O pensamento crítico na Endodontia

Por Ronaldo Souza

Mesmo tendo frequentado as melhores universidades da Europa, (René) Descartes, filósofo francês, achava que não tinha aprendido nada de importante, ou, pelo menos, consistente, em seus estudos, exceção feita à matemática.

Não é difícil imaginar o porquê desse comportamento quando vindo de um homem que pensava na razão humana como única forma de existência. Ele acreditava no “verdadeiro conhecimento”, algo irrefutável, inquestionável.

Como todas as teorias científicas são refutáveis, passou a duvidar de tudo, inclusive da sua própria existência.

Porém, ao duvidar da sua própria existência, Descartes se deparou com algo irrefutável: a dúvida!

E a dúvida o trouxe para a compreensão e aceitação da sua existência.

Se estivéssemos presentes naquele momento e pudéssemos “ouvir” seu pensamento, talvez fosse algo desse tipo: ao duvidar de algo, estou pensando, se estou pensando, é porque existo.

Daí a sua famosa frase:

“Penso, logo existo”!

Para um filósofo, a existência, algo tão complexo e, quem sabe, indecifrável, só é possível na racionalidade.

Assim, a constatação de sua própria existência pode ter sido a primeira verdade irrefutável com a qual se deparou.

É muito provável que Descartes tenha percebido que a certeza é a convicção do idiota.

Assim, ele nos ensina a “descerteza”, a dúvida, amiga inseparável do pensamento crítico.

Mas o mundo não vive só de Descartes. O mundo não vive só de quem ainda se permite ter dúvidas.

Há homens que de tudo têm certeza e, por isso, tudo afirmam.

A esses, talvez se pudesse dizer; pense, para que sua existência ganhe um significado maior.

Por que falo de mentes inquietas e de Descartes como um dos seus representantes mais importantes?

Porque, além de se questionar tanto, também questionou as melhores universidades da Europa.

E aí ele nos ensina mais uma vez, ao expor a falibilidade da Universidade.

É comum se deparar com afirmativas com veemência exagerada feitas sob a proteção do guarda-chuva de instituições de ensino renomadas. São os famosos protocolos apresentados aos alunos que, a partir dali, estarão sujeitos às mais diversas interpretações. Às vezes, nem alunos da instituição eles são, mas a usam para respaldar o que dizem como algo incontestável, porque teria sido dito por uma instituição consagrada.

Nunca é demais lembrar que o resultado de qualquer estudo tem a ver com a interpretação que se faz dele e essa apresenta variáveis (conhecimento do tema, saber ler, capacidade de interpretar…).

É comum que quem faz essas afirmativas, como quem acabou de descobrir a pólvora, sequer imagine o que a “sua” verdade pode representar de negativo para a instituição citada.

O objetivo é causar. Se há consequências, esse é um dado de menor relevância.

Não é sempre, mesmo em grandes e destacadas instituições de ensino, que há mentes inquietas, reflexivas, criativas…  

Já há algum tempo, isso tem se acentuado de maneira assustadora.

A Sala de Aula

Por Ronaldo Souza

“Minha vida foi uma sucessão de acasos felizes”

Esta frase é de Evandro Lins e Silva.

Jurista, jornalista, escritor e político brasileiro, um dos grandes homens desse país.

Talvez eu também possa ver a minha vida dessa maneira: uma sucessão de acasos felizes

Olho para trás e não consigo ver diferente.

De tudo que já fiz e faço, entretanto, do que mais tenho orgulho é de ser professor, ainda que tenha sido justamente na docência que vivi as minhas maiores desilusões.

Tendo ocorrido na minha vida como uma espécie de acidente de percurso (nunca tinha pensado em ser professor), a docência representa um dos meus melhores momentos nessa sucessão de acasos felizes.

Como Ítaca é para o filósofo e professor Clóvis de Barros Filho, a sala de aula é também para mim um mundo especial, um terreno sagrado.

Ali é o meu lugar.

Ali é onde tenho buscado o melhor de mim.

Ali foi onde os ventos da felicidade atravessaram a minha vida.

Ali é onde tento dar ao mundo o que tenho de melhor, como agradecimento à sucessão de acasos felizes.

Ali é onde é possível ser feliz.

Para onde estamos indo?

Por Ronaldo Souza

As distâncias e dificuldades existentes entre aluno e professor não são de agora. No entanto, a impressão que se tem é de que se acentuaram. Não é incomum, por exemplo, professores se queixarem da falta de comprometimento dos seus alunos. Pelo contrário, é queixa recorrente.

Essa queixa é improcedente? Seria apenas “mais um desafio para a docência”?

Mais um desafio para a docência, como já ouvi, parece querer significar responsabilidade da docência, mais especificamente, do professor. Se é esta a perspectiva, certamente estamos diante de um grande equívoco. Ainda que a participação do professor ocupe lugar de destaque nesse processo, há um simplismo desalentador nessa maneira de pensar.

A complexidade do tema dispensa comentários e é justamente por isso que é sempre bom reforçar que não há espaço para gestos e atitudes simplistas. Há sutilezas a exigir maior sensibilidade e ações mais conectados com a realidade que, com frequência, têm faltado nesses momentos.

Descer degraus para se fazer entender faz parte da docência. Diria mais, é princípio norteador. Entretanto, descer degraus, estender a mão em busca daquela que se deseja trazer para caminhar junto e não perceber nenhum movimento nesse sentido, pode representar uma frustração que, repetida diversas vezes, pode levar à solidão.

Sim, solidão. Há solidão na docência!

“Se tivesses que ver o que sou forçada a ver todos os dias,
também quererias ficar cego!”

Toda a população daquele país tinha ficado cega. Quando o oftalmologista, também cego, percebeu que sua mulher era a exceção, (somente ela não ficara), foi grande a sua indignação. Na sua ira, ele cobrou dela aquela condição especial, aquele privilégio.

Por ser a única a continuar enxergando, diariamente ela observava a degradação física e moral da sociedade. Por ver o que os outros não conseguiam ver, seu sofrimento foi ficando insuportável e, diante da ira do marido, respondeu com um desabafo: “se tivesses que ver o que sou forçada a ver todos os dias, também quererias ficar cego!”

Através dessa metáfora, no livro “Ensaio sobre a Cegueira”, Saramago mostra que ver o que outros não veem não é propriamente uma dádiva. Pelo contrário, pode ser angustiante.

Não “ver” traz conforto!

Ver o que existe, mas não é visto, pode gerar sensação de impotência e grande desconforto. A sensação de que nada pode ser feito traz muita tristeza e, a depender da intensidade, cria uma autopercepção de passividade. Daí ao desencanto é um passo, algo que se vê com frequência preocupante nos tempos atuais.

Desconhecer é ignorar.

