A Endodontia Invisível

Por Ronaldo Souza

Com grandes atuações de Wladimir Brichta e Walmor Chagas, o filme “A Coleção Invisível” (2013), de Bernard Attal, é de fazer respirar fundo. Talento, beleza e sensibilidade estão presentes o tempo todo.

É a história de um fazendeiro da Bahia (Walmor Chagas) que possuia uma coleção rara de gravuras e um jovem (Wladimir Brichta), cuja família tem uma loja de antiguidades, viaja para o interior da Bahia para tentar comprar. Aí se desenvolve o filme.

Um detalhe marcante é que a aquela altura da vida, o fazendeiro que possuia a coleção tinha ficado cego e Walmor Chagas, o ator que o interpreta, estava cego na vida real e morreu logo em seguida às gravações.

Fica claro agora que roubei o título do filme para dizer que hoje há uma Endodontia invisível. Mas, não é só isso.

Diferentemente da coleção invisível do filme, que era invisível porque não existia mais (e o fazendeiro não sabia, porque não enxergava mais), a Endodontia invisível existe.

É uma Endodontia que ninguém vê (será que me enganei e falei que ninguém quer ver?) e quando alguém tenta mostrá-la, a impressão que se tem é a de que ela desaparece, fica… invisível.

Em 1955, Ingle estabeleceu que “cerca de 60% dos insucessos endodônticos eram causados pela obturação incompleta dos canais radiculares”. Daí surgiu a necessidade de vedamento hermético e com ela a do travamento do cone de guta percha. Isso se tornou definitivo em todo o mundo endodôntico.

Há praticamente 70 anos essa concepção reina na Endodontia.

Ao longo de todos esses anos, aprendemos que o tratamento endodôntico é como uma corrente, cujos elos são iguais e têm a mesma importância. Entretanto, sem que se tenha percebido ou não, o que tem sido dito e ensinado é que a obturação é o fator determinante do sucesso no tratamento endodôntico, portanto, o seu elo mais importante. Se alguém duvida, é só observar a literatura endodôntica.

O que temos aprendido é que o vedamento hermético proporcionado pela obturação representa o fator responsável pelo nosso sucesso. Daí a importância, por exemplo, do travamento do cone de guta percha e, máximo do requinte técnico, o travamento perfeito do cone. Entram também em cena e com enorme destaque os cimentos endodônticos. Sobre eles, a literatura é infinda.

Dada a quantidade de vezes do que já se disse, escreveu e ensinou sobre o papel da obturação, torna-se desnecessário explicar o que é e como fazer para conseguir o vedamento hermético.

Detalhe:

Ao longo de todos esses anos, não se tem conhecimento da existência de um único trabalho que tenha comprovado a existência de vedamento hermético!

O que fazer?

Deveria ser fácil responder a essa questão, mas não é.

Entretanto, talvez seja interessante conhecer um pouco mais dessa história.

O que se vê acima são dois trechos do editorial do Journal of Endodontics de dezembro de 2007. Esse editorial tinha tudo para se tornar relevante. Não conseguiu e, na verdade, tornou-se lamentável. Quando o li, há pouco mais de 14 anos, passei a ver o JOE e a literatura endodôntica de outra maneira.

Ele aborda dois temas. Um deles é o que apresento aqui. Traduzi o título e os dois trechos para conversarmos. Vejamos o que dizem.

Procura-se: Uma Base de Evidências

Texto da coluna à esquerda:

Embora tenhamos usado o método científico na tomada de decisões em saúde por mais de um século, grande parte de nossa prática clínica ainda pode ser encarada como empirismo devido à escassez de estudos de alto nível de evidência em nossa literatura, como exemplificado por avaliações de resultados em endodontia (1, 2). Todos devemos defender um nível mais rigoroso de ciência para produzir uma verdadeira base de evidências para nossas práticas. O Conselho Editorial do Journal of Endodontics busca os mais altos padrões da ciência, e devemos pesar a confiabilidade de metodologias utilizadas, na avaliação dos estudos submetidos para publicação.”

Texto da coluna à direita:

O vedamento é importante, e métodos de avaliação que sejam confiáveis, reprodutíveis e que se relacionem com os resultados clínicos são necessários. O Conselho Editorial sugere que a comunidade científica suspenda os estudos sobre vedamento que comparem diretamente uma técnica endodôntica com outra. Em vez disso, incentivamos os pesquisadores a estudar a validade dos próprios em si. Serão considerados para publicação manuscritos que 1) comparem várias metodologias de avaliação de selamento para tentar reduzir o número de técnicas comparativas usadas, 2) demonstrar implicações clínicas significativas para médicos, pacientes e fabricantes, e 3) Ao avaliar a infiltração de microrganismos, distinguir o vedamento dos efeitos antimicrobianos dos materiais obturadores. Tentem criar um padrão-ouro que possamos usar para avaliar verdadeiramente o quão bem nossas técnicas podem selar o canal radicular para que possamos descobrir o que funciona e o que não funciona. Nossos pacientes merecem isso.”

Começo pelo fim, quando o texto diz “nossos pacientes merecem isso”.

Isso, o que?

Em julho de 2006, portanto, 1 ano e 7 meses antes do editorial, o artigo abaixo havia sido publicado no JOE.

Vamos primeiro ao título:

Cura da Periodontite Apical Após Tratamento Endodôntico Com e Sem Obturação em Cães

De forma bastante resumida, nesse trabalho as cavidades pulpares foram acessadas e deixadas abertas em contato com o meio bucal, para infecção e formação de lesões periapicais. Em seguida, 56 canais foram preparados da mesma maneira e depois divididos em dois grupos. No grupo controle, 28 canais foram obturados com cones de guta percha e cimento AH26 Plus. No grupo experimental, 28 canais não foram obturados. Após 190 dias, os dentes foram removidos e analisados microscopicamente.

As frases abaixo (tradução literal) sintetizam resultados e conclusões.

O que se poderia esperar após a publicação de um trabalho bem delineado, com questionamento claro e consistente de um paradigma da Endodontia, na revista científica mais importante do mundo endodôntico?

Nessas condições, o que se poderia esperar de um trabalho que, deixando de lado o pensamento único e consagrado, demonstra que não é a obturação, mas sim, o preparo do canal o fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico?

No mínimo, uma discussão científica entusiasmada, motivadora e apaixonante!

Nada aconteceu!

Aliás, aconteceu.

A recomendação em editorial do periódico mais importante da especialidade no sentido de que se mudassem os métodos de investigação da qualidade da obturação.

Tentem criar um padrão-ouro que possamos usar para avaliar verdadeiramente o quão bem nossas técnicas podem selar o canal radicular para que possamos descobrir o que funciona e o que não funciona. Nossos pacientes merecem isso.

Quantos trabalhos foram feitos e publicados “querendo ver” se é válido ou não o que diz o artigo de Sabeti e colaboradores?

Se alguém souber de algum, por favor me diga.

Não parece incompreensível que nada tenha sido feito nessa direção após um trabalho que deveria, no mínimo, estimular as nossas mentes e efervescer pesquisadores e laboratórios?

Quantos artigos estão sendo publicados desde então sobre as virtudes dos materiais obturadores, particularmente dos cimentos endodônticos?

Alguém conseguiu criar uma metodologia que se transformou em padrão-ouro para avaliar verdadeiramente…?

Ou seja, não se toca no paradigma.

