A difusão do erro

Há pouco tempo uma aluna de uma das minhas turmas de especialização, ao me mostrar a radiografia final do tratamento endodôntico que acabara de fazer, chamou a minha atenção para a pequena passagem de cimento obturador para além do comprimento de trabalho (não chegou a ocorrer extravasamento para a lesão periapical). Perguntei-lhe então se tinha colocado o cimento obturador na ponta do cone, e aí veio a minha surpresa. Ela não só disse que sim como intencionou extravasa-lo, e aí arrematou; tinha adicionado iodofórmio ao cimento. Caí da cadeira.

Não preconizo o extravasamento intencional de qualquer material para os tecidos periapicais, muito menos de cimento obturador, e muito menos ainda com iodofórmio. O extravasamento intencional de cimento obturador é absolutamente desnecessário. Na verdade, um grande equívoco. Por isso, em algumas situações, quando há risco iminente de que isso venha a acontecer, recomendo não colocar o cimento obturador na ponta do cone.

Vi ali o quanto é forte e o quanto está impregnada nos endodontistas a idéia de que é necessário colocar alguma coisa em algum lugar, quase sempre uma substância medicamentosa. Mesmo tendo pouco tempo de formada, o que me faz imagina-la com poucos vícios, e tendo como coordenador científico do seu curso de especialização um professor que orienta não adicionar nada ao cimento obturador e muito menos extravasa-lo, ela fez. Por que?

O tratamento endodôntico deveria ser uma coisa bem mais simples. O preparo do canal tem como objetivo remover a causa da patologia, a obturação visa selar o canal. Infelizmente, não tem sido assim.

É comum atribuir-se o sucesso em Endodontia às substâncias químicas. A ausência de dor após o atendimento de urgência nos casos de polpa viva (pulpites) sempre teve como explicação a utilização de corticóides e nos casos de polpa necrosada (abscessos agudos) o uso do PMCC. Chegou-se ao absurdo de se preconizar extravasamento de cimentos “à base” de hidróxido de cálcio porque favoreceria o processo de reparo. Que loucura.

O mais recente absurdo é querer mostrar que a excelência em Endodontia só se consegue com extravasamento de material obturador. Isso, na verdade, representa um importante fator dificultador do processo de reparo. Na hora em que mostrarmos aos nossos alunos que não é nada disso, eles perceberão que o tratamento endodôntico é mais simples do que os fazem imaginar.

Só executar tratamentos endodônticos todos os dias não é suficiente. Entender o que é Endodontia é fundamental. Ciência e Arte. Isso exige estudo.

"Puff"

Uma vez estava assistindo a um curso de Endodontia e o professor disse que “a dor pós-operatória severa (que alguns gostam de chamar flare-up) nos casos de obturações tridimensionais com guta percha plastificada não é induzida pelo cimento obturador nem pelos botões de cimento e/ou guta percha (também conhecido por “puff”), mas sim por microorganismos”.

O que você acha? Vamos analisar essa questão.

O preparo do canal é um ato cirúrgico e como tal gera resposta inflamatória, associada ou não à dor em graus variáveis. Assim, a depender de como o preparo é conduzido, poderemos ter desde ausência de dor até dores intensas. É claro que isso também depende do paciente, das suas reações fisiológicas e psicossomáticas. Porém, é fundamental entender que sempre haverá reação inflamatória. Não existe ato cirúrgico atraumático, portanto, não existe preparo de canal atraumático.

O que explica a dor pós-operatória no tratamento endodôntico é o próprio ato mecânico da instrumentação (agressão física), o uso de substâncias químicas (agressão química), através das soluções irrigadoras e medicação intracanal, e a eventual “chegada” de microorganismos e tecido infectado (agressão microbiana) aos tecidos periradiculares.

No tratamento de canal com polpa viva tem microorganismos? Você sabe que não. Se tiver dor pós-operatória depois que o canal foi instrumentado, a dor será de origem mecânica e/ou química, isto é, a sua origem está no preparo do canal. É sempre bom lembrar que a presença da dor e/ou a sua intensidade poderão ter algum componente psicossomático. Nos casos de dor após tratamento com polpa infectada, ela será de origem mecânica, química ou microbiana, ou as três causas juntas.

Na obturação do canal com polpa viva tem microorganismos? Você sabe que não. Se tiver dor pós-operatória com a passagem de cimento obturador ou pela formação dos botões de cimento e/ou guta percha (“puff”), qual a origem da dor? Justamente essa passagem de material, é lógico. Aí teremos agressão física, pela presença do material obturador nos tecidos periapicais, e química, pela sua ação química.