Nesse sentido, o desconhecimento da real amplitude da docência pode ser cruel com o professor e tornar menor sua trajetória. Por desconhecimento, os horizontes se tornam curtos e os objetivos facilmente alcançáveis.

“O animal satisfeito dorme.” (Guimarães Rosa).

Veja o que diz essa definição de comprometimento: “É uma promessa recíproca de alguém que tende a cumprir com os seus acordos, independentemente da forma que eles sejam feitos”.

Chama a atenção o “independentemente da forma que eles sejam feitos.” É aqui que entra e adquire grande importância a participação do professor.

O fundamento para o professor/instituição de ensino é ensinar e é justamente este fundamento que passa a constituir um grande problema. Para o professor, ensinar sem qualidade não é ensinar.

Organização da disciplina/componente, assiduidade, pontualidade germânica…, são aspectos importantes para a instituição de ensino e por ela, instituição, os professores são cobrados. Sob essa perspectiva, torna-se inevitável a necessidade de mostrar serviço.

Entretanto, não está em disputa o título de funcionário do mês, com direito a foto pendurada na parede.

A incômoda e diária exibição de “produtividade” que se vê no cotidiano de uma faculdade talvez seja revigorante às necessidades de muitos e, quem sabe, consiga seduzir alguém. Mas, o que acrescenta ao ensino?

O dia a dia se torna sufocante. Num mundo em que aos professores eventualmente são oferecidas injeções de orientações de como despertar o aluno, o que se vê cada vez mais é o conhecimento ceder espaço ao pragmatismo de técnicas e protocolos.

“Sufoco de ter somente isso à minha volta
Deixem-me respirar
Abram todas as janelas
Abram mais janelas do que todas as janelas que há no mundo
… E o mundo quer a inteligência nova, a sensibilidade nova
O mundo tem sede de que se crie
O que aí está a apodrecer a vida, quando muito, é estrume para o futuro
O que aí está não pode durar, porque não é nada…”
Álvaro de Campos *

Já há algum tempo se ouve dizer que os alunos estão saindo das faculdades com baixo nível de conhecimento.

Sim, nossos alunos!

Tantas cirurgias, tantas restaurações, tantos tratamentos endodônticos, tantos…

Metas, metas! Tudo tem que ser mensurável.

É isso que temos para dar?

A que isso leva?

E agora, o que fazer se, por dificuldades e limitações inerentes a cada especialidade, até elas, as metas, diminuem por não mais se conseguir atingir a mesma obrigatoriedade numérica de fazer tantos isso e tantos aquilo?

Como despertar alguém com técnicas e protocolos e tão pouca criatividade?

De um lado, os protocolos, do outro, o desconhecimento!

Reina o fazer!

Pragmatismo: esta é a palavra de ordem.

Sob essa perspectiva, não há com o que se preocupar. Os alunos serão salvos pelos cursos de especialização, atualização, aperfeiçoamento…, que costumavam esperar por eles na porta das faculdades.

Agora, não! Vão pegá-los dentro das salas de aula e ambulatórios.

A indecente catequização começa cedo, mas, construída sobre o mesmo baixo nível de conhecimento que existe na graduação, traz consigo a perpetuação do pecado; o ensino de… técnicas e protocolos.

Você tem ideia de quem faz isso?

Há alguém preocupado com isso?

Já ouviu falar de “fecham-se os olhos”?

E o que isso reflete?

“Há mais mistérios entre o Céu e a Terra do que a nossa vã filosofia possa imaginar.”

Menos mistérios fazem parte dessa sentença de Shakespeare, porque muitos já deixaram de ser mistérios. A nossa vã filosofia, já não tão vã, consegue identificá-los.

Somente identificá-los, porém, não é suficiente. Precisamos trazê-los à superfície.

Muito mais do que tocar o barco, como se costuma dizer e, na verdade, o que tem sido feito, precisamos compreender o que está acontecendo, para que possamos enfrentar essa depressão que se abate sobre a sociedade.

Os horizontes do ensino exigem visão com alcance e sensibilidade muito maiores. Visão que, além de “ver”, seja capaz de estabelecer diagnósticos e prognósticos com competência.

Em 2021, em uma longa entrevista às TVs Educativas do Norte e Nordeste, o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, fez um comentário que não pode ser ignorado e passar despercebido, ainda que saibamos que será ignorado e passará despercebido. Ele disse:

“Perdemos o desejo de melhorar.”

A frase é muito forte e, ao mesmo tempo, altamente frustrante. Por uma razão bem simples. Podemos criar expectativas de que terá efeitos no atual cenário em que vivemos?

Não há como acreditar nessa possibilidade.

Muita coisa tem fugido à nossa compreensão. Talvez estejamos precisando entender, por exemplo, que instituição de ensino e ensino nem sempre caminham na mesma direção.

Ainda que se reconheçam dificuldades no horizonte, os parâmetros do ensino precisam ser mais bem estabelecidos e definidos para além da eventual aceitação e procura do curso, muitas vezes analisadas sob a perspectiva dos números.

Há mérito em se igualar por baixo?

Definitivamente, as instituições de ensino não podem se render ao que aí está. Esta postura, certamente, não é a opção mais apropriada e a sociedade brasileira pagará um preço muito alto pelas escolhas que estão sendo feitas neste momento. Afinal, como dito aqui, o fundamento para o professor/instituição de ensino é ensinar e ensinar sem qualidade não é ensinar.

O futuro já está aqui, estamos nele agora. E o seu gosto é bem amargo.

Instituições de ensino, professores e alunos, todos estão no mesmo barco.

Assustados e sem rumo.

* Álvaro de Campos é um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa

Evolução

Por Ronaldo Souza

O médico é Deus.

Onisciente, onipresente, onipotente, onitudo.

Deus, portanto, o dentista não poderia ser.

O cargo estava ocupado, já tinha dono.

Filho de Deus!

Pronto.

Tá louco!

Filho daquele cara!!!

Não podia.

Tinha que haver outro cargo, ou deveria ser criado um, qualquer coisa.

E aí o dentista criou um de grande importância: corrigir a Natureza.

Outra forma de ser Deus.

Como você sabe, a Natureza é cheia de falhas, bastante imperfeita.

Oh coisinha feia! E mal-feita!

Alguém pode me explicar, por exemplo, por que a Natureza fez dentes amarelados?

Inaceitável!

Mas, doutor, a dentina é amarelada e o esmalte é fino, translúcido. Ele, esmalte, só faz “refletir” a cor da dentina. É uma coisa natural.

Então faça o seguinte; vá lá e convença ao dentista!

Pago pra ver.

Do alto do seu poder e sensibilidade, o que pensou o dentista?

Vou pintar o dente de branco.

Torno branco o que não é branco.

Não é uma ideia sensacional!

Diria até original.

Afinal, tudo devia ser branco.

Branco não é a cor da paz?