Vejam o que dizem Dave Holmes e colaboradores no International Journal of Evidence-Based Healthcare (2006).

As ciências da saúde se orientam a partir de instituições cuja autoridade raramente é desafiada ou testada, provavelmente porque só elas controlam os termos pelos quais qualquer desafio ou teste prosseguiria.

Isso torna difícil para os estudiosos expressarem novas e diferentes ideias em um círculo intelectual onde a normalização e padronização são privilegiadas no desenvolvimento do conhecimento.

O indivíduo crítico deve então recorrer a estratégias de resistência diante de tais discursos hegemônicos dentro dos quais há pouca liberdade para expressar pensamentos.”

Ignora-se (nega-se?) qualquer possibilidade de se pensar em alguma outra coisa que possa buscar uma explicação mais plausível para o sucesso, ou o fracasso, e se abrem as portas para a “confirmação” de algo que jamais se confirmou?

Trago de volta a frase escrita lá em cima: ao longo de todos esses anos, não se tem conhecimento da existência de um único trabalho que tenha comprovado a existência de vedamento hermético!

No filme, a coleção invisível já não existia, mas, pela cegueira, o seu proprietário não tinha como saber.

A Endodontia invisível existe! O que nos impede de ver?

Vejam o que diz Silvia Regina D. T. Siqueira (Professora Associada, Escola de Artes, Ciências e Humanidades – USP).

O que vemos na prática é o desinteresse das revistas científicas quando os resultados não são os esperados“.

Volto ao editorial lá em cima, ao trecho da coluna à esquerda.

“Grande parte de nossa prática clínica ainda pode ser encarada como empirismo devido à escassez de estudos de alto nível de evidência em nossa literatura…”.

Isso, nossos pacientes não merecem!

Evidências e opiniões

Por Ronaldo Souza

Há alguns dias, (Domenico) Ricucci fez uma postagem interessante no Instagram, com milhares de curtidas. O título, Limite apical dos procedimentos do tratamento endodôntico: Biologia é o que faz a diferença!

Veja o que ele diz na legenda da 1ª imagem:

“O comprimento de trabalho foi estabelecido na constrição apical, exclusivamente por meio de radiografias periapicais. A patência apical não foi realizada”.

Embaixo, no texto, ele diz:

“Estou fazendo algumas considerações sobre a questão do limite apical. Num momento em que a Endodontia tem tomado um caminho errado, o respeito pela constrição apical continua crucial para o sucesso clínico e histológico a longo prazo”.

Na legenda da imagem seguinte, ele mostra que a obturação está a 1,6 mm aquém do ápice radicular e acrescenta que “tal tratamento, com preparo cônico do canal, mantendo a curvatura apical e obturação homogênea na constrição apical representa excelência técnica, de acordo com os princípios da escola endodôntica biológica”.

Os negritos com palavras grifadas não são meus e sim de Ricucci.

Cabem algumas considerações.

  1. A primeira diz respeito à minha absoluta concordância com a frase “Biologia é o que faz a diferença”. Dispensa comentários.
  1. Além das divergências quanto à existência de um local específico que possamos definir como o ponto de constrição apical, parece haver aqui outra incongruência. Tendo sido o comprimento de trabalho estabelecido “na constrição apical”, vê-se que mais adiante ele diz e mostra o CT desse caso como sendo 1,6 mm aquém do ápice radicular. A certeza da constrição apical pela percepção tátil não tem se mostrado confiável e não tem sido recomendada pela literatura endodôntica, com a qual Ricucci tem contribuído de maneira relevante e inegável. Para mais, a literatura não tem demonstrado ser comum a “constrição apical” se apresentar tão distante do ápice radicular.
  1. Defensor contumaz de que sob nenhuma hipótese o limite apical de trabalho deve ultrapassar a fronteira da constrição apical, ele faz questão de afirmar enfaticamente que “a patência apical não foi realizada”, expressando mais uma vez a sua crítica a esse procedimento.
  1. Também como legenda de imagem, ele diz: “Tal tratamento, com preparo cônico do canal, mantendo a curvatura apical e obturação homogênea na constrição apical representa excelência técnica, de acordo com os princípios da escola endodôntica biológica”

Para ilustrar melhor essa discussão, trago o caso clínico abaixo realizado por Fernando Gavazza, aluno do sétimo semestre da nossa faculdade, cuja semelhança com o caso apresentado por Ricucci é muito grande. Há algumas coisas em comum entre os dois casos clínicos, como a manutenção da curvatura apical, conicidade do canal, homogeneidade da obturação, o não extravasamento de material obturador, cimento obturador à base de óxido de zinco e eugenol…

Há, porém, entre eles, pelo menos duas diferenças, uma delas crucial, para usar a expressão utilizada por Ricucci. No nosso, não só foi feita a patência, como também a instrumentação do canal cementário, ensinada aos nossos alunos como rotina nos casos de lesão periapical.

A segunda é que na primeira radiografia de acompanhamento realizada por Ricucci 7 meses depois, o reparo está em andamento, porém ainda incompleto. Na sequência, percebe-se que a lesão periapical desapareceu. No nosso caso, a primeira e única radiografia de acompanhamento, realizada 6 meses após o tratamento, já mostra o completo desaparecimento da lesão periapical.

Reação inflamatória menos intensa, neoformação cementária com selamento biológico completo e processo de reparo mais rápido parecem ser o que se deve esperar quando se faz a instrumentação do canal cementário. É o que sugerem os resultados do artigo abaixo*.

Nos dois casos, o aqui apresentado e o de Ricucci, há lesão periapical, o que aponta para a existência de infecção no canal radicular, inclusive no canal cementário, como tem demonstrado amplamente a literatura.

Tendo em vista que a “biologia é o que faz a diferença”, biologicamente, parece sensato ignorar 1,6 mm de infecção no canal?

A resposta pode vir de imediato: claro, tanto é que deu certo.

Diante desta, uma contrarresposta também pode ser imediata: e os que não dão?

Sigamos com as respostas na ponta da língua.

E quem garante que fazendo a instrumentação do canal cementário dará certo em todos os casos?

Ninguém!

Não há espaço para certezas. A Endodontia pede um olhar mais inteligente.

Estamos diante de um impasse incontornável?

Não!

Estamos, sim, diante de um velho problema: a questão do consagrado e discutível tema das evidências científicas. Não é oportuno discuti-lo agora, mas nada impede que algo seja dito para fechar a nossa conversa e, quem sabe, abrir essa discussão em outro momento.

Haveria uma certa conveniência quando se argumenta em nome das evidências?

Teríamos mais convicções do que evidências?

As evidências parecem ser menos usadas do que se imagina e se pretende fazer parecer. As opiniões apoiadas na experiência ainda ocupam lugar de destaque nesse processo. Há autores e professores que têm noção clara desse fator e sabem usá-lo. Admitamos ou não, eles têm peso na formação de profissionais, principalmente dos mais jovens. 

A necessidade de discernimento clínico é sempre enfatizada para a formação do bom profissional e isso é interessante. Deve-se perceber, entretanto, que o discernimento clínico costuma andar mais de mãos dadas com as evidências do que com as opiniões.

Discernimento é bom senso.

Costuma-se dizer que em Endodontia se briga por meio milímetro.

Por que será?

Trago de volta a frase que escrevi aí em cima: Biologicamente, parece sensato ignorar 1,6 mm de infecção no canal?