Na obturação do canal após tratamento endodôntico com polpa infectada, a dor pós-operatória poderá ser de origem físico/química (presença física do material obturador e sua ação química), e microbiana, pela participação dos microorganismos. Essa participação se daria, claro, somente nos casos mal tratados, onde a permanência significante de microorganismos poderia levar a essa condição.

Perceba que, como todos acreditam que fazem um bom preparo do canal, ou seja, não há mais infecção, como poderia o professor dizer que nos casos de dor pós-operatória severa em que houve extravasamento de material obturador e formação de botões de cimento e /ou guta percha (“puff”) a dor não é induzida pelo cimento obturador nem pelos botões, mas sim pelos microorganismos? É lógico que não. Se não há mais infecção, a dor não pode ser explicada pela presença deles.

Não se pode pensar em contra-argumentar dizendo que não se consegue eliminar todos os microorganismos. Se a presença destes é capaz de promover dor pós-operatória severa, não houve controle de infecção, portanto não há como pensar em obturar o canal. Como o professor, provavelmente, não obtura o canal na presença de infecção, a dor pós-operatória severa pode sim ser induzida pelo cimento obturador e pelos botões de cimento e /ou guta percha (“puff”) nos casos de obturações tridimensionais com guta percha plastificada.

O professor estava errado.

Um grande equívoco

“A Odontologia é uma profissão que exige o conhecimento científico de um médico, a destreza manual de um cirurgião, o senso estético de um artista e a paciência de um monge”. Sem dúvida, esta frase reflete um momento muito feliz atribuido ao Papa Pio XII e diz com grande clareza o que é a Odontologia. Vamos vê-la mais de perto?

Observe por onde ela começa; “…conhecimento científico de um médico…”. Isso é verdade? Tenho sérias dúvidas. Não me parece que esta tenha sido ao longo dos anos uma característica dos dentistas. É evidente que muitos têm esse conhecimento, mas não me parece ser o forte da classe. Se, para atenuar a nossa condição, você me disser que os médicos atualmente também deixam muito a desejar vou concordar inteiramente. Atenua, não justifica.

“…a destreza manual de um cirurgião…”. Perfeito. Há cirurgiões-dentistas de grande habilidade manual.

“…o senso estético de um artista…”. Também aqui não há como negar, há quase que obras de arte na Odontologia em termos de estética, ainda que em boa parte devidas à qualidade dos materiais.

“…a paciência de um monge…”. Nesse sentido, alguns profissionais se não atingem a perfeição chegam muito perto dela. Provavelmente, poucos conseguem nos níveis de um bom endodontista.

Podemos sintetizar e dizer que a Odontologia seria Arte e Ciência, num sentido maior, amplo. Projetemos isso para a Endodontia.

O avanço técnico/científico da Endodontia salta aos olhos. Acredito, porém, que posso dizer sem medo de errar que na história da Endodontia a arte sempre esteve acima da ciência. Em vários momentos isso se mostrou com uma clareza muito grande. Parece estar mais forte do que nunca.

A excelência em Dentística, por exemplo, tem sido demonstrada através de restaurações esteticamente perfeitas, ou quase isso. Aproveitando-se muito bem desses resultados, alguns profissionais, com espaços importantes na mídia, têm dado um show de marketing pessoal. Para alguns não importa se muitas vezes às custas de patologias pulpares e periapicais, que poderão se manifestar só mais tardiamente. Também muitas vezes os pacientes sequer percebem.

Tenho visto com freqüência preocupante em cursos a “comprovação” da excelência em Endodontia através de belas obturações. A obturação é a estética da Endodontia. E o que é obturação? Algo meramente técnico. Pode-se faze-la facilmente, e aí sim, concordo, mais facilmente ainda nos dias de hoje pelas técnicas disponíveis.

Ouço todos os dias os nossos alunos falarem de orkuts, msn, blogs, sites, etc, mecanismos contemporâneos de comunicação importantes. O grande problema é que não há nenhum controle de qualidade, e aqui controle de qualidade significa compromisso com a formação de milhares de estudantes e jovens profissionais de Odontologia que têm acesso a essas informações diariamente. Observam-se radiografias periapicais com belas obturações e textos e comentários em que a grande preocupação é a “confirmação” de que delas depende o sucesso. Pouco ou nada se fala do tratamento endodôntico.