Então!

Viveríamos todos em paz.

Claro, desde quando tudo fosse branco.

Adolf ia adorar. Tudo branquinho.

Ah, agora sim, o branco imaculado, divino.

O sorriso dos deuses.

O dentista cumpria mais uma vez o seu destino; corrigir os erros da Natureza.

Acho até que começou com os artistas Globais. Aquele desfile de gente bonita, padrão FIFA, CBF (ou padrão Globo, dá no mesmo), todo mundo com dentes brancos, tudo igual.

E aí meu amigo, ninguém segura. Vai todo mundo querer ficar igual.

Um mundo diverso não interessa.

Montaram uma indústria bem montadinha e começaram a produzir dentes brancos em série.

Lente de contato!

Por que só nos olhos?

O dentista já estava incomodado, olhando de banda, se segurando…

Oh, quer saber de uma coisa!

Saiu botando lente de contato nos dentes de um bocado de gente.

E os canalistas!

Esses dispensam comentários, os caras são feras.

Ninja!

Tudo ninja!

Fazem canal como ninguém!

Histologia, biologia, fisiologia tecidual…, essas coisas sem importância, dizem que material obturador extravasado para os tecidos periapicais constitui fator de grande agressão aos tecidos.

Você pensa que os caras ligam pra isso?

Eles mostraram que tudo isso é bobagem.

Jogam quilos de material obturador nos tecidos periapicais e nada acontece, não morre nenhum paciente. Eu pelo menos nunca vi nenhum morto no Instagram. Nem dor eles sentem, e posso garantir que também nunca vi nenhum gemendo por lá.

Agora veja se não faz sentido?

Fica aquele osso periapical todo lá, enorme, bonitão, paradão, sem fazer nada.

Por que vocês acham que os macrófagos vão querer ir lá se não têm nada pra fazer?

O que foi que os canalistas fizeram?

Seguiram a orientação da cantora Claudia Leitte: Extravasa!

Jogue uns três quilos de material obturador nos tecidos periapicais (não precisa mais do que isso, não precisa exagerar), jogue um iodoformiozinho amigo…

Chove macrófago nos tecidos periapicais.

Ficam todos assanhados, doidinhos.

Só vai assim.

E não adianta se não fizer isso. Esses macrófagos de última geração, se você não jogar uma coisinha lá nos tecidos periapicais eles nem aparecem.

Não vão nem a pau.

Canalistas sim, esses são bons.

Nesses eu boto fé!

Tudo ninja!

O que me encanta são as estrelas

Por Ronaldo Souza

O processo inflamação/reparo é de uma beleza ímpar.

Passei a conhecê-lo através do livro de Patologia de Robbins, onde mora o melhor capítulo sobre o tema.

Mas foi outro livro de Patologia, o de Catanzaro Guimarães (USP Bauru), que me trouxe grande inquietação há muitos anos:

Terminada a pulpectomia… tanto o coágulo como a faixa necrótica subjacente intensificam a reação inflamatória aguda ao longo do coto pulpar remanescente… sendo que na maioria dos casos o processo necrótico envolve todo o coto pulpar.

Não era verdade. Não podia ser!

Eu tinha aprendido que o coto pulpar era intocável, sagrado, e que, diante de agressão mecânica e/ou química, seu destino era a necrose. Necrosado, tudo estaria perdido.

Vou corrigir.

Não era que eu tinha aprendido. Era assim que todos ensinavam, o que é bem diferente.

Aprender é fruto de interpretação, portanto, pode-se aprender “errado” por conta de uma interpretação equivocada.

Quando digo que “era assim que todos ensinavam”, é porque aquele conceito de coto pulpar intocável e sagrado era consensual, era o que estava estabelecido como certo.

E, no entanto, ali estava um livro de Patologia me dizendo que “ na maioria dos casos o processo necrótico envolve todo o coto pulpar.

Ora, se “na maioria dos casos o processo necrótico envolve todo o coto pulpar“, na maioria dos casos o tratamento endodôntico em canais com polpa viva dá… errado!

É lógico!

Mas, como, se a grande maioria desses casos dava certo e é justamente onde há o maior percentual de sucesso do tratamento endodôntico?

O que dizia a literatura endodôntica e o que ensinavam os professores de Endodontia?

“Não há reparo quando não se preserva a vitalidade do coto pulpar”

Havia, portanto, um abismo entre o que dizia a Patologia e o que dizia a Endodontia!

Livros de Histologia, primeira edição brasileira do livro Microbiologia Médica (Mims, Playfair, Roitt, Wakelin e Williams)… livros!

Durante cerca de nove meses parei tudo; não lia mais nada. Só estudava Histologia, Microbiologia e Patologia.

Nove meses!

Já falei sobre isso algumas vezes em aula e somente agora me ocorre que é o período de uma gestação, tempo em que, diariamente, mundo afora, nascem novas mentes.

Uma cabeça, um mundo!

A Patologia me fez pensar.

Ao pensar, refiz tudo na minha mente. Mesmo sem ainda saber do “direito ao delírio”, eu me permitia delirar.

Ah! A Ciência, que maravilha!

Sempre livre, independente, sem conceitos preestabelecidos e imutáveis, sem correntes a amarrá-la.

Onipotente!

Abro um parêntese
– E o que está errado?

Em entrevista à revista “Isto é”, em setembro de 2009, fizeram essa pergunta a Olga Soffer, antropóloga e arqueóloga da Universidade de Illinois, e ela respondeu:

 – Não é a Ciência. Alguns acadêmicos é que são arrogantes e se esquecem da mera condição de ser humano.
Fecho o parêntese.

A Ciência não se incomoda, pelo contrário, mas, aqui e ali, alguns cientistas se sentem desconfortáveis com quem ousa.

Pensar é transgredir (Lya Luft).

Ao pensar, conceitos intocáveis e sagrados podem sofrer abalos.

A periodontite apical sob o aspecto clínico/radiográfico

Quando a inflamação envolve o tecido pulpar de maneira que o tratamento não consegue mais reverter a sua evolução, é comum desencadear-se o processo em direção à necrose pulpar, com as suas possibilidades e consequências.

Neste momento, o envolvimento/destruição do tecido ósseo medular já deverá estar ocorrendo. Entretanto, por ainda ser incipiente, essa lesão não se manifesta radiograficamente.

Em outras palavras, a periodontite apical já existe, mas não aparece na radiografia periapical. No seu processo evolutivo, ocorre maior destruição óssea e então ela se manifesta radiograficamente. A periodontite apical, que já existia, agora aparece na radiografia periapical.

Evidencia-se a necessidade do tratamento endodôntico.

Se eu perguntasse qual é o objetivo do tratamento endodôntico, não tenho dúvida de que você responderia que é remover a causa da patologia do paciente. Por uma razão bem simples: todo tratamento de uma patologia tem como objetivo remover a sua causa. Caso contrário, não haverá reparo.