Acrescento outra: o bom senso recomendaria ignorar 1,6 mm de infecção no canal?

* A imagem abaixo mostra o trabalho original de minha orientanda, Paula Brandão, no mestrado da nossa faculdade. Observe que o título é “Influência da Instrumentação do Canal Cementário no Reparo de Lesões Periapicais: Estudo em Ratos”, mas no artigo publicado (aí em cima) o periódico colocou como foraminal enlargement (ampliação foraminal), expressão que considero equivocada.

A estéril e tola discussão sobre o tempo em que se deve fazer o tratamento endodôntico

Por Ronaldo Souza

Com frequência, a discussão sobre o tratamento endodôntico tem sido feita sob a perspectiva de sua realização em uma ou duas sessões. Assim, estamos diante de uma questão numérica: uma ou duas sessões.

Por razões diversas, não é incomum que questões endodônticas fiquem resumidas aos números, quando abordagens importantes poderiam ser feitas.

Mais do que o tecido que constitui a porção final do canal e em que condições ele se encontra, discute-se o limite apical de trabalho sob a perspectiva de sua extensão.

Daí a força do 0 a 2,0 mm aquém do ápice radicular na determinação do comprimento de trabalho estabelecido pela literatura endodôntica!

Ainda que em situações específicas microrganismos possam ser encontrados nos tecidos periapicais, aceita-se que em condições normais não são esses os tecidos que habitam e sim o sistema de canais. É muito importante entender que, nessas condições, no sistema de canais, eles se encontram protegidos da ação da medicação sistêmica e do sistema imune do paciente.

Assim, a luta pelo controle de infecção se dará no sistema de canais e é altamente dependente da qualidade do trabalho do endodontista. Em outras palavras, a medicação antibiótica e o sistema imune do paciente não têm capacidade de resolver o problema quando o tratamento endodôntico é mal realizado. A compreensão desse aspecto assume papel de grande relevância no êxito do tratamento.

Uma das vantagens atribuídas ao tratamento endodôntico em sessão única é poder fazer a restauração definitiva na mesma consulta. Uma vez que não haveria mais a necessidade da segunda, o risco de contaminação do canal entre as consultas, claro, deixaria de existir.

A simplificação dos procedimentos técnicos será sempre bem-vinda, mas é necessário que a construção da linha de raciocínio que dará suporte a determinadas escolhas seja consistente.

Cabe ao preparo do canal o papel mais importante do tratamento endodôntico: o controle de infecção. Desse preparo, fazem parte e o constituem o acesso, a instrumentação e a irrigação. Nesse sentido, a ação mecânica da instrumentação desempenha função primordial.

Sabe-se, entretanto, há muito tempo, que cerca de 10 a 50% das paredes dos canais não são tocadas pelos instrumentos durante o preparo do canal.

Em condições normais, isso deveria bastar para ficar bem clara a possibilidade de falhas no nosso objetivo de remoção do conteúdo dos canais durante a sua instrumentação.

Particularidade do tratamento endodôntico e o que talvez o torne único nesse sentido, é aí que entram e ganham grande importância as substâncias químicas auxiliares do preparo. Substâncias químicas que serão também responsáveis pela indispensável ação física de que tanto precisa o tratamento endodôntico. E aí estamos falando especificamente das soluções irrigadoras.

Deixemos de lado todas as dificuldades, possibilidades e discussões sobre o uso dessas soluções. Nesse momento, é necessário tão somente que nos lembremos do que diz a literatura quanto à nossa real capacidade de exercer controle de infecção de maneira realmente efetiva.

São inúmeros os relatos sobre as dificuldades existentes nesse decisivo momento do tratamento endodôntico.

É em função disso que às ações desenvolvidas para o adequado acesso à cavidade pulpar e sua instrumentação e irrigação, incorpora-se outra: a realização da medicação intracanal.

Se das referidas e concomitantes ações pertinentes ao preparo do canal (acesso-instrumentação-irrigação) não faz parte a medicação intracanal, ela surge como um passo clínico a mais, cujo objetivo é fundamentalmente exercer ação antimicrobiana complementar a aquela já alcançada pelo preparo.

Por não fazer parte desse trinômio (acesso-instrumentação-irrigação), cuja realização é simultânea, e pelas suas características próprias, a medicação intracanal pede um tempo à parte. Por conta disso, torna-se necessário outro atendimento para que, entre esses dois momentos, ela possa desempenhar a sua ação antimicrobiana. Em outras palavras, torna-se necessária mais uma consulta, mais uma sessão.

Perceba-se, então, que a segunda sessão não é uma questão aleatória, desconectada da realidade. Ela não é ditada, por exemplo, por uma técnica defasada e/ou profissionais ultrapassados que desconhecem a tecnologia, que desconhecem as técnicas “modernas”.

Pensam assim os que ignoram o que é de fato um tratamento endodôntico.

Pensam assim os que, apesar de fazerem parte do coral que canta a necessidade de controle de infecção, não conseguem entender o que isso significa e o veem tão somente como um ato mecânico de alargamento e obturação.

A segunda consulta, que o simplismo do desconhecimento transformou em “mais uma sessão”, existe como resposta aos relatos da literatura, que diz que cerca de 10 a 50% das paredes dos canais não são tocadas pelos instrumentos.

Nunca lhes ocorreu que 50% correspondem à metade das paredes dos canais?

Nunca lhes ocorreu que esse dado demonstra claramente a possibilidade de em algumas situações a instrumentação do canal não ser suficiente para efetivamente controlar a infecção e que isso pode representar a causa de muitos dos seus insucessos endodônticos?

É assim que se faz ciência, contando sempre com as possibilidades, poucas vezes com a certeza.

Assim também deveria ser com a Endodontia, não fossem o desconhecimento, a desinformação e a informação de baixa qualidade, que se alastram nesses tempos.

Escolhas devem ser feitas dentro das possibilidades e perspectivas existentes, não de compromissos assumidos que, com frequência, colidem com princípios elementares da ciência, da clínica e do bom senso.

Como costuma ser, a literatura traz informações favoráveis às duas formas de tratar o canal, mas são evidentes e mais frequentes os relatos que apresentam melhores resultados quando se faz a medicação intracanal.

Diminuição da carga microbiana, pós-operatório e resultados a médio e longo prazos, melhor e mais rápido reparo, todos os dados a favor do uso da medicação intracanal.

O que os endodontistas ganham ao insistirem em fazer a segunda sessão? Não seria, também para eles, melhor fazer em sessão única?

Por que não o fazem?

Por birra?

Nunca lhes ocorreu que deve haver algo maior a justificar um procedimento que os faz gastar mais uma sessão e, consequentemente, ter menor lucro?

“Ganhar menos” não tem importância para eles?

Como devem ser tolos esses profissionais que insistem em ganhar menos mesmo sabendo que podem ganhar mais, não é mesmo?

Vamos lá!

A importância da restauração coronária já está estabelecida há muito tempo. Desde 1995, por exemplo, Martin Trope já dizia que “o sucesso clínico de dentes tratados endodonticamente parece depender mais do selamento coronário do que se imaginava”.

Nem de longe, portanto, querer negar a importância da sua realização o mais imediatamente possível. Mas não é incomum que depoimentos como esse sejam usados como argumentos, aparentemente consistentes, para justificar fracassos de procedimentos que frequentemente não se sustentam a médio e longo prazos.