Vá na sessão Casos Clínicos e veja os casos de 31 a 34 (outros serão colocados). Leia os textos e perceba que não é uma proposta de obturação. O que quero mostrar é que O REPARO NÃO DEPENDE DA OBTURAÇÃO. Sendo assim, vá lá outra vez e veja os casos 35 e 36 e volte a este texto. O que você acha? Os casos 35 e 36 têm exatamente o mesmo período de acompanhamento, cinco anos. Perceba que no 35, onde houve extravasamento de material obturador, a lesão periapical praticamente desapareceu, mas ainda não houve reparo, e por uma razão bem simples: o extravasamento do material obturador não permitiu, e não permitirá por ainda alguns longos anos. Todos os referenciais anatômicos (espaço do ligamento periodontal, lâmina dura) estão reparados nos dois dentes envolvidos pela lesão, menos no local onde houve o extravasamento.  No 36, o reparo não só se deu plenamente como houve selamento biológico. Por que? Pela mesma razão simples: não há nada agredindo o organismo, nada que impeça o processo de reparo. O organismo agradece e sela biologicamente o canal. Qual alternativa você quer para o seu paciente? A escolha é sua.

Os nossos egos fugiram do controle. Hoje se faz marketing dentro de sala de aula. Notoriedade acima de tudo. Precisamos voltar urgentemente a assumir compromisso com a profissão. Só assim serão respeitados os milhares de estudantes e jovens profissionais da Odontologia.

Vamos fazer menos festa e mais Endodontia.

Introdução à Endodontia

Esse é o título do primeiro capítulo do nosso livro – Endodontia Clínica. Ocorreu-me, como também à época do livro, começar a nossa conversa sabendo melhor o que é a Endodontia. Pretensa e tola intenção; todos sabemos o que é Endodontia. Então, permitam-me corrigir: começar a nossa conversa tentando ver de uma maneira diferente, e bem simples, o que é a Endodontia. Sendo assim, talvez eu devesse chamar essa primeira conversa de Reintrodução à Endodontia.

Basicamente, o tratamento endodôntico pode ser classificado de duas maneiras: (1) tratamento conservador e (2) tratamento radical. O tratamento pulpar conservador, como o nome diz, visa a conservação da polpa, isto é, a polpa é tratada e não removida. Por sua vez, o tratamento radical não trata a polpa, pelo contrário, remove-a e trata o canal. Apesar de nem sempre devidamente consideradas, essas duas condições, tratar a polpa e tratar o canal, são extremamente diferentes.

Se observarmos bem, veremos que, ainda hoje, muitas vezes o ensino da Endodontia é direcionado para a execução técnica dos seus passos, ou seja, os aspectos mecânicos. Apesar disso, se analisarmos o resultado dos tratamentos endodônticos, expressado através das imagens radiográficas das obturações de canal, veremos, sem dificuldade, que há uma grande distância entre o que se prega como ideal e o que se faz. Uma das grandes razões para isso, se não a maior, é, por incrível que possa parecer, a incompreensão do que é o tratamento endodôntico.

O momento atual é propício à concepção de que o tratamento endodôntico se resume a uma boa técnica de instrumentação e de obturação e que isso só é possível com técnicas avançadas, modernas. Tem sido comum ouvir-se esse tipo de colocação.

Todos sabemos que precisamos fazer um bom preparo e uma boa obturação. Todos sabemos que algumas técnicas podem proporcionar isso mais facilmente que outras. É necessário ser um bom clínico (no sentido de clinicar, atuar em consultório). Para muitos significa “ter mão”. Sem dúvida, tem que ser bom clínico, mas não é só isso. O tratamento endodôntico não se resume a tão pouco e ao longo do tempo, à medida que formos conversando, iremos trocando idéias sobre essa questão.

É fundamental entendermos uma coisa: seja qual for a razão que justifique o tratamento endodôntico, a polpa precisa ser inteiramente removida. O tecido responsável pela formação, nutrição, sensibilidade e defesa do dente não pode permanecer no canal se não for em suas condições de saúde. Se não for assim, ele tem que ser removido. Torna-se necessária não só a sua remoção como também o tratamento do canal, o que será possível pela realização do preparo do canal, através de todos os seus passos.

Como qualquer ato cirúrgico, o preparo do canal apresenta um certo grau de dificuldade. Se lembrarmos que a anatomia dos canais desempenha papel primordial nas dificuldades inerentes ao preparo, onde se destacam as curvaturas, entenderemos mais facilmente essa questão. Além disso, apesar de assim parecer na radiografia, o dente não apresenta somente o canal principal, mas, sim, um sistema de canais, constituido do canal principal em si, túbulos dentinários e ramificações, (canais laterais, acessórios, recorrentes, delta apicais). Todo esse sistema contém no seu interior matéria orgânica que, em determinadas situações, pode se apresentar necrosada e contaminada. Isso significa dizer que o tratamento endodôntico envolve, necessariamente, o tratamento de todo o conteúdo desse sistema de canais.

Percebam então que há uma condição fundamental para se fazer um bom preparo; a remoção do tecido pulpar. Se a polpa precisa ser inteiramente removida, deve-se imaginar a importância que têm as substâncias químicas auxiliares do preparo do canal, soluções irrigadoras e medicação intracanal.