Qual é a patologia?

A periodontite apical!

Tratamento endodôntico realizado, bem conduzido, o que nos resta?

Uma vez que a causa da periodontite apical, necrose pulpar/infecção do canal (sistema de canais) é removida, não deve restar outra alternativa que não seja o seu desaparecimento.

Portanto, antes do tratamento endodôntico, na evolução da periodontite apical:

  1. Inicialmente ela surge no osso medular, mas não aparece na radiografia
  2. na sequência, evolui, aumenta de tamanho e promove maior destruição óssea
  3. passa a “existir” também na radiografia periapical

Estima-se que são necessários cerca de três-quatro meses para que a periodontite apical ganhe imagem radiográfica. Alterações radiográficas mais sutis já podem estar presentes, mas não a imagem que caracteriza a lesão periapical.

Aliados a essas alterações radiográficas mais sutis, sinais e/ou sintomas clínicos eventualmente presentes representam fatores fundamentais para o estabelecimento de diagnóstico. É sempre bom lembrar que o relato do paciente também desempenha papel relevante.

Nesse momento, se você fizer uma tomografia de feixe cônico, ou, simplesmente, tomografia, poderá ter uma surpresa. A periodontite apical em evolução, que não existe na imagem radiográfica, deverá “aparecer” na imagem tomográfica.

Como já vimos, pela remoção da causa, proporcionada pelo tratamento bem realizado, o resultado que se deve esperar é o desaparecimento do efeito; a periodontite apical.

Algo importante deve ser relembrado. Uma vez que não se consegue eliminar a infecção do sistema de canais, deve-se ter em mente que a expressão mais adequada a essa etapa do tratamento é controle de infecção.

Portanto, após o tratamento endodôntico, na involução da periodontite apical:

  1. Inicialmente, a perda óssea e o tamanho da lesão diminuem
  2. a lesão deixa de “existir” na radiografia periapical
  3. mas continua existindo no osso medular

Em outras palavras, a lesão periapical não existe mais na imagem radiográfica. Neste momento, entretanto, não pode ser motivo de surpresa a sua presença na imagem tomográfica.

Aplique o conhecimento que você tem do processo inflamatório na sua fase evolutiva:

Na fase inicial da evolução da periodontite apical, ela não aparece na imagem radiográfica porque é incipiente, há pouca destruição óssea. Neste momento, ela está “escondida” da radiografia.

Agora, aplique o mesmo conhecimento do processo inflamatório no sentido contrário.

Na fase final da involução da periodontite apical, ela não aparece na imagem radiográfica porque apresenta menor perda óssea e diminuiu de tamanho. Assim, ela volta a ficar “escondida” da radiografia.

Da mesma forma que ela “precisou” de algum tempo (cerca de três-quatro meses) para surgir, precisará de algum tempo (quanto???) para desaparecer inteiramente.

Sob essa linha de raciocínio (existe outra?), a presença da lesão periapical detectável somente pela tomografia não deve representar fracasso do tratamento endodôntico.

Permita-me dizer isso de outra maneira.

Você acompanhou radiograficamente o surgimento e aumento de tamanho da lesão periapical no dente de seu paciente. Fez o tratamento endodôntico, acompanhou a diminuição da lesão periapical e agora vê o seu desaparecimento; ela não existe mais.

Considerando-se sempre que nas duas situações, diagnóstico e proservação, o exame do paciente é realizado (subtendendo-se, portanto, que sinais e sintomas e o relato do paciente são observados), a pergunta é: há razões que justifiquem a confiança na imagem radiográfica no diagnóstico, mas não no acompanhamento desse paciente?

Ou seja, ela serve para uma situação, mas não serve para a outra?

O processo inflamação/reparo não é um gesto dos deuses. É um fenômeno fisiológico, com mecanismos próprios que obedecem às regras do organismo. Precisamos entender e aprender a agir de acordo com ele.

“Estima-se que são necessários cerca de três-quatro meses para que a periodontite apical ganhe imagem radiográfica.”

Lembra-se dessa frase lá em cima?

A literatura sempre nos ensinou que mesmo antes do surgimento da lesão periapical na imagem radiográfica, ela já existe há cerca de três-quatro meses

O processo fisiológico inflamação/reparo é dinâmico e as células que participam dele são basicamente as mesmas. O que muda é a proporção na presença delas, que ocorre de acordo com o estágio do processo.

De acordo com o momento, células que configuram a defesa do organismo contra a agressão predominam no local da agressão. Uma vez eliminada ou controlada a causa, mensagens bioquímicas são enviadas e esse panorama muda, passando a predominar aquelas mais diretamente associadas ao reparo da destruição tecidual.

É esse dinamismo, com toda sua riqueza de ações e reações celulares e vasculares, que transforma o binômio inflamação/reparo em algo “de uma beleza ímpar”.

Entretanto, além da perplexidade e encantamento com tudo que o constitui, é necessário entendê-lo. É fundamental que o profissional de qualquer especialidade da área da saúde o conheça minimamente e nunca é demais lembrar que a Endodontia está inserida nesse contexto.

Assim, se o profissional desprezar esse fato e não reconhecer a necessidade de entender esse binômio, ele passará sua vida indo a eventos de Endodontia para comprar instrumentos e materiais para alargar e obturar canais.

Mas, dificilmente, ele se tornará um endodontista!

Tendo esse conhecimento, ele saberá, por exemplo, que, controlada a causa da inflamação, o reparo deverá ser o destino final, o desfecho do caso.

Entenderá que, enviadas as mensagens que “anunciam” o controle da causa da lesão periapical (infecção do sistema de canais), o processo de reparo, que sempre esteve presente, verá as células que o configuram dominarem o cenário inflamatório.

Uma vez que o momento em que as células que configuram o reparo predominam nesse cenário, ou seja, uma vez que o reparo é “iniciado”, não há mais como reverter esse momento.

Precisamos entender que, uma vez iniciado, o reparo não será impedido de cumprir e concluir suas etapas. Somente diante de eventuais modificações nesse cenário (por exemplo, nova contaminação do sistema de canais), a continuação do reparo poderá sofrer interferências.

https://www.youtube.com/watch?v=HjmfSjkhByM

É isso que, mesmo sem conhecê-lo em profundidade, o clínico observa e percebe ao fazer o acompanhamento clínico/radiográfico do seu paciente. Compreendendo o surgimento, desenvolvimento e estabelecimento da lesão periapical, ele saberá o que fazer para que o seu tratamento seja bem-sucedido.

Ao ter essa compreensão, realizado o correto tratamento, ele saberá entender a dinâmica do reparo. Essa dinâmica envolve evolução e involução da patologia durante todo o tempo do tratamento/proservação.