Qual a grande vantagem da restauração definitiva na mesma sessão do tratamento endodôntico?

A garantia de que não haverá a chegada de novos microrganismos no canal porque ele já está obturado e o dente restaurado. Não parece haver mais dúvidas de que nessas condições, dente restaurado, a possibilidade de chegada de novos microrganismos é bem menor do que quando se realizam selamentos provisórios entre as “duas sessões”.

Se é garantida a não chegada de “novos” microrganismos pela realização imediata da restauração definitiva, o que dizer sobre a possibilidade de permanência de bactérias no sistema de canais, deixadas por um preparo mais focado no fator tempo do que na execução de ações que podem exercer mais previsivelmente efetivo controle de infecção?

Por que será que a maior causa de fracasso do tratamento endodôntico é a permanência de bactérias no sistema de canais pós-tratamento, inclusive entre a obturação e o forame apical?

É porque não se restaura imediatamente o dente ou porque o preparo de canal malconduzido não consegue efetivamente removê-las?

Você ainda faz sondagem do canal?

Por Ronaldo Souza

O Fluminense, time de futebol do Rio de Janeiro, sempre foi tido como um time de elite.

Chico Buarque, Jô Soares, Hugo Carvana, Ivan Lins, Caio Blat, Paulo Gustavo, Bibi Ferreira, Lulu Santos, Fernanda Montenegro…, é infindável a lista de personalidades do mundo artístico/cultural que torce pelo Fluminense, também conhecido como pó de arroz.

Nessa lista, não poderia faltar Nelson Rodrigues, jornalista pernambucano radicado no Rio de Janeiro.

Apaixonado e conhecedor das coisas do futebol, é justamente desse brilhante torcedor do Fluminense, Nelson Rodrigues, um dos textos mais reveladores do perfil colonizado do brasileiro, que se tornou uma referência no nosso país: “Complexo de vira-latas”. Um texto que saiu do futebol e ganhou vida própria.

Originalmente escrito em 1958, antes da Copa do Mundo daquele ano, veja um pequeno trecho do que disse Nelson Rodrigues:

“Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol…” (leia o texto completo aqui https://www.ufrgs.br/cdrom/rodrigues03/rodrigues3.pdf).

Vivesse hoje, o criador da expressão “óbvio ululante” talvez viesse a constatar que esse perfil em nada mudou. Pelo contrário, parece ter piorado.

Por sua vez, Ariano Suassuna, paraibano radicado em Pernambuco e escritor de grande talento, louco por futebol (torcedor do Sport, de Recife), também não deixava por menos. Defensor ferrenho das coisas do Brasil, particularmente, da nossa língua, era outro conhecedor da alma do brasileiro, algo facilmente observado na sua obra.

Há, porém, entre outras, uma diferença marcante entre os dois, ele e Nelson Rodrigues; Suassuna era um tremendo gozador, um bem humorado gozador.

Em um dos seus vídeos, ele conta um episódio de riqueza ímpar em detalhes e ironia, das mais finas e cortantes, conseguindo de maneira irretocável aquilo que, possivelmente, nem Nelson Rodrigues (dono de estilo diametralmente oposto) seria capaz: fazer emergir, com toda sua força, o complexo de vira-latas.

Quantos naquele auditório, naquele momento ao vivo, e em “auditórios” do YouTube terão sido capazes de perceber que aquele paraibano estava, ao mesmo tempo, fazendo-os rir e rindo de muitos deles, por se verem diferenciados, como se via aquela mulher cujo horizonte era The Disney World, o mundo da fantasia?

Às gargalhadas do auditório, juntou-se o riso de Suassuna, surdo, silencioso, o riso que desnuda e zomba.

Ah, essa deliciosa sensação de diferença, de não igual, que nos eleva às nuvens e não nos deixa pisar na terra.

Esse pedestal que nos separa, nos distingue e nos faz tolos.

A linguagem “sofisticada”, de palavras estranhas, de outras gentes.

A pretensa distinção.

Less is more, just my two cents, better late than never…

As palavras entram pelas portas, saem pelas janelas, exibem-se nos corredores dos eventos, com tanta força e… invadem os auditórios tupiniquins. Chego a imaginar que Ariano Suassuna incorporaria ao catálogo da distinção: quem faz Endodontia em inglês e quem não faz.

Tip, taper, path finder, glide path…

É o novo querendo se impor, sem trazer novidade!

Quando se estabeleceu a “negociação” do canal, tradução literal de “negotiation“, foi a glória.

Confesso, não nego, que sinto falta do tempo (ontem) em que fazíamos exploração do canal, sondagem, coisas assim.

Fico imaginando a conversa entre dois cirurgiões cardiovasculares, diante da necessidade de um cateterismo no paciente; “tenho um glide path para agora, às dez“.

Oh my God!

It’s so sad!

Será que treinam antes para falar com a lingua entre os dentes?

Há, sim, elos perdidos na Endodontia.

E não são poucos!

Pensando em Endodontia

Por Ronaldo Souza

Há uma questão fundamental em Endodontia.

Todos sabemos que precisamos remover o máximo de microrganismos do sistema de canais para obter reparo.

O grande objetivo é o controle da infecção.

O que não sabemos é quanto precisamos remover.

Saber da necessidade de reduzir ao máximo a carga microbiana do sistema de canais e não saber qual é esse máximo passa a ser, portanto, a questão fundamental.

Onde há máximo, há mínimo e onde há máximo e mínimo, há uma faixa entre esses dois pontos.

Há uma faixa de concentração das substâncias químicas a serem utilizadas na qual podemos trabalhar.

Um exemplo?

Qual é a concentração ideal de hipoclorito de sódio que se deve usar no tratamento endodôntico?

Alguém sabe?

Há uma faixa que passa por 0,5% – 1,0% – 2,0% – 2,5% – 5,0%, até …

Quantos instrumentos usar para preparar o canal?

Quanto tempo para se preparar o canal?

Um minuto, uma hora, um dia, um mês…?

Diante de tantas dúvidas e incertezas, o que fazer?

O pragmatismo do momento atual pode nos levar a optar pelo mais simples.

Alguma dúvida quanto a escolher entre um instrumento e alguns?

“Alguns” tornam o procedimento mais demorado, “um” simplifica.

Alguma dúvida entre atender o paciente em duas consultas ou em uma?

Em duas, são gastos dois tempos anestésicos, dois momentos para isolamento de campo operatório, dois bons-dias, dois “até logo”, dois isso, dois aquilo…

Em uma consulta, tudo é mais simples, prático e rápido.

Por que então escolher o mais difícil, o mais demorado, se dá tudo no mesmo?

Um instrumento, uma hora, uma consulta.

Pronto, está resolvido!

Simples assim!

Opa, já estava me entusiasmando e quase esqueço de um detalhe.

Vamos lá em cima pegar algo que eu estava esquecendo.

Pronto, aqui está.

Todos sabemos que precisamos remover o máximo de microrganismos do sistema de canais para obter reparo.

O grande objetivo é o controle da infecção.

O que não sabemos é quanto precisamos remover”.

Esse é o problema!

Quando não sabemos quanto precisamos, temos como saber se o que fazemos é suficiente?

Aliás, temos como saber se o que fazemos é o certo?

Se não temos, reduzir tudo é a solução?

Reduzir a concentração das soluções irrigadoras?

Reduzir a quantidade de instrumentos para preparar o canal?