Sendo assim, as substâncias auxiliares do preparo do canal devem apresentar alguns requisitos que tornem mais fácil o tratamento endodôntico. Não parece difícil imaginar que, sendo condição básica para um bom tratamento a remoção da polpa, viva ou necrosada, qualquer característica nesse sentido que as substâncias possam apresentar deverá ser bemvinda. Dadas as reconhecidas limitações da ação mecânica dos instrumentos endodônticos, substâncias que apresentem, por exemplo, ação solvente, devem estar entre as escolhidas.

Como foi dito, é a polpa que forma, nutre, confere sensibilidade e defesa ao dente. Uma vez que ela entra em processo de mortificação e necrose e/ou é removida, todo esse metabolismo desaparece, fazendo, portanto, do sistema de canais um espaço vazio e indefeso, que pode ser facilmente invadido por microorganismos. Para evitar ou, pelo menos, dificultar essa ocorrência, o canal deve ser preparado e preenchido com um material que seja o mais biocompatível possível. Esse é o papel da obturaç&at

O campo de ação do endodontista

As estruturas que compõem o dente são esmalte, dentina e polpa. Uma cárie incipiente contida no esmalte requer uma intervenção restrita a ele. Por sua vez, a cárie que já atingiu a dentina exige uma intervenção que envolve esmalte e dentina, não mais do que isso. Contudo, muitas vezes o avanço da cárie promove alterações vasculares e teciduais que tornam difícil a volta da polpa à normalidade somente com a remoção do tecido cariado através do preparo cavitário e restauração.

A polpa é um tecido conjuntivo como qualquer outro do organismo, portanto, apresenta boa capacidade de reparação. São conhecidas, entretanto, as suas peculiaridades, como o fato de estar sediada em um canal (dentinário) cujas paredes são inextensíveis. Esse aspecto limita a sua capacidade de defesa e reparação. Uma outra característica é a sua constituição e comportamento, de acordo com a sua idade e localização em cada segmento do canal.

A polpa jovem possui uma grande quantidade de células, inclusive mesenquimais indiferenciadas, que podem se transformar em qualquer célula e assim substituir aquelas que morrem como consequência das afecções pulpares; é na câmara pulpar que essa característica se manifesta de maneira mais marcante. Com o avançar da idade ocorre a diminuição da quantidade de células; este é um fenômeno natural, fisiológico. Este fenômeno também se manifesta de uma outra forma; quanto mais a polpa se dirige para o ápice, menos celularizada ela se torna. A menor quantidade de células confere aos tecidos conjuntivos menor capacidade de defesa e reparação. Em outras palavras, é no terço apical que a polpa apresenta o seu menor potencial de defesa e reparo.

Diante do envolvimento da porção coronária da polpa dental pela cárie, o tratamento mais adequado pode ser uma pulpotomia, terapia conservadora; mais uma vez, uma intervenção limitada ao local onde está o tecido acometido pela patologia. Diante da inflamação tida como irreversível (pulpite irreversível), o tratamento recomendado tem sido o tratamento endodôntico radical.

Deve ser observado que nessa condição a patologia está limitada ao canal radicular. Tratando-se de patologia pulpar, em tese ela está confinada no canal dentinário, local onde, por definição, está a polpa. A postura clássica para o tratamento de canais com polpa viva é realizar-se o preparo e obturação no canal dentinário. Assim, a patologia pulpar, um dos tecidos que compõem o dente, deve implicar em um tratamento que fique limitado a esses tecidos; polpa e canal dentinário.

Observe então que as patologias pulpares que ocorrem na polpa viva têm as suas conseqüências limitadas ao espaço pulpar, o canal dentinário, habitat da polpa. Sendo assim, a intervenção endodôntica deverá se restringir a este canal.

Ocorre que ao se promover essa intervenção, realizada através do preparo do canal, há uma possibilidade de que as raspas de dentina geradas pela instrumentação das paredes do canal se acumulem e promovam a perda do comprimento de trabalho (CT). Neste momento, o clínico deve se fazer três perguntas: 1) quantas vezes perdeu o CT, 2) por que perdeu e 3) quantas vezes conseguiu recuperar. Ao encontrar essas respostas ele perceberá a importância e a freqüência de ocorrência do tampão apical de raspas de dentina, fenômeno confirmado na literatura por diversos autores. Por essa razão, sempre que houver essa possibilidade, recomendamos que se faça a patência foraminal. Isso significa estender a intervenção endodôntica ao canal cementário, tecido periapical e não dental, porém, sem a necessidade de agir sobre o tecido ali presente, conhecido como coto pulpar (voltaremos a falar sobre esse tecido), muito menos pensar em remove-lo. Deve-se perceber assim que uma patologia contida no canal dentinário, componente do dente, muitas vezes requer uma intervenção no canal cementário, pertencente aos tecidos periapicais.