A imagem, seja ela radiográfica ou tomográfica, não. Estática, ela fala apenas do momento em que é realizada.

Na Endodontia, radiografia e tomografia caminham juntas e juntas desempenham papel da maior relevância, algo inquestionável.

Justamente por isso, a tomografia dispensa qualquer comentário sobre a importância do seu uso na Endodontia.

Entretanto, não tem sido incomum ter-se a sensação de que sua imprescindibilidade em todos os momentos do tratamento endodôntico é a verdade a ser considerada. Às vezes até em detrimento da radiografia.

Há que ter muito cuidado no trato com essas duas grandes e valiosas ferramentas na Endodontia.

A acuidade e a validade da aplicação da tomografia na Endodontia dispensam qualquer discussão e não é este o objetivo deste texto. Trata-se tão somente de tentar trazer de volta e enfatizar a importância da discussão sobre a periodontite apical em si e, com isso, fazer conhecer a(s) melhor(es) maneira(s) de tratá-la.

Se eu fosse um astrônomo, certamente daria enorme valor a lunetas e telescópios, mas não suportaria perder a noção de que busco conhecer as estrelas.

Modelando o canal

Por Ronaldo Souza

Engana-se quem pensa que o ato operatório é um ato mecânico. É um ato mecânico no momento de sua execução, entretanto, ele não existe somente nesse momento. Ele existe antes na mente do operador. É lá que tudo começa.

Compreendido de uma forma, será executado daquela forma.

Não parece difícil deduzir, portanto, que, uma vez mal idealizado, é grande a tendência de ser mal realizado; o fracasso deverá ser o seu destino.

O que é instrumentar o canal?

Instrumentar é, com um instrumento, ou, com instrumentos, exercer uma ação (mecânica) no canal.

O que é irrigar o canal?

Considerando-se a postura clássica, irrigar é, com agulhas/cânulas de irrigação/aspiração, exercer essa ação (física) no canal.

Ações distintas, instrumentação e irrigação, que, juntas, constituem o preparo do canal. Na sequência, virá o complemento desse ato operatório; a obturação.

O que lhe parece mais completo, o que definiria melhor o tratamento endodôntico e tornaria mais fácil a compreensão de suas etapas e objetivos?

  1. Instrumentar o canal e obturar
  2. Irrigar o canal e obturar
  3. Preparar o canal e obturar

Na primeira alternativa, a irrigação estaria de fora. Na segunda, seria a vez da instrumentação. Na terceira, ambas estariam contempladas.

A compreensão precisa preceder a execução!

Atos operatórios devem ser executados sem a devida compreensão do que e porque estão sendo feitos?

Em outras palavras, é sensato fazer sem saber por quê?

O que é modelar?

Modelar é dar uma forma.

Sob a perspectiva em questão, modelagem pode ser vista como sinônimo de preparo de canal?

Com um único instrumento, por exemplo, ainda que sua conicidade não esteja bem alinhada com a do canal, pode-se fazer uma boa modelagem. No entanto, não há como firmar isso como uma verdade consolidada quando se trata de atingir o grande objetivo do preparo do canal: controle de infecção.

Expressão trazida do “cleaning and shaping” (limpeza e modelagem) de Schilder e bastante divulgada e aceita, ela parece estar levando a interpretações equivocadas.

Repito.

Modelar é dar uma forma.

Nada mais!

A contra argumentação com o “fica subentendido que…” se torna perigosa porque pode trazer despreocupação e negligência ao ato do preparo do canal. Como tem sido dito e escrito ao longo dos anos que o objetivo do tratamento endodôntico é a obturação do canal, para esta ser bem-feita basta que se faça uma boa… modelagem.

Sendo assim, ao se obter um canal cônico (modelado), com espaço suficiente para sua obturação, ele estaria pronto para ser obturado.

E, como se sabe, modelagem não é sinônimo de preparo de canal bem-feito.

Que não se contra-argumente dizendo que ninguém ensina isso, porque cairemos na subjetividade de como as coisas são ditas, compreendidas e executadas.

Não podemos ter ilusões desse tipo.

A verdade subentendida não é a verdade.

Mesmo reconhecendo-se o lamentável desprezo que se costuma ter pela subjetividade das coisas, precisamos entender que estamos tratando de conceitos.

E conceito é teoria.

Nunca é demais lembrar que jamais faltará quem negue a importância da teoria. Esses, por sua vez, jamais compreenderão que uma especialidade do tamanho e da importância da Endodontia não pode se permitir tornar-se algo meramente mecânico. 

Qualquer especialidade que despreza os seus conceitos se torna pequena aos olhos da Ciência. 

É o que está ocorrendo com a Endodontia.

Sendo assim, talvez não seja recomendável que se associe modelagem a controle da infecção. A simples compreensão do significado da palavra a limita nesse sentido. Além disso, poderá trazer para o aluno mais atento a percepção de inadequação do ato em si, diante da responsabilidade que a ele seria atribuída. Daí, virá, para esse aluno atento, o desencanto com a especialidade.

Com o conceito de preparo do canal e a abrangência dos seus passos (acesso-instrumentação-irrigação-medicação intracanal), os nossos alunos desenvolverão percepção mais ajustada ao que realmente significa esse ato operatório.

Só há uma maneira de se conseguir controle da infecção: através do preparo bem-feito do canal.

E é sempre bom lembrar que controle de infecção é, ou deveria ser, o grande objetivo do tratamento endodôntico.

O professor e o tecnicismo educacional

Por Ronaldo Souza

A prática concreta do professor do ensino superior assenta-se sobre três pontos principais: o
conteúdo da área na qual o professor é um especialista; sua visão de educação, de homem
e de mundo; a habilidade e os conhecimentos que lhe permitem uma 
efetiva ação pedagógica em sala de aula

Uma vez uma professora me disse que “político é tudo igual, é tudo farinha do mesmo saco”.

Naquele momento, de maneira disfarçada, encerrei a conversa, voltando a falar das coisas do ambulatório.

É que para mim, já há algum tempo, aquela frase “político é tudo igual, é tudo farinha do mesmo saco” representava uma das maneiras mais insensatas de alguém exibir ignorância sociopolítica e por isso se tornara uma senha. Assim que alguém dizia aquilo, era a minha deixa para sair da conversa.

O pensamento binário parece ter fixado residência em muitas mentes. Bom e mau, homem de bem e bandido…, uma forma elementar de viver. Veem a vida como uma equação exata.                   

Só é visto o que está à vista.

Pelo primarismo intelectual, é assustador o “bandido bom é bandido morto”.

Sob o manto do pragmatismo, muitas vezes se esconde a estupidez.

Recorro a Einstein:

“Só há duas coisas que não têm limites: a estupidez humana e o infinito. Mas ainda não tenho certeza quanto ao último”.