Reduzir o tempo para se preparar o canal?

Reduzir para quanto?

Um minuto, uma hora, um dia…?

Estamos confundindo simplicidade com simplismo.

No ensino, confundir simplicidade com simplismo pode significar estar ensinando errado.

A Endodontia é tão simples, não é?

Fragmentos

Por Ronaldo Souza

Não é incomum começar a escrever um texto sobre algo ou alguém e ele tomar outro rumo. Quando você percebe, ele já foi por outro caminho que não aquele que você imaginou inicialmente.

Parece que ganhou vida própria.

Já percebeu quantas vezes você está conversando com alguém e a conversa faz o mesmo e você se percebe falando de outro assunto?

Seria algo tipo “conversas ao acaso”. Aquelas conversas que parecem surgir sem mais nem menos e que, aparentemente, não possuem ligação com aquilo de que se estava falando.

São fragmentos de algo, pedaços soltos, que, de repente, como intrusos, invadem o seu texto ou a sua conversa.

Entretanto, bem observados, não lhe dão às vezes a impressão de que, na verdade, são mais importantes do que a conversa inicial e estas é que deveriam ser vistas naquele contexto?

Não seriam, a rigor, o contexto maior e o seu texto ou conversa “coisas” menores e que eles é que pertencem ao contexto maior e, portanto, deveriam ser vistos sob aquela perspectiva?

Nessa minha “ida” a Maceió, houve um momento em que me veio essa sensação.

Estava falando sobre um tema da Endodontia e enquanto o fechava para passar para outro, fiz uma indagação corriqueira.

A partir daí, a conversa foi se modificando e tomou um rumo bem diferente.

O resto?

Deixo com você.

E sua imaginação!

Talvez você tenha a sensação de que terminei indo por outro caminho, que nada tem a ver com Endodontia.

Ou será que tem?

Obs. Como as aulas estavam sendo gravadas, vi o vídeo. As partes pertinentes às aulas ficaram boas, mas aquelas quando aconteciam perguntas e respostas apresentaram alguns problemas, como você verá no vídeo. Nelas, só eu apareço. O problema foi posteriormente detectado e corrigido com a ajuda de um técnico em informática.

Maceió e eu

Por Ronaldo Souza

São 20 anos dando aula nos Cursos de Especialização em Endodontia de Maceió, o que, para mim, é uma grande alegria e honra.

Dessa vez, porém, para minha tristeza, ainda resquício da pandemia de coronavírus, as 16 horas de aula que sempre dou lá foram on-line.

Não pude ver aquele mar lindo e maravilhoso que, sem que eu soubesse (um dia, explico), tanto fez parte dos meus sonhos de adolescente.

Caminhando para o final das 8 horas de aula daquele dia, surgiu uma conversa totalmente inesperada (fomos até às 18:50 e somente alguns alunos ainda estavam presentes), mas que foi particularmente importante como estímulo.

As professoras Adriana Pacheco e Inês Inojosa, ambas mestras, doutoras e coordenadoras do curso, permitem-me conversar com seus alunos sobre as coisas da Endodontia, com a liberdade de quem não teme a luz do Sol.

Achei que cabia trazer a conversa para esse momento e devo dizer que, bastante agradecido por tudo isso, estou devidamente autorizado por elas a postar esse vídeo.  

Ah, sim!

Dessa vez, as 16 horas de aula se transformaram em vinte.

Muito legal!

Para que eles usam localizador foraminal?

Por Ronaldo Souza

  1. O canal radicular é composto por canal dentinário e canal cementário.
  2. O local onde se encontram o canal dentinário e o cementário ficou conhecido como limite CDC (Cemento-Dentina-Canal).
  3. O tecido que se encontra no canal dentinário é pulpar.
  4. O tecido contido no canal cementário é uma invaginação do ligamento periodontal, portanto, é tecido periodontal.
  5. O campo de ação do endodontista é o canal dentinário.
  6. O limite CDC representa o ponto de maior constrição do canal radicular.

Estes são postulados clássicos da Endodontia.

Dito isto, vamos observá-los mais de perto.

Para começo de conversa, diria que até o item 4 não existem dúvidas nem interpretações que possam ser consideradas corretas ou equivocadas.

De maneira simples, direta e objetiva, podemos dizer; é aquilo e aquilo mesmo.

Dali em diante, talvez não.

O limite CDC é algo consagrado na literatura endodôntica.

A partir do conhecimento sobre os tecidos que o compõem e da definição dos seus limites espaciais, tornou-se muito forte o consenso de que ali era o ponto onde deveriam ser estabelecidos os limites apicais de instrumentação e obturação dos canais.

O respeito ao coto pulpar também é algo consagrado na literatura endodôntica.

Traumatizá-lo sempre esteve fora de cogitação.

Daí o conceito de que aquela porção final do canal era sagrada.

Ainda que o coto pulpar não mais estivesse vivo e sim necrosado, sem ou com lesão periapical, aquele limite tinha que ser respeitado.

Mas que limite?

O limite CDC.

“O comprimento de trabalho ideal, acordado entre a unanimidade dos autores desde os estudos de Grove, situa-se no limite CDC. Aparelhos eletrônicos promovem a detecção exata da constricção apical”.
Spironelli, CA e Bramante, CM

Sabendo-se que o canal cementário, e consequentemente o tecido que o compõe, não representavam o campo de ação do endodontista (este era representado pelo canal dentinário), era na constrição apical (CDC) o limite apical no qual deveria trabalhar o endodontista.

Ali ele instrumentava o canal, ali ele o obturava.

Então o comprimento de trabalho do endodontista era… era qual mesmo?

Observando a tabela acima, onde podemos ver uma pequena amostra da diversidade de comprimentos de trabalho recomendados, parecem ficar claras as dificuldades existentes.

Onde finalmente era esse limite?

Onde finalmente o endodontista deveria “parar”?

Ela nos mostra que a depender do autor e da condição tecidual os comprimentos preconizados são os mais diversos possíveis.

Como recomendar tantas e tão diferentes medidas?

Como podiam os professores exigir precisão diante de tamanha imprecisão?

Afinal, é o conhecimento da anatomia e dos tecidos que constituem as porções finais do canal ou o “achar” de cada professor?

Em outras palavras, é o conhecimento ou a interpretação dele?

“Não há verdade definitiva. Apenas, interpretações sobre a realidade, condicionadas pelo ponto de vista de quem as propõe”.
Nietszche

Apesar de esse tema não ter sido percebido e analisado sob essa perspectiva, a tabela nos diz algumas coisas, mas a principal delas:

Ninguém sabe onde é!

Foi nessa onda que chegaram os localizadores apicais eletrônicos.

E o mundo foi salvo.

Os endodontistas podiam “ver” agora com facilidade a impedância dos tecidos que compunham os canais dentinário e cementário.

Ao “apito” do aparelho, sabíamos; cheguei lá.

Cheguei no CDC.

Aqui é o meu limite.

Aqui é onde devo parar.

Pronto, dali por diante, depois da descoberta dos localizadores apicais eletrônicos, finalmente o coto pulpar podia descansar em paz. Estava definitivamente resguardado.

Finalmente, a medida exata, a precisão com que tanto sonháramos.

Saímos mundo afora cantando aos quatro ventos a oitava maravilha do mundo.

Baixaram um decreto.