As estruturas que compõem os tecidos periradiculares são cemento, ligamento periodontal e osso alveolar. A inflamação pulpar não tratada geralmente leva à necrose pulpar e, com o tempo, ao seu estabelecimento em todo o canal radicular (sistema de canais). Também o fator tempo determinará o envolvimento do coto pulpar e os tecidos periapicais.

A maior causa das alterações pulpares é a cárie, seguida das alterações periodontais, ambas com participação decisiva dos microorganismos. A doença endodôntica é de origem microbiana. Deve-se entender que a necrose pulpar e a conseqüente infecção do canal se estendem por todo o sistema de canais. Trabalhos têm demonstrado a extensão da infecção do canal radicular ao canal cementário, pertencente aos tecidos periodontais apicais, e aos próprios tecidos periapicais; é nestes tecidos, periapicais, que se manifestam as patologias com origem na necrose pulpar. O processo de reparo que se deseja no tratamento endodôntico de canais com polpa necrosada se dá, portanto, nos tecidos periradiculares, particularmente nos tecidos periapicais. Nesses tecidos ocorrem as manifestações da patologia, deles depende o reparo.

Aqui pode-se estabelecer um paralelo no tratamento de uma patologia pulpar contida no canal radicular (polpa viva) e daquela que se estende aos tecidos ápico/periapicais (polpa necrosada). Na primeira, a intervenção praticamente se limita ao canal dentinário, com ação no canal cementário com o fim de evitar a perda do CT pela formação do tampão apical de raspas de dentina. Na segunda, a intervenção deve se estender à porções envolvidas pelo processo de infecção; os tecidos ápico/periapicais.

Nota: Quem desejar ler mais sobre o tema pode faze-lo em nossos artigos, alguns dos quais já estão publicados na seção  Artigos Publicados dessa página e também no nosso livro Endodontia Clínica.

Daltonismo

Alguma vez na sua vida você já teve uma discussão, ou presenciou alguma, em que uma pessoa não consegue enxergar algo óbvio, algo de uma clareza tão grande que não há como negar? O que você fez? Se irritou, perdeu as estribeiras, quis brigar, ou simplesmente se calou, engoliu e implodiu?

Uma discussão, acirrada ou não, é troca de idéias geralmente conflitantes, o que pressupõe diálogo. Em todo diálogo, portanto, em toda discussão, a possibilidade de aceitação de qualquer um dos pontos de vista tem que estar aberta. A idéia é essa e todos, isso mesmo, todos dirão que é assim que agem. Não é.

No meio científico, os temas que permitem discussão são diversos, portanto, um leque enorme de possibilidades de diálogo: através da discussão se chega à luz. Quantas vezes houve possibilidades abertas para a discussão e ela não ocorreu, ou quando ocorreu descambou para algumas agressões, inclusive pessoais?

Não estamos preparados para a discussão, porque simplesmente não estamos preparados para o diálogo. Poucas vezes ouvimos, e quando ouvimos não aceitamos. Nos tornamos pastores, pregadores de uma verdade única. É absolutamente natural que “briguemos” pelas nossas convicções e concepções. É natural que se usem, quem os possui, os dons pessoais, inclusive didáticos, na defesa dessas concepções. Muito natural. O que não é natural é não considerarmos a outra possibilidade, o outro lado, a outra verdade.

A Ciência trilha os caminhos certos. Nem sempre assim o fazem os cientistas. Segundo Rubem Alves* “O cientista virou um mito. E todo mito é perigoso, porque ele induz o comportamento e inibe o pensamento”. Criamos a verdade, ela é só nossa, e sequer ouvimos o outro.

De acordo com Nietszche**, “não há verdades definitivas. Apenas interpretações sobre a realidade, condicionadas pelo ponto de vista de quem as propõe”. Quantas verdades você já viu, colocadas por diferentes professores? E quantas vezes você viu essas verdades ditas como definitivas?

Você já ouviu falar de Sir John Dalton? Foi um químico inglês que descobriu a dificuldade de se diferenciar as cores, particularmente o verde do vermelho. Ele próprio tinha esse problema. A essa patologia deu-se o nome de daltonismo.

As idéias consagradas oferecem grande resistência às mudanças. Aquelas discussões sobre as quais falamos aí em cima, quando não se consegue enxergar algo óbvio, algo de uma clareza tão grande que não há como negar, mas é negado. Na academia também existe. Isso é daltonismo científico.

* Rubem Alves – Psicanalista e professor paulista
** Nietzsche – Filósofo alemão do século XIX.

Notoriedade

– Sentou na cadeira dele, ele fala mal de todo mundo.

