Por Ronaldo Souza
O ideal seria que a polpa fosse preservada para exercer as suas diversas funções, entre as quais a de proteger o dente.
Sabemos, entretanto, que, apesar de todo o potencial do esmalte-dentina, numa grande quantidade de vezes esse ideal não é alcançado.
Através dos mecanismos conhecidos, microrganismos criam as condições que lhes permitem invadir essas estruturas e alcançar a cavidade pulpar, um processo de agressão contínua, gradativa e inevitável, quando o devido tratamento não é realizado.
Não tratada, a recomendação era remover a polpa, cortando-a como se usasse um bisturi, deixando como remanescente o que se estabeleceu chamar de coto pulpar. Somente a sua permanência nessas condições permitiria o reparo dos tecidos apico/periapicais.
Chegou-se a idealizar um “bisturi” endodôntico (uma lima Hedstrom “modificada”) para que lá, na porção final do terço apical, a 1 mm aquém do ápice radicular, cortássemos a polpa. Corte perfeito, plano, ferida única, o ambiente ideal para o reparo.
Num requinte, o desejo foi além, no sentido de se depositar sobre o coto pulpar uma “gota” de hidróxido de cálcio.
Recomendações (corte da polpa nas condições descritas e deposição da gota de hidróxido de cálcio sobre o coto pulpar) que o tempo e a clínica se encarregaram de mostrar irrealizáveis.
Detalhe; o reparo dos tecidos apico/periapicais não deixou de ocorrer.
A polpa agredida e não tratada costuma evoluir para a necrose e infecção do canal (sistema de canais).
Percebeu-se, então, que a simples remoção do que restou dela não era suficiente para o reparo da patologia que surge como consequência; a periodontite apical.
Assim, tornava-se necessário alargar o canal para remover a infecção e, diante da eventual permanência de alguns microrganismos, vedá-lo hermeticamente. Enclausurados entre a obturação e as paredes do canal e dessa forma afastados de qualquer fonte de nutrientes, o destino era a morte para esses microrganismos.
Além disso, com esse vedamento, estaria impedida a penetração de fluidos teciduais no canal, onde, segundo a literatura endodôntica, entrariam em processo de estagnação, decomposíção e gerariam subprodutos tóxicos que fariam surgir a lesão periapical, ou manter uma já existente.
Assim, surge e se afirma o desejo de vedamento hermético!
Diversas técnicas de obturação, cones de guta percha de todos os tipos, calibres e conicidades, cimentos obturadores com as mais variadas características, propriedades, radiopacidades, escoamento, ações químicas, biológicas… tudo foi dito e feito em seu nome.
Entretanto, ao longo de cerca de 70 anos, em nenhum momento o vedamento hermético conseguiu comprovar sua existência. Muito menos sua relação direta com o sucesso do tratamento endodôntico.
O que nos resta?
Os espaços vazios?
Quais?
Aqueles nos canais, deixados por obturações eventualmente incompletas, mas cada vez menos frequentes?
Ainda que muito longe do desejo de vedamento hermético, algo muito difícil de conceber, são inegáveis os avanços no sentido de, cada vez mais, termos condições de conseguir melhor selamento dos canais, objetivo mais facilmente atingido com o reconhecimento da necessidade de restaurações coronárias também cada vez mais qualificadas, integrando-se ao conceito de proteção da cavidade pulpar, do qual faz parte a obturação do canal.
Chegando a níveis animadores essa capacidade de proteção, por que não a acompanhou na mesma intensidade o percentual de reparo dos tecidos periapicais?
Por que, por exemplo, ainda há a necessidade de tantos retratamentos?
Talvez mais do que nos canais, por conta de obturações não tão bem-feitas, a preocupação com os espaços vazios esteja nas nossas mentes.
O reconhecimento de que os espaços vazios nos canais não possuem essa relação de causa e efeito com o insucesso do tratamento endodôntico parece nos levar a interpretações equivocadas.
Pode-se imaginar, por exemplo, que esse reconhecimento nos levaria a deduzir pela não importância da obturação.
Por sua vez, essa desimportância nos levaria a não reconhecer a relevância dos materiais obturadores e daí, quem sabe, à obturações negligentes.
Que tipo de impacto poderia ter esse tipo de interpretação?
Alguns, entre os quais, o equívoco de se projetar grandes prejuízos financeiros às empresas de materiais odontológicos.
É importante entender que a discussão sobre concepção e conceitos é fundamentalmente científica e, particularmente nesse caso, não envolve técnica de realização da obturação. Sendo assim, não eliminará a importância, mais do que isso, a necessidade da obturação.
Como não existe obturação sem materiais obturadores, não há possibilidade de que os materiais obturadores sejam descartados do arsenal endodôntico.
Sem chance!
Independentemente disso, a pesquisa é feita, ou deveria ser, com um olho no compromisso com a ciência e o outro na sociedade.
Ao clínico atento, que observa com senso crítico a cena endodôntica, cabe, e ele sabe disso, esperar que surja uma luz que pelo menos nos aponte com mais clareza a explicação para casos bem-sucedidos em canais com obturações que deixam a desejar e, ao contrário, a explicação para fracassos consagrados em casos de obturações hollywoodianas.
E o pesquisador?
Talvez exista aí alguma apreensão.
Continuará a pesquisar sob a perspectiva do paradigma da obturação, ou irá, finalmente, abrir a sua própria caixa, de lá tirar aquela ideia esquisita, pesquisá-la, descobrir e mostrar ao mundo a Endodontia como ela é?
Obs. Este texto representa o “A Endodontia Invisível! 4ª parte”.