“A partir de agora, quem não usar localizador apical eletrônico está ultrapassado”.

Mas, o mundo não é perfeito.

O mundo da Ciência menos ainda.

Começaram a perceber que não era exatamente daquele jeito.

Ainda existiam problemas, dificuldades a serem contornadas e por razões diversas percebeu-se que a precisão ainda não tinha sido alcançada.

Se já tínhamos avançado para a impedância, avançávamos agora para a frequência.

Agora sim!

Novos aparelhos, novos conhecimentos, novos…

Sim, mas… e a exatidão?

“A nova geração dos localizadores eletrônicos foraminais nos dá uma segurança de 100% na localização do limite CDC”.

Resta ainda alguma dúvida?

Não. Segundo muitos profissionais, questão resolvida.

Então vamos adiante.

Ser ou não ser. A anatomia é a questão

“A constrição apical parece ser mais um mito do que uma realidade”.
Walton, R. Princípios e Prática em Endodontia – 1997

“A constrição apical geralmente não existe”.
Wu, MK et al. O Surg O Med O Pathol Jan 2000

“A localização clínica do limite CDC é impossível”.
Ponce, EH e Vilar Fernández, JÁ. J Endod, 2003

“Os nossos resultados indicam que o limite CDC e a constrição apical são dois pontos distintos e que o diâmetro do canal no CDC é sempre maior do que o da constrição apical”.
Hassanien, EE et al. J Endod Abr 2008

Observe duas coisas.

Não falo desse ou daquele profissional, desse ou daquele autor.

Muitos são citados neste e em outros textos que escrevo. Com alguns deles concordo, de outros discordo.

Muitas vezes, em outros temas discordo daqueles com quem concordei, ou, ao contrário.

A discussão é feita em cima de ideias e concepções, não importa de quem sejam.

A outra questão é a seguinte.

O localizador é mais um recurso importante para o tratamento endodôntico e muito bem-vindo. A questão, mais uma vez, é a conotação que deram e dão a ele.

Querem por precisão de 100% onde não existe.

Há muito tempo os estudos de anatomia já mostram as peculiaridades dos canais, particularmente no terço apical.

“A constrição do canal só pode ser observada na secção adequada de um corte histológico e este é o único método que permite a determinação do comprimento de trabalho”.
Langeland, K. 1995

O diálogo

Se você ainda não leu Os limites na Endodontia, convido-o a fazer isso para nos entendermos melhor. Trago de lá a imagem abaixo.

Pelo que observamos naquele texto e na imagem acima, como é possível determinar com precisão o limite CDC se em um mesmo canal há uma grande variabilidade na extensão do cemento?

As letras e setas verdes e vermelhas na imagem acima do trabalho de Ponce e Vilar Fernandez foram colocadas por mim, para deixar bem claros os pontos onde se encontram cemento-dentina-canal (CDC). Como se pode observar, não existe um limite CDC, mas sim, alguns.

Como querer precisão de 100% nessas condições?

Voltemos à figura 2 e à frase que diz que “para que o localizador tenha a eficiência desejada, é necessário que o instrumento atinja o forame…”.

Por que ele tem que atingir o forame?

Por uma razão bem simples.

Porque, graças à complexidade da anatomia naquele segmento do canal, o localizador não é capaz de fazer a leitura perfeita, aquela que todos desejam e dizem existir.

Então ele precisa ir até o forame apical e de lá perguntar ao endodontista.

– Cheguei. Já estou aqui no forame apical e pelo caminho fui vendo que existem alguns pontos em que a dentina se encontra com o cemento. Qual deles escolho para você registrar aí como seu limite CDC? Ou você prefere que eu recue de acordo com o protocolo que você segue?

O que fazem nessa hora?

Daquela medida registrada pelo localizador no forame, recua-se o necessário de acordo com o limite que o profissional usa, geralmente a depender da escola que ele segue.

Numa grande quantidade de vezes, esse recuo é de 1 mm.

O CT será então 1 mm aquém do registro do localizador.

Confere?

Ou você conhece alguém que usa 0,5 aquém nos pacientes jovens e 0,7 nos pacientes idosos, como detalhou Kuttler em 1955?

Sabendo-se que essas medidas representam médias e, portanto, existem inúmeras outras, como 0,2 ou 0,3 ou ainda 0,8 e 0,9, algum localizador registra assim o limite CDC?

Posso lhe fazer uma pergunta?

Por que inicialmente foram chamados de localizadores apicais eletrônicos, como os tratei até aqui, e agora são chamados de localizadores foraminais eletrônicos?

A precisão desnecessária

Voltemos novamente à figura 2, à primeira parte da frase superior.

“Por décadas, trabalhamos além do forame apical sem saber”.

Uma evidente crítica à possibilidade de a radiografia eventualmente nos dar a falsa impressão de estarmos dentro do canal.

Ora, se “para que o localizador tenha a eficiência desejada, é necessário que o instrumento atinja o forame…”, ele já está fora do canal.

Fora do canal, ele já está nos tecidos periapicais!

Se alguém imagina o contrário, desconhece anatomia apical.

Observe as figuras acima. Na imagem à esquerda, a lima está “dentro” do forame, porém, vista numa visão mais próxima na imagem à direita, ela aparece dentro do forame sob a perspectiva da parede que está “atrás” dela (como se fosse a face palatina), mas está 1 mm fora sob a perspectiva da parede anterior (como se fosse a face vestibular).

E o que dizer das imagens na figura abaixo, do trabalho de Blaskovic-Subat e colaboradores?

A radiografia nos daria “uma falsa impressão do instrumento dentro do canal, pela angulação e formação do halo apical”.

Verdade.

Para os mais jovens, o halo de que se fala corresponde à quantidade de tecido mineralizado que está “por trás” da lima na figura acima, cuja extensão é mostrada pela seta dupla preta pontilhada, colocada por mim (letra C).

Pela radiopacidade desse tecido “em volta e acima” do instrumento que apareceria na imagem da radiografia periapical, imaginaríamos que o instrumento está dentro do canal, quando, na verdade, está fora.

E o que nos diria o localizador foraminal? Pela parede “palatina” ele ainda está ligeiramente aquém da abertura foraminal, portanto, “dentro do forame”, mas pela parede “vestibular” ele está além do forame apical.

Aí o localizador daria um alerta.

– Doutor, cuidado! Pela parede “palatina” o instrumento ainda está ligeiramente aquém do forame e pelas proximais, mesial e distal, ligeiramente fora. Mas pela parede “vestibular” ele está completamente além do forame apical, portanto, nos tecidos periapicais.

É assim?

Estou enganado ou posso dizer que não é?

Sendo assim, a depender do limite apical utilizado (quanto mais próximo do ápice radicular, maiores as chances) mesmo com o localizador e sua “precisão tão precisa”, não há ainda alguma possibilidade de trabalhar “… além do forame apical sem saber”?

E que história é essa de que só estamos em tecidos periapicais quando estamos além do forame apical?

Qual é o tecido que invagina e preenche o canal cementário?

O ligamento periodontal (“bolas” amarelas). Observe como é ele (“bola” azul) que penetra no canal cementário.

Ali, ele é tecido periodontal apical. Sendo assim, o instrumento não precisa estar além do forame para estar em tecido periapical.

Digamos, porém, que existisse um único limite CDC e este fosse detectado pelo localizador com precisão.

Ótimo.

Para que?

Duas questões devem ser consideradas.