Há poucos meses um colega disse isso referindo-se a um outro colega. Tudo a ver com uma coisa muito na moda (a falta dela), chamada Ética.

Sempre foi assim. O mundo é assim… Mas, parece que os profissionais “mais antigos” estão estranhando; dizem que o processo está forte demais. Em outras palavras, dizem que atualmente a falta de ética é de assustar qualquer um. Será que é assim, e se for, por que será?

É pouco provável que haja somente uma resposta. Geralmente, essas mudanças de comportamento da sociedade não encontram resposta em um único aspecto. Não tenho competência para fazer uma análise de algo tão complexo, mas, certamente ela passa por um aspecto cada vez mais visível; a busca pela notoriedade.

O advogado do diabo. Viram esse filme? Quem não viu corra e pegue em uma locadora. Al Pacino, para variar, soberano. Há um trecho em que a sua personagem diz; “o pecado de que mais gosto é a vaidade”.

Há, neste momento, e isso parece que fugiu do controle, manifestações de busca de notoriedade que deixaram de lado qualquer preocupação ou compromisso com a Ética. Alguns profissionais estão se notabilizando; para ocupar um espaço, falam de tudo e de todos.
 
Não há limites. Falar mal de alguém, dizer que professor fulano é um retrógrado, que o outro é mentiroso, que ele corrigiu tratamentos endodônticos que colegas fizeram (dizendo o nome de quem fez), tudo isso em público, diante de colegas e/ou de alguns alunos incautos. Demonstração de tudo, inclusive de insensatez; é incrível como não conseguem perceber que alguns dos seus casos clínicos “caem” nas mãos de outros colegas e por eles são corrigidos, mas não comentados.

A Ética, essa que aprendemos nos manuais dos conselhos que regem as profissões, é infringida com freqüência e naturalidade assustadoras. Não vejo solução para isso. Os profissionais são homens e é aí que está o problema; no homem. Perderam-se os valores, os princípios, que hoje constituem uma conversa chata para muitos. A busca da notoriedade regula os seus atos. Por ela, qualquer coisa, a qualquer preço.

Os mais experientes identificam com relativa facilidade os que agem assim. O grande perigo está nos jovens, aqueles que estão chegando e os recém-chegados ao mundo profissional, cada vez mais selvagem. Há de se ter um cuidado muito grande com estes, pois, sem o discernimento que só o tempo dará, deixam-se levar pela aparência e conversa desses profissionais, chegando até a admirá-los.

Nesses casos, os órgãos competentes nada ou pouco podem fazer. Esses profissionais seguirão a sua trajetória agindo dessa forma e é muito difícil dete-los. Eles vão continuar exercendo o alpinismo profissional. É na ética dos que têm que se escondem os que não têm.

Pondo os pingos nos is

O Congresso de Odontologia da Bahia acontece em anos pares. Em algumas especialidades sempre houve pelo menos dois cursos prinicipais, um nacional e um internacional. Acredito que alguns devem ter ficado registrados para quem os assistiu. Para mim ficaram.

Alguns cursos foram de grande importância na minha formação profissional. Há um congresso, porém, que destaco nesse sentido; 1986. Neste ano, mais precisamente outubro, mês em que o Congresso da Bahia é realizado, foram os cursos ministrados pelos professores Quintiliano Diniz de Deus e Lars Spangberg.

O do Prof. De Deus, como sempre, foi muito bom, mas, foi no curso do Prof. Spangberg que um determinado momento me chamou muito a atenção. Lembro-me perfeitamente, como se estivese acontecendo agora.

Àquela época não existiam os recursos de hoje, como por exemplo, ponteira a laser; usava-se muito uma vara de bambu (a essa altura vocês já estão dizendo; não é do meu tempo). Rolando a vara, no bom sentido, entre as mãos, ele disse; “existem bactérias que sobrevivem no periápice e não são atingidas pelo preparo do canal”. Aquilo ficou na minha cabeça. Estamos em outubro de 1986.

Janeiro de 1987. Vou ao consultório (maravilha, um sábado à noite) para atendimento de urgência a uma paciente com abcesso em fase aguda no incisivo central superior direito. Como se fazia então, fiz a cirurgia de acesso, drenagem e deixei o dente aberto. Assim se fazia, com o objetivo de trazer alívio ao paciente. Nessas condições, saía-se da fase aguda e entrava-se na crônica. Normalmente, dois ou três dias depois, já assintomático, o paciente era agendado para iniciar o tratamento, o que foi feito.

Após a consulta, manipulação do canal e colocação de PMCC (nessa época eu ainda utilizava essa substância), a paciente entrou em fase aguda outra vez, o que nos fez voltar ao consultório para outro atendimento de urgência (aí já não foi num sábado, ufa!).