Não percebem, mas, sob a perspectiva da frase que virou senha, muita coisa poderia ser dita em qualquer segmento profissional. Para se ter uma noção bem clara dessa questão, ainda que existam professores e professoras com esse perfil, seria sensato dizer que “professor é tudo igual, é tudo farinha do mesmo saco”?

Quem o fizesse, estaria incorrendo no mesmo erro, por fazer uma generalização igualmente estúpida e incorreta.

Vamos lá.

A prática concreta do professor do ensino superior assenta-se sobre três pontos principais: o conteúdo da área na qual o professor é um especialista; sua visão de educação, de homem e de mundo; a habilidade e os conhecimentos que lhe permitem uma efetiva ação pedagógica em sala de aula

Este trecho, que você leu lá em cima, é o início da introdução do livro “O Professor Universitário em Aula”, dos professores Maria Cecília de Abreu e Marcos Tarciso Masetto 1.

Como um dos três pontos principais para a prática docente do bom professor, consta avisão de educação, de homem e de mundo”.

À parte a questão de gênero (de homem), que, nos tempos atuais, possivelmente seria tratada de outra forma, avisão de educação, de homem e de mundodiz praticamente tudo.

Vejamos o que vem logo em seguida, no mesmo parágrafo.

No desempenho do docente do ensino superior, é comum existir uma lacuna; o professor se caracteriza como um especialista no seu campo de conhecimentos; este é, inclusive, o critério para sua seleção e contratação; porém, não necessariamente este professor domina a área educacional e pedagógica, nem de um ponto de vista mais amplo, mais filosófico, nem de um ponto de vista mais imediato, tecnológico.

Observe que, mais do que um especialista na sua área, o ser professor do ensino superior tem uma amplitude bem maior do que a que se costuma ver. 

Desse universo fazem parte avisão de educação, de homem e de mundoe domínio daárea educacional e pedagógica…, sob “um ponto de vista mais amplo, mais filosófico….

Não haveria nenhum problema quanto ao professor especialista na área correspondente e o critério para sua contratação, se houvesse uma evolução no sentido de se perceber a real dimensão do que é ser professor do ensino superior, estágio final na preparação do profissional que irá servir à sociedade! Mas isso não parece acontecer, pelo menos na frequência que se imagina e deseja.

Reconheça-se que não é tão simples quanto pode parecer, ser clínico no consultório e professor na faculdade. E aí, claro, já fica patente que estamos falando principalmente da área da saúde, de dois segmentos profissionais em particular: Medicina e Odontologia.

É muito comum ouvir coisas assim:

O verdadeiro professor é aquele que desperta o aluno”;
O professor deve desenvolver o espírito crítico do aluno”;
O professor deve despertar o aluno para os anseios da sociedade”.

Não pode haver nenhum tipo de dúvida sobre o muito que há para se conversar a respeito dessas questões, mas eu logo faria uma pergunta que nesse momento julgo fundamental.

Há terreno para isso?

Quantas escolas permitem, de fato, esse processo?

Quando falo em escolas, refiro-me particularmente às Instituições de Ensino Superior (IES).

Trago para a nossa conversa o texto de Ebenezer Menezes2, sobre tecnicismo educacional, dando destaque a dois trechos em negrito:

Tendência verificada nos anos 70, inspirada nas teorias behavioristas da aprendizagem e da abordagem sistêmica do ensino, que definiu uma prática pedagógica altamente controlada e dirigida pelo professor com atividades mecânicas inseridas numa proposta educacional rígida e passível de ser totalmente programada em detalhes. Segundo o educador José Mário Pires Azanha, o que é valorizado nesta perspectiva, não é o professor mas sim a tecnologia, e o professor passa a ser um mero especialista na aplicação de manuais e sua criatividade fica dentro dos limites possíveis e estreitos da técnica utilizada. ‘Esta orientação foi dada para as escolas pelos organismos oficiais durante os anos 60 e até hoje persiste em muitos cursos com a presença de manuais didáticos com caráter estritamente técnico e instrumental.

Nessa perspectiva, professores se tornam organizadores de disciplinas/componentes curriculares.

Como desenvolver o espírito crítico do aluno nessas condições?

O que se vê, então, é o que aí está.

Sim, há muitas questões que precisam ser discutidas.

1. Abreu MC e Masetto MT. O Professor Universitário em Aula: prática e princípios teóricos. 8ª ed. São Paulo, MG Ed. Associados. 1990

2. Menezes, Ebenezer Takuno de. Verbete tecnicismo educacional. Dicionário Interativo da Educação Brasileira – EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 2001. Disponível em www.educabrasil.com.br/tecnicismo-educacional/.

Caminhos da Endodontia

Por Ronaldo Souza

O ideal seria que a polpa fosse preservada para exercer as suas diversas funções, entre as quais a de proteger o dente.

Sabemos, entretanto, que, apesar de todo o potencial do esmalte-dentina, numa grande quantidade de vezes esse ideal não é alcançado.

Através dos mecanismos conhecidos, microrganismos criam as condições que lhes permitem invadir essas estruturas e alcançar a cavidade pulpar, um processo de agressão contínua, gradativa e inevitável, quando o devido tratamento não é realizado.

Não tratada, a recomendação era remover a polpa, cortando-a como se usasse um bisturi, deixando como remanescente o que se estabeleceu chamar de coto pulpar. Somente a sua permanência nessas condições permitiria o reparo dos tecidos apico/periapicais.

Chegou-se a idealizar um “bisturi” endodôntico (uma lima Hedstrom “modificada”) para que lá, na porção final do terço apical, a 1 mm aquém do ápice radicular, cortássemos a polpa. Corte perfeito, plano, ferida única, o ambiente ideal para o reparo.

Num requinte, o desejo foi além, no sentido de se depositar sobre o coto pulpar uma “gota” de hidróxido de cálcio.

Recomendações (corte da polpa nas condições descritas e deposição da gota de hidróxido de cálcio sobre o coto pulpar) que o tempo e a clínica se encarregaram de mostrar irrealizáveis.

Detalhe; o reparo dos tecidos apico/periapicais não deixou de ocorrer.

A polpa agredida e não tratada costuma evoluir para a necrose e infecção do canal (sistema de canais).

Percebeu-se, então, que a simples remoção do que restou dela não era suficiente para o reparo da patologia que surge como consequência; a periodontite apical.

Assim, tornava-se necessário alargar o canal para remover a infecção e, diante da eventual permanência de alguns microrganismos, vedá-lo hermeticamente. Enclausurados entre a obturação e as paredes do canal e dessa forma afastados de qualquer fonte de nutrientes, o destino era a morte para esses microrganismos.

Além disso, com esse vedamento, estaria impedida a penetração de fluidos teciduais no canal, onde, segundo a literatura endodôntica, entrariam em processo de estagnação, decomposíção e gerariam subprodutos tóxicos que fariam surgir a lesão periapical, ou manter uma já existente.