A ampla, total e irrestrita “ampliação foraminal” que fazem nos tratamentos endodônticos e a enorme quantidade de material obturador que jogam nos tecidos periapicais.

Como pode alguém que preconiza, ensina e estimula isso falar de cuidados e preocupações com os tecidos periapicais?

Como explicar o Glória nas Alturas aos localizadores foraminais e as cabecinhas balançando no amém, amém, amém pelo que chamam de “surplus”?

Aceitemos o limite CDC como a fronteira natural entre cemento e dentina.

Seria ali a fronteira entre o que se considera o campo de ação do endodontista, canal dentinário, e os tecidos periapicais.

Os deuses da endodontia moderna, que falam pelos instrumentos e aparelhos e não pela Endodontia, precisam entender que era esse limite que ditava os procedimentos do tratamento endodôntico.

Se certos ou errados é outra questão, que não cabe discutir aqui agora.

Não se trata de concordar ou discordar da concepção, essa é outra questão, mas a proposta do localizador era, por ser preciso na detecção do limite CDC, não traumatizar os tecidos periapicais, pois estes não estariam inseridos no contexto do preparo e obturação do canal.

Lembre que, concordando ou não, o canal cementário não era incluído no preparo do canal nem na obturação. Muito menos ainda, os tecidos periapicais.

A louvada precisão de 100% do localizador significa então que você vai usar uma ferramenta para detectar com exatidão o limite CDC, para logo em seguida destruí-lo com a ampliação foraminal e jogar uma enorme quantidade de material obturador nos tecidos periapicais.

Não é um espetáculo?

Por que, então, todo esse encantamento e interesse em disseminar uma ferramenta que “detecta” o limite CDC com precisão de 100%, se na “excelência em endodontia”, da qual se fala todo dia, invadem e destroem a fronteira natural entre cemento-dentina-canal-tecidos periapicais em todos os tratamentos endodônticos?

Por que “vender” a necessidade da precisão do localizador, se destroem o limite que ele teria registrado e, por ali, inundam os tecidos periapicais com material obturador, uma tremenda e injustificável agressão a aqueles tecidos?

Não percebem a contradição?

…com frequência, se processa uma separação definitiva entre o falado e o vivido, e a ciência se torna um jogo de conceitos… Malabarismo verbal, virtuosismo conceitual.
Rubem Alves – Conversas com quem gosta de ensinar, 2002

Endodontia e Rita Lee

Por Ronaldo Souza

O 13º Congresso Internacional de Endodontia da SBEndo foi, sem dúvidas, um belo evento.

Desde já, merecem destaque o acolhimento e o tratamento dado por toda a comissão organizadora, tendo à frente o professor Flares Baratto Filho, sempre muito atencioso com todos nós.

Organização impecável, dentro das orientações das autoridades sanitárias brasileiras e mundiais da Saúde: salas arejadas e grandes, de maneira a permitir o devido afastamento entre as cadeiras, a exigência de uso de máscaras, enfim, todos os cuidados necessários para que pudesse ocorrer ali o congresso que todos imaginávamos e foi.

Tudo isso num lugar muito bonito; Centro de Eventos Positivo, no Parque Barigui.

Nesse ambiente, os professores, reconhecidos pelo seu valor profissional e compromisso com o ensino da Endodontia, puderam apresentar com tranquilidade e serenidade os diversos temas propostos.

Foi estimulante e promissor ver a Endodontia sendo mostrada e discutida no nível elevado em que foi. Parece ter ficado no ar, quem sabe, aquele sabor de quero mais e as Arenas, em particular, pelo seu próprio objetivo, parecem representar um bom exemplo!

Encontros e reencontros representaram um capítulo à parte, possivelmente com intensidade nunca vista anteriormente.

Uma certa dose de ansiedade e excitação parecia estar pairando nesse cenário.

Natural, diante das circunstâncias!

Mas como foi bom!

E é neste contexto que me permito mais facilmente dizer que o 13º Congresso Internacional de Endodontia da SBEndo foi, na verdade, grandioso!

Grandioso por nos proporcionar a “volta à vida”.

Não, não vou chamar de “novo” normal.

Quando vivida, e basta isso, viver, ela, a vida, fluirá normalmente.

E quando a vida flui, não precisamos conceituá-la.

Nem velha, nem nova; simplesmente, vida.

E ela continua bela.

E assim será sempre.

Foi ali o momento dos “novos” apertos de mãos e abraços, algo tão importante nas nossas vidas, ainda que seja possível que alguns nunca o tenham percebido na sua real dimensão.

O que poderia ser mais importante do que um abraço?

Nada!

Nem o beijo.

O beijo pode ter outras conotações, outras razões, outros envolvimentos, o que for.

O abraço, não!

Ele não carrega em si nenhum tipo de preconceito.

Aceito em todas as línguas, é aceito entre todos os sexos, cores, raças, religiões…

Universal.

Definidor de afeto como nenhum outro gesto, dificilmente ele será fruto ou carregará consigo a falsidade de sentimentos!

Único!

Sim, mas, e daí?

O que tem a ver Endodontia com Rita Lee?

Muito!

Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução

Já estava tudo bem planejado.

Antes mesmo de minha viagem a Curitiba para participar do 13º Congresso Internacional de Endodontia da SBEndo, minha companheira e nossa filha mais velha já estavam em São Paulo com a nossa filha mais nova, que hoje estuda naquela cidade.

Não voltei, portanto, para Salvador.

Logo após a minha atividade durante toda a manhã de sábado do congresso, cheguei em São Paulo à tarde.

Ingressos comprados previamente pela Internet, fomos no domingo ver a exposição de Rita Lee no MIS, Museu da Imagem e do Som.

Ao entrar, a primeica coisa com que me deparei foi a frase de Caetano Veloso aí em cima:

Ainda não havia para mim Rita Lee, a tua mais completa tradução!”

Somente muitos anos depois de Caetano (poetas e artistas estão sempre à frente), venho descobrindo São Paulo.

Graças à nossa filha, que, como disse, hoje estuda naquela cidade.

E Rita Lee veio para completar esse momento e me fazer ver muita coisa.

Não sei bem porque (no fundo, acho que sei), emocionei-me algumas vezes na exposição.

Um poeta baiano chamado Caetano diz, com seu absurdo talento, que Rita Lee é a mais completa tradução de São Paulo.

Eu, que somente agora me flagro descobrindo São Paulo (não sou poeta), talvez esteja entendendo melhor aquela cidade pelas lentes de Rita Lee.

Cidades como Nova Iorque, Londres, São Paulo… carregam dentro de si encontros e desencontros, harmonia e desarmonia, acolhimento e preconceito, o feio e o belo (“é que Narciso acha feio o que não é espelho”, como diz o doce baiano), tudo isso numa intensidade e violência inimagináveis e, por isso, muitas vezes incompreensíveis.

Tornaram-se uma espécie de laboratório do cosmopolitismo!

Ressalvo que não conheço nem uma, Nova Iorque, nem outra, Londres. Falei como vejo uma e outra, o que é diferente.

Mulheres como Rita Lee viveram e vivem essa muitas vezes dura realidade.

Mulheres como Rita Lee, tão intensas que são, também provocam sentimentos e percepções antagônicos.

Já digo há algum tempo que são esses “loucos” poetas e artistas que, como a utopia, fazem o mundo andar.