Novamente, dente aberto, fase crônica, assintomática, a paciente foi agendada para nova consulta. Nova manipulação, PMCC, outra fase aguda, tudo de novo…

Aí, lembrei de outubro de 1986 (lembram que estamos em janeiro de 1987?). Congresso da Bahia, Spangberb, vara entre as mãos, bactéria no periápice. Não deu outra, fui no forame, instrumentei, medicação intracanal. Adeus fase aguda, adeus atendimento de urgência. Agora só agradecimentos da paciente, por sinal, uma bela mulher.

Aí está o registro da primeira vez em que fiz limpeza intencional do forame apical. Janeiro de 1987. Desde então, em todos os casos de necrose pulpar, sem exceção, passei a fazer limpeza do forame.

Ninguém falava disso; não tinha com quem trocar idéias sobre o tema. O professor Spangberg, minha fonte inspiradora, não tinha dito nada sobre como alcançar essas bactérias via Endodontia; a opção colocada foi a cirurgia paraendodôntica. A opção colocada hoje, 2007, ainda é a cirurgia paraendodôntica.

Nessa época eu era somente clínico, já especialista em Endodontia; não era e não imaginava que um dia, cerca de dez anos depois, viria a ser professor. E foi com muita alegria que em 1992 vi o professor De Deus abordar esse tema no seu livro. Somente agora, neste exato momento em que escrevo, lembro de um detalhe; De Deus estava assistindo ao curso, na última fila, sentado com as pernas sobre uma outra cadeira à sua frente. Será que aquele momento, Spangberg, vara de bambu rolando entre as mãos, bactéria no periápice, teve nele o mesmo impacto que em mim?

Por uma grande coincidência, foi em 1992 que, diante de um caso que não conseguia resolver, mesmo fazendo limpeza do forame e usando hidróxido da cálcio, modifiquei o procedimento. Desde então, até para mostrar que se deve atuar de forma diferente em diferentes situações, passei a preconizar dois procedimentos: a limpeza passiva e ativa do forame. Vocês podem ver esses dois casos na seção CASOS CLÍNICOS dessa página, os de número 15 e 16 respectivamente.

O limite apical de trabalho é um tema recorrente na minha vida profissional e a ele tenho dado grande importância, inclusive nos cursos que ministro. Como a minha atividade como professor é mais recente, o segundo artigo que publiquei, em 1998, “Clinical and radiographic evaluation of the relation between the apical limit of root canal filling and success in endodontics” já falava sobre ele. Não só este como alguns outros nessa mesma linha estão disponíveis na seção ARTIGOS PUBLICADOS dessa página.

Tenho colocado nos textos, inclusive de forma bem detalhada no nosso livro, as várias nuanças desse procedimento; como fazer, porque fazer, quando fazer, etc. Permitam-me sugerir a sua leitura e chamar a atenção, por exemplo, para o equívoco que a literatura comete ao colocar patência apical e limpeza do forame como se fossem a mesma coisa. Não são. São coisas bem diferentes.

Hoje vejo que este é um tema que voltou a ser discutido. Que bom.

Tire meio

O aluno chega com uma radiografia na colgadura e diz:
– Professor, ‘tá bom?
– Não, tire meio.

Você já viu essa cena alguma vez? Como aluno, vi e fiz muitas vezes. Ainda vejo muito. Essa é uma das maiores provas, não a única, dos equívocos que cometemos ao ensinar a Endodontia. O que será desse aluno como profissional? Quais são as chances de que ele venha a ser, de fato, um bom endodontista?

A resposta é bem simples. Se ele não tiver potencial para exercer análise crítica e discernir e/ou não encontrar em algum outro momento alguém que modifique essa orientação, não são grandes as suas chances.

Ao longo dos anos, endodontistas autômatos têm sido gerados. Infelizmente, são poucos os endodontistas autônomos. Dizemos-lhes, tire meio, ponha meio, tire um, ponha um, trave o cone, não está bem travado, trave melhor. Não lhes damos espaço para a dúvida; por que tirar meio? Por que colocar meio? Por que travar perfeitamente o cone? E se eu não travar tão bem, o que acontece?

Não precisamos observar muito para perceber vários momentos como esse na relação dos alunos/profissionais com a Endodontia. Querem um exemplo?

Vamos utilizar o próprio tema desse nosso bate-papo; uma discussão sobre o comprimento de trabalho que deve ser utilizado. Ela, fatalmente, nos leva a tentar entender como se comportam os tecidos ápico/periapicais diante do preparo do canal, de como devem reagir nos casos de polpa viva e necrosada, a necessidade ou não de medicação sistêmica diante de um pós-operatório desconfortável para o paciente, enfim, a discussão nos levaria a entender o processo. Vem alguém, mostra alguns dispositivos dizendo que eles localizam com exatidão o ponto onde o canal deve ser instrumentado e pronto; para que eu preciso entender se a tecnologia me dá tudo pronto? Morre a discussão, morre a compreensão.