Assim, surge e se afirma o desejo de vedamento hermético!

Diversas técnicas de obturação, cones de guta percha de todos os tipos, calibres e conicidades, cimentos obturadores com as mais variadas características, propriedades, radiopacidades, escoamento, ações químicas, biológicas… tudo foi dito e feito em seu nome.

Entretanto, ao longo de cerca de 70 anos, em nenhum momento o vedamento hermético conseguiu comprovar sua existência. Muito menos sua relação direta com o sucesso do tratamento endodôntico.

O que nos resta?

Os espaços vazios?

Quais?

Aqueles nos canais, deixados por obturações eventualmente incompletas, mas cada vez menos frequentes?

Ainda que muito longe do desejo de vedamento hermético, algo muito difícil de conceber, são inegáveis os avanços no sentido de, cada vez mais, termos condições de conseguir melhor selamento dos canais, objetivo mais facilmente atingido com o reconhecimento da necessidade de restaurações coronárias também cada vez mais qualificadas, integrando-se ao conceito de proteção da cavidade pulpar, do qual faz parte a obturação do canal.

Chegando a níveis animadores essa capacidade de proteção, por que não a acompanhou na mesma intensidade o percentual de reparo dos tecidos periapicais?

Por que, por exemplo, ainda há a necessidade de tantos retratamentos?

Talvez mais do que nos canais, por conta de obturações não tão bem-feitas, a preocupação com os espaços vazios esteja nas nossas mentes.

O reconhecimento de que os espaços vazios nos canais não possuem essa relação de causa e efeito com o insucesso do tratamento endodôntico parece nos levar a interpretações equivocadas.

Pode-se imaginar, por exemplo, que esse reconhecimento nos levaria a deduzir pela não importância da obturação.

Por sua vez, essa desimportância nos levaria a não reconhecer a relevância dos materiais obturadores e daí, quem sabe, à obturações negligentes.

Que tipo de impacto poderia ter esse tipo de interpretação?

Alguns, entre os quais, o equívoco de se projetar grandes prejuízos financeiros às empresas de materiais odontológicos.

É importante entender que a discussão sobre concepção e conceitos é fundamentalmente científica e, particularmente nesse caso, não envolve técnica de realização da obturação. Sendo assim, não eliminará a importância, mais do que isso, a necessidade da obturação.

Como não existe obturação sem materiais obturadores, não há possibilidade de que os materiais obturadores sejam descartados do arsenal endodôntico.

Sem chance!

Independentemente disso, a pesquisa é feita, ou deveria ser, com um olho no compromisso com a ciência e o outro na sociedade.

Ao clínico atento, que observa com senso crítico a cena endodôntica, cabe, e ele sabe disso, esperar que surja uma luz que pelo menos nos aponte com mais clareza a explicação para casos bem-sucedidos em canais com obturações que deixam a desejar e, ao contrário, a explicação para fracassos consagrados em casos de obturações hollywoodianas. 

E o pesquisador?

Talvez exista aí alguma apreensão.

Continuará a pesquisar sob a perspectiva do paradigma da obturação, ou irá, finalmente, abrir a sua própria caixa, de lá tirar aquela ideia esquisita, pesquisá-la, descobrir e mostrar ao mundo a Endodontia como ela é?

Obs. Este texto representa o “A Endodontia Invisível! 4ª parte”.

A Endodontia Invisível. 3ª parte

Por Ronaldo Souza

“O indivíduo crítico deve então recorrer a estratégias de resistência diante de tais discursos hegemônicos dentro dos quais há pouca liberdade para expressar pensamentos”.
Holmes D, et al. (Int J Evid Based Healthc 2006; 4: 180–186)

Teria sido esse artigo aí em cima uma “estratégia de resistência”?

Não foi essa a intenção.

O que ocorre é que ele era a primeira parte de uma tríade. Quando foi publicado, eu já estava com o segundo e mais importante artigo da tríade praticamente pronto. Ou seja, o caso clínico apresentado no artigo aí em cima não estava só, perdido no firmamento da Endodontia.

Isso mostra o quanto os professores, movidos por sentimento(s) que desconheço, fizeram uma crítica, além de desastrada, precipitada. Havia um trabalho clínico, realizado durante 10 anos (entre 1987 e 1996), com acompanhamento clínico/radiográfico de até 21 anos (o último feito em 2008), que estava guardado esperando o momento para ser redigido e publicado.

Racionalismo X Empirismo

Quando se fala de ciência, não há lugar para o dogma.

Ciência não é a casa da fé, do dogma, da certeza!

Ciência é onde deveriam morar o racionalismo e o empirismo que, juntos, podem tornar mais fácil chegar ao conhecimento e assim criar evidências sólidas.

Vou trazer da 2ª parte deste texto uma provocação que fiz:

“Dessa forma, parece haver quantidade abundante de evidências dando suporte à concepção de que a obturação do canal é o fator determinante para o sucesso do tratamento endodôntico e, ao contrário, praticamente nada sobre a possibilidade de que esse papel caberia ao preparo do canal”.

Por que usei “parece haver quantidade abundante de evidências” se sei que há?

Não parece. Há!

Pelo menos é assim que todos pensam!

Agora, em cima dessa provocação, faço um questionamento:

  1. essas evidências foram construídas em base sólida?
  2. constituem, realmente, um conjunto consistente de evidências?

Evidentemente que não!

Como podem ser sólidas se jamais foram comprovadas?

Permito-me mais uma vez citar Silvia Regina Siqueira, Professora Associada da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (USP).

“Na prática, muitos caem na crença dogmática das evidências publicadas, que podem ou não ser aceitas no futuro e que poderão muito em breve ser substituídas por alguma outra novidade.

A evidência não é uma verdade sobre os fatos, mas uma teoria sobre a aparência, aguardando a próxima proposta revolucionária”.

Isso ocorre graças à ideia generalizada de que, se está publicado, merece fé. Por isso, é tão necessário que se estabeleçam normas que enquadrem.

Categorizar faz parte do processo.

Daí, nascem os qualis e os fatores de impacto!

E bíblias são criadas!

Por acaso, alguém comprovou o travamento do cone de guta percha como sinônimo de vedamento hermético?

Alguém comprovou a existência de vedamento hermético?

E, no entanto, todos os qualis e fatores de impacto deram isso como verdades inquestionáveis!

Dogmas também fazem parte do processo!

“Isso torna difícil para os estudiosos expressarem novas e diferentes ideias em um círculo intelectual onde a normalização e padronização são privilegiadas no desenvolvimento do conhecimento”.
Holmes D, et al. (Int J Evid Based Healthc 2006; 4: 180–186)

Para ajudar na discussão, trago, também da construção de minha linha de raciocínio, um trecho do 1º texto:

“Ao longo de todos esses anos, não se tem conhecimento da existência de um único trabalho que tenha comprovado a existência de vedamento hermético!”