Deixemos de lado os eventuais arroubos da juventude: Rita Lee é uma mulher corajosa, desbravadora, uma abridora de caminhos, por mais que a expressão possa soar estranha a alguns.

Uma mulher admirável!

Por que me emocionei em alguns momentos de minha visita “às coisas” dela?

Porque vi mais de perto a luta, a perseverança, a audácia de enfrentar os dogmas de uma sociedade presa a conceitos que dificultam o seu próprio desenvolvimento.

E talvez aí tenha surgido para mim a relação que julgo existir entre ela e a Endodontia

Como um Shakespeare, arrisco-me a dizer que parece haver mais mistérios entre Rita Lee e a Endodontia do que talvez possa nos fazer imaginar a nossa vã filosofia.

Acabei de ver uma Endodontia surgindo, tal qual Rita Lee, vibrante, arrebatadora, perseverante, audaciosa, enfrentando dogmas e paradigmas que dificultam o seu real desenvolvimento.

Uma Endodontia desafiadora, que parafraseia Einstein quando ele diz que “a imaginação é mais importante do que o conhecimento“.

Uma Endodontia que pretende nos afastar da linearidade do pensamento e ensinar a dar asas à nossa imaginação.

Como Rita Lee, uma Endodontia que pretende derrubar prateleiras e abrir caminhos.

Mas enquanto estou viva e cheia de graça
Talvez ainda faça um monte de gente feliz

Esta é a última frase que se vê na saída da exposição dessa mulher notável.

Como ela, a Endodontia se mostrou viva e cheia de graça no congresso da SBEndo.

E certamente ainda fará um monte de gente feliz. 

Por que tantos jovens concluem estudos sem desenvolver verdadeiro espírito crítico

Por Francisco Esteban Bara*

A história conta que Sócrates era conhecido entre seus concidadãos como “a mosca de Atenas”. Diz-se também que ficou encantado com o apelido porque o descrevia muito bem: sua missão era provocar as pessoas por meio de perguntas e explicações que incomodavam e, sobretudo, faziam despertar.

Custou muito caro ao grande filósofo grego fazer pensarem certas pessoas que, na verdade, preferiam continuar dormindo. E decidiram que essa “mosca” que não parava quieta deveria tomar cicuta.

No entanto, seu espírito crítico resultou em uma das maiores revoluções da história.

Esse convite a pensar com critério — nos perguntar por que é que as coisas são assim e não de outro jeito, tentar descobrir verdades e desmantelar falsidades, e não deixar de dizer, como ele mesmo fazia, “só sei que nada sei” — não tem igual.

Basicamente porque o espírito crítico nos liberta da ignorância, ou seja, de qualquer pessoa ou coisa que queira pensar por nós; e já sabemos que estamos rodeados de pessoas e dispositivos tecnológicos dispostos a isso.

Certamente não há como conversar com pessoas imbuídas desse espírito, eles nos ensinam tudo o que foi dito e nos mostram que há pessoas com quem é muito agradável conversar.

Nosso pensamento atual e majoritário sobre a educação, essa voz indeterminada e envolvente que marca nosso caminho, aposta no espírito crítico.

Espírito de ‘bijuteria’

As novas gerações, dizem, devem melhorar o mundo, e precisamos de muitos Sócrates em escritórios, hospitais, escolas, partidos políticos, ruas e praças.

No entanto, a realidade mostra que, com esse discurso, não só se forma um espírito crítico, mas também, e cada vez mais, versões malsucedidas dele.

Não são poucos os jovens que, depois de passarem pelas diferentes etapas educacionais, incluindo a universidade, se apresentam na sociedade com um espírito crítico de “bijuteria”, bem distante do de Sócrates.

Ou repensamos a educação e suas políticas, e a comunidade passa a valorizar mais os espíritos críticos do que jogadores de futebol e celebridades, ou o corpo docente e as famílias que buscam cultivá-los no dia a dia verão sua alegria ir pelo ralo.

A seguir, vamos analisar três dessas “imitações” e, quem sabe, algumas soluções.

Algumas imitações

1. O espírito crítico é o conjunto de opiniões que alguém defende. O famoso lema que diz que o aluno é o protagonista da educação pode ser a principal causa desta curiosa imitação. Isso é o que queremos que aconteça, claro, mas deveríamos reconhecer que não pode ser logo de cara, pelo menos não em relação ao espírito crítico.

E não porque não se queira, mas porque o aluno não está em condições de assumir tal papel. Quem pensa que o evento educativo consiste, precisamente, em conduzir o aluno à conquista do seu protagonismo, isto é, da sua autonomia intelectual e moral, se surpreende ao ouvir que tal coisa “já vem da fábrica” ​​e que o que você precisa fazer é fortalecê-la ao máximo.

Assim sendo, se educa o “opinador”, indivíduo convicto de que sua opinião é tão válida quanto a de qualquer pessoa, também na qualidade de quem mais sabe; e encorajado a se manifestar em qualquer conversa dando palestras.

Não há espírito crítico quando passamos por cima do princípio que diz que, para opinar, devemos primeiro conhecer, quando deixamos de valorizar que a autonomia intelectual e moral consiste em percorrer um longo e duro trecho de verdades.

2. O espírito crítico é o domínio e o conhecimento do que está acontecendo hoje e agora. E é isso que estamos fazendo há anos: educar em respostas úteis, rentáveis e eficazes.

Porém, se há algo que mantém vivo o espírito crítico, são as grandes questões que afetam a todos e nunca saem de moda, e deveríamos pensar por que há tantos jovens que terminam a jornada educacional quase sem ter nada sério que perguntar sobre si mesmos e o mundo em que habitam.

Essas grandes questões costumam ser encontradas nos clássicos do pensamento, sim, naquelas obras que, como dizia Ítalo Calvino, tendem a relegar as atualidades à categoria de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não podem prescindir dele.

Por isso um clássico, seja há séculos ou dez anos, um livro ou um filme, é um clássico porque nunca acaba de dizer o que está dizendo, porque sempre nos desafia.

Por mais que seja difícil de acreditar, um espírito crítico sem clássicos tropeça, se é que realmente anda, e nos surpreende que os universitários, estudem a carreira que for, não tenham primeiro um curso de artes liberais, grandes ideias, humanidades, cultura geral ou como você quiser chamar.

3. O espírito crítico se manifesta de várias maneiras, de acordo com a natureza de cada um. Talvez os meios de comunicação e as redes sociais sejam a melhor vitrine do que está sendo dito aqui. No entanto, algo nos diz que a coisa vai na direção oposta, que esse espírito se conquista, que é você que deve se adaptar a ele.

Isso é demonstrado por aquelas pessoas que aprenderam a filosofar com delicadeza, humildade, prudência e boas palavras, que fogem do fervor, da grosseria, do rancor e vingança.

O espírito crítico também tem sua estética, algo que, devo dizer, não costuma constar na lista de competências de nossos currículos escolares e universitários.

Essa estética é aprendida muito bem pelos exemplos. Seria bom selecionar alguns deles e analisá-los semanalmente com nossos alunos.

Por fim, não disporemos de jovens com espírito crítico apenas com a intenção, muito menos ao reforçar imitações que não fazem mais nada do que obscurecer e desperdiçar o convite de Sócrates e de tantos outros que seguiram o seu caminho.

* Francisco Esteban Bara é professor associado do Departamento de Teoria e História da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Barcelona, na Espanha