Uma vez, eu estava assistindo em uma faculdade (digamos, como convidado) a uma aula de graduação às 07:00 de uma segunda-feira (não era às 19:00, era às 07:00, da manhã), ou seja, horário perfeito para uma aula. Tinha aluno cochilando, namorando (não me diga que você nunca viu namoro em sala de aula), fazendo “cachinhos” no cabelo. De repente, um desavisado (aluno de graduação ligado na aula às sete da manhã de uma segunda-feira só pode ser um tarado), levanta a mão e, para o espanto de todos, uma pergunta; Professor, no livro do professor De Deus,… Não, aqui não fazemos assim.

O parágrafo anterior terminou muito bruscamente, não foi? Pois é, foi assim que terminou o momento que podia salvar uma aula às sete da manhã de uma segunda-feira. Na hora da pergunta, toda a sala, inclusive eu que estava sentado lá atrás observando tudo, se mexeu nas cadeiras, por sentir um alento de vida, uma pergunta que geraria neles, alunos, uma discussão; um momento para a reflexão.

É aí que está o problema; a reflexão. É muito mais fácil tirar meio.

A obturação e o espaço vazio

“Obturações curtas favorecem o acúmulo de maior volume de debris pulpares e dentinários, permitindo a instalação de microorganismos e consequentemente, contribuindo para o insucesso do tratamento endodôntico”.

Não importa a autoria, mas é possível que você concorde com essa afirmação. Ela está de acordo com a concepção que tem orientado a maioria absoluta dos profissionais da Endodontia pelo menos nos últimos cinqüenta anos; a obturação não pode ter falhas, não podem existir espaços vazios. O vedamento tem que ser hermético.

Volte lá, leia outra vez e pense comigo:

1. Como podem se acumular debris pulpares e dentinários depois que a obturação foi feita? De onde eles vieram?
2. Debris pulpares e dentinários já existem ou são produzidos pela instrumentação do canal?
3. Se existe um acúmulo de debris pulpares e dentinários é por causa da obturação curta?

O que você acha? Se eu disser que é lógico que o acúmulo de debris pulpares e dentinários não é por causa da obturação curta e sim porque o preparo não removeu, você concorda comigo?

Vamos pensar juntos outra vez?

1. Vimos que o acúmulo de debris pulpares e dentinários não é por causa da obturação curta, mas sim porque o preparo do canal não removeu.
2. Isso quer dizer que a “culpa” é do preparo e não da obturação, concorda?
3. Posso dizer então que não é o espaço vazio da obturação curta, mas o que está dentro dele?
4. Se é assim, foi o preparo mal feito que não limpou, que não removeu, correto?

Os passos do tratamento endodôntico não devem ser bem feitos, devem ser muito bem feitos, todos eles. Mas, em qualquer especialidade médica sabe-se que para curar uma doença basta eliminar a causa. Quem remove a causa na Endodontia, o preparo ou a obturação?

Vamos lá.

P. Por que será que um determinado dente está com rizogênese incompleta e lesão periapical?
R. Porque, por qualquer razão, quando o paciente era jovem, se já não for mais, a polpa necrosou, deixou de haver apicogênese e ainda surgiu a lesão periapical.
P. Você prepara e obtura logo?
R. Não, não é mesmo?
P. Por que?
R. Porque se fizer isso há uma grande possibilidade de a obturação extravasar, não é? Aí, você faz a apicificação e promove o fechamento do ápice, que leva alguns meses para ocorrer (depende de cada situação). Agora o canal pode ser obturado.

Você nunca observou que nesse momento muitas vezes a lesão já desapareceu, ou, pelo menos, quase toda ela? O que aconteceu? Você removeu a causa. Por causa desse “pequeno” detalhe, não só fechou o ápice como desapareceu a lesão. O que é isso? Reparo. Percebeu que você obteve reparo sem a obturação ter sido feita? Ela vai ser feita agora. Você não percebe isso em todos os outros casos por uma razão bem simples; você não precisa ficar esperando fechar o ápice para poder obturar. Simplesmente prepara, obtura, vê meses depois a lesão desaparecer e aí fica pensando que foi graças a obturação, como todos dizem a você.

Vamos agora, juntos, fechar o nosso raciocínio? O reparo de uma lesão periapical não depende da obturação.

Sei que é difícil pensar diferente do que você aprendeu, ainda mais que você lembra que todos pensam assim. Já pensou na possibilidade de que eles estão errados? Vou falar bem baixinho para ninguém ouvir, só você; estão errados.

Comece a pensar.