Diante de todo esse contexto, deixemos de lado o que foi estabelecido, o que está consagrado (mas, jamais confirmado) e observemos sob a perspectiva da ciência.

Como vimos, há centenas, milhares de evidências que dizem que o reparo da lesão periapical se deve à obturação e, ao contrário, raríssimas evidências que apontam para o preparo do canal.

Onde está, de fato, a robustez científica?

Na quantidade de referências existentes que dizem que o reparo se deve à obturação, ainda que estejamos esperando há 70 anos pela sua comprovação, ou nas raríssimas evidências que apontam para o preparo do canal como o responsável por esse reparo?

Faço-lhes outra vez o mesmo questionamento e apresento a mesma resposta da 2ª parte desse texto.

“Há espaço para uma discussão desse tema?”

Sob a perspectiva de que as evidências existem em quantidade absurdamente maior a favor da obturação, não parece haver”.

Só que, agora, mudo a minha resposta: há espaço, sim! Basta tão somente, se não, ver, pelo menos imaginar a possibilidade de…

Se a lesão periapical é consequência da presença de infecção no sistema de canais e a Endodontia diz que, controlando a infecção, desaparece a lesão… o que estamos esperando?

Se enchemos o peito para falar aos nossos alunos da Endodontia apoiada em evidência, como ensinar tendo como base, como referência, ideias e concepções que durante longos 70 anos nunca se comprovaram?

Quando virá à luz a Endodontia que está aí, pedindo passagem?

Quando virá à luz e se tornará visível essa Endodontia?

Quando será permitido que isso aconteça?

O que nos impede de ver?

Se a visão física muitas vezes encontra limitações, a visão da imaginação não conhece limites.

De que vive a Ciência?

Da dúvida, da incerteza, da curiosidade, da busca, toda uma engrenagem que ativa a imaginação de professores e pesquisadores e acende a grande fogueira da Ciência.

A fogueira está aí, diante de nós!

O que estamos fazendo nós, professores e pesquisadores, para acendê-la?

O que faremos?

Achei muito forte quando em entrevista à TV Educativa da Bahia (em rede com as outras TVs Educativas do Norte/Nordeste), o psicanalista Christian Dunker (USP), respondendo a uma das perguntas, disse:

“Nós perdemos o desejo de melhorar!”

Muito forte!

A Endodontia Invisível. 2ª parte

Por Ronaldo Souza

Nos últimos 20 anos, quantos artigos foram publicados em periódicos importantes falando das virtudes dos materiais obturadores, particularmente dos cimentos, e consequentemente da obturação?

É impossível dizer, de tantos que já foram!

No mesmo período, quantos artigos foram publicados em periódicos importantes falando algo como “o insucesso não ocorre pela falha da obturação, mas pela falha do preparo do canal.”?

Quantos além do de Sabeti MA, Nekofar M, Motahhary P, Ghandi M, Simon JH. J Endod. Jul 2006, que citei no texto anterior (http://localhost/wp/endo2/a-endodontia-invisivel/)?

Dessa forma, parece haver quantidade abundante de evidências dando suporte à concepção de que a obturação do canal é o fator determinante para o sucesso do tratamento endodôntico e, ao contrário, praticamente nada sobre a possibilidade de que esse papel caberia ao preparo do canal.

Sendo assim, uma pergunta se impõe: há espaço para uma discussão desse tema?

Sob a perspectiva de que as evidências existem em quantidade absurdamente maior a favor da obturação, não parece haver.

Tanto é que essa discussão não existe!

Recordo e trago de volta um pouco de Dave Holmes et al. (Int J Evid Based Healthc 2006; 4: 180–186):

Isso torna difícil para os estudiosos expressarem novas e diferentes ideias em um círculo intelectual onde a normalização e padronização são privilegiadas no desenvolvimento do conhecimento.

 O indivíduo crítico deve então recorrer a estratégias de resistência diante de tais discursos hegemônicos dentro dos quais há pouca liberdade para expressar pensamentos.”

O que são “estratégias de resistência”?

Que estratégias são essas que permitiriam resistir e falar do que não parece haver interesse em ver e por isso se torna… invisível?

Ora, o que é invisível não existe!

Por que e para quem falar do que não existe?

Aqui, eu abro um parêntese para trazer uma história.

Vejam o artigo abaixo que publiquei em 2011. Observem no retângulo vermelho que ele foi submetido à publicação em 21 de dezembro de 2010 e aceito em 06 de janeiro de 2011.

Portanto, entre o Natal e Réveillon de 2010/2011 (duas semanas) ele foi submetido e aceito. Este pode ser considerado um prazo rápido entre submissão e aprovação, porque não é incomum levar meses para isso acontecer.

Em pleno Natal-Réveillon!

Devo imaginar que Lars Spangberg (editor científico do periódico) e revisores não devem ter encontrado erros no trabalho e, por isso, aprovaram “de imediato”.

No entanto, dois professores de Endodontia brasileiros não viram assim o artigo e carregaram nas críticas. Jogaram pesado. Apesar da rápida aprovação por Spangberg, a deduzir pelas críticas dos dois professores estávamos diante de um artigo de baixa qualidade!

Leia o artigo na íntegra clicando aqui e faça seu julgamento.

As críticas foram feitas no site do Fórum Brasileiro de Endodontia, que tinha à época (não sei como está hoje) centenas (milhares?) de participantes.

Fiquei sem entender aquela postura. E, diante da batalha entre os anjinhos e capetinhas da mente, fiquei com os anjinhos e adotei o famoso “deixa pra lá”. Fiz a vida continuar.

Por que não?

Sabe aqueles momentos que lhe pegam meio alheio às coisas, “viajando”?

Cinco anos depois, um deles me pegou e me atirou um questionamento na cara! Por que deixar passar em “brancas nuvens”?

E aí, não faço a menor ideia do porquê, exatamente 5 anos depois escrevi alguns textos sobre o ocorrido, que postei entre 08 e 17 de janeiro de 2016. Agora, 6 anos depois (sempre começo de ano), trago de volta os textos, porque eles se encaixam bem no assunto sobre o qual estamos falando: A Endodontia Invisível.

Mas, agora, com algo a mais. Detalhes ditos aí em cima não estavam naquele momento entre 08 e 17 de janeiro de 2016.

Os textos estão exatamente da mesma maneira como foram postados na época. Peguei cada crítica feita, uma a uma, e respondi contrapondo a agressividade dos comentários com respostas bem humoradas.

Vou dar um tempo para que vocês possam ler os textos (abaixo), para eu voltar a postar os atuais na sequência que estamos fazendo.

Clique nos links para ler.