Isso, o que?

Em julho de 2006, portanto, 1 ano e 7 meses antes do editorial, o artigo abaixo havia sido publicado no JOE.

Vamos primeiro ao título:

Cura da Periodontite Apical Após Tratamento Endodôntico Com e Sem Obturação em Cães

De forma bastante resumida, nesse trabalho as cavidades pulpares foram acessadas e deixadas abertas em contato com o meio bucal, para infecção e formação de lesões periapicais. Em seguida, 56 canais foram preparados da mesma maneira e depois divididos em dois grupos. No grupo controle, 28 canais foram obturados com cones de guta percha e cimento AH26 Plus. No grupo experimental, 28 canais não foram obturados. Após 190 dias, os dentes foram removidos e analisados microscopicamente.

As frases abaixo (tradução literal) sintetizam resultados e conclusões.

O que se poderia esperar após a publicação de um trabalho bem delineado, com questionamento claro e consistente de um paradigma da Endodontia, na revista científica mais importante do mundo endodôntico?

Nessas condições, o que se poderia esperar de um trabalho que, deixando de lado o pensamento único e consagrado, demonstra que não é a obturação, mas sim, o preparo do canal o fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico?

No mínimo, uma discussão científica entusiasmada, motivadora e apaixonante!

Nada aconteceu!

Aliás, aconteceu.

A recomendação em editorial do periódico mais importante da especialidade no sentido de que se mudassem os métodos de investigação da qualidade da obturação.

Tentem criar um padrão-ouro que possamos usar para avaliar verdadeiramente o quão bem nossas técnicas podem selar o canal radicular para que possamos descobrir o que funciona e o que não funciona. Nossos pacientes merecem isso.

Quantos trabalhos foram feitos e publicados “querendo ver” se é válido ou não o que diz o artigo de Sabeti e colaboradores?

Se alguém souber de algum, por favor me diga.

Não parece incompreensível que nada tenha sido feito nessa direção após um trabalho que deveria, no mínimo, estimular as nossas mentes e efervescer pesquisadores e laboratórios?

Quantos artigos estão sendo publicados desde então sobre as virtudes dos materiais obturadores, particularmente dos cimentos endodônticos?

Alguém conseguiu criar uma metodologia que se transformou em padrão-ouro para avaliar verdadeiramente…?

Ou seja, não se toca no paradigma.

Vejam o que dizem Dave Holmes e colaboradores no International Journal of Evidence-Based Healthcare (2006).

As ciências da saúde se orientam a partir de instituições cuja autoridade raramente é desafiada ou testada, provavelmente porque só elas controlam os termos pelos quais qualquer desafio ou teste prosseguiria.

Isso torna difícil para os estudiosos expressarem novas e diferentes ideias em um círculo intelectual onde a normalização e padronização são privilegiadas no desenvolvimento do conhecimento.

O indivíduo crítico deve então recorrer a estratégias de resistência diante de tais discursos hegemônicos dentro dos quais há pouca liberdade para expressar pensamentos.”

Ignora-se (nega-se?) qualquer possibilidade de se pensar em alguma outra coisa que possa buscar uma explicação mais plausível para o sucesso, ou o fracasso, e se abrem as portas para a “confirmação” de algo que jamais se confirmou?

Trago de volta a frase escrita lá em cima: ao longo de todos esses anos, não se tem conhecimento da existência de um único trabalho que tenha comprovado a existência de vedamento hermético!

No filme, a coleção invisível já não existia, mas, pela cegueira, o seu proprietário não tinha como saber.

A Endodontia invisível existe! O que nos impede de ver?

Vejam o que diz Silvia Regina D. T. Siqueira (Professora Associada, Escola de Artes, Ciências e Humanidades – USP).

O que vemos na prática é o desinteresse das revistas científicas quando os resultados não são os esperados“.

Volto ao editorial lá em cima, ao trecho da coluna à esquerda.

“Grande parte de nossa prática clínica ainda pode ser encarada como empirismo devido à escassez de estudos de alto nível de evidência em nossa literatura…”.

Isso, nossos pacientes não merecem!