Endodontia moderna

No final do século XX (não foi há cem anos, lembre que o século foi até o ano 2000, ontem), podíamos ver cursos de Endodontia com títulos bem atrativos – “A Endodontia do novo século”, “A Endodontia do terceiro milênio” (lembre também que na mudança do século passamos do segundo para o terceiro  milênio), e por aí vai. Ainda é comum “Técnicas Avançadas em Endodontia, “A Endodontia Moderna”, etc.

São títulos interessantes, nada contra, mas confesso que eles me incomodam.

Certamente você tem visto e ouvido falar do grande aumento da quantidade de Faculdades de Odontologia no Brasil. Você faz idéia de quantos cursos de especialização existem hoje? Eu não faço, sei que são muitos.
                                                                                                                       
Você lembra do tempo, isso foi ontem, em que pouquíssimos eram Mestres e menos ainda eram Doutores? Já viu quantos são hoje? Onde todos parecem iguais, como fazer a diferença? Se você respondeu na qualidade respondeu errado. É no marketing.

Não é bom ter uma orientação sobre como conduzir o seu consultório, torna-lo mais rentável, atrair mais paciente? Bem-vindo o marketing. Mas, será que não está havendo um pouco de exagero?

Como “anunciar” qualidade? Não se anuncia. Quando você começa a mostrar uma boa Endodontia, uma boa Periodontia, uma boa Prótese, ela, a qualidade, aparece. Qualidade é uma coisa que se mostra ao longo do tempo. Mas tempo leva tempo. Não serve. Vou para o marketing, é mais rápido. Anuncio minhas qualidades e pronto. Se junto anuncio aparelhos, motores, técnicas modernas, é gol. Corro para o abraço.

Esse motor e essa técnica, aquele motor e aquela técnica, o outro motor e a outra técnica. Existiram outros antes deles, e existirão outros depois. Pense comigo: Se esse é o diferencial, você NUNCA fará uma boa Endodontia, porque os cursos precisam sempre mostrar aparelhos e técnicas “novas”, e você estará sempre sendo induzido a adotar o novo, o moderno, porque só aí você é bom. E você não quer ser chamado de ultrapassado, quer?

Em um texto recente, Oscar Niemeyer* diz que de acordo com Alvar Aalto** “não há Arquitetura antiga ou moderna e sim Arquitetura boa ou má”. Deixe-me beber um pouco da água de gênios da Arquitetura.

Gente, não existe Endodontia antiga ou moderna. O que existe é Endodontia bem feita ou mal feita. É evidente que hoje os recursos permitem mais facilmente fazer uma boa Endodontia. Temos esses recursos? Vamos usa-los. Mas o diferencial é quem está sentado no mocho: é você. E ninguém, isso mesmo, ninguém vai lhe transformar em endodontista. Somente a partir de bons cursos, com bons professores de fato, mas, sobretudo, a partir de você, da sua determinação, do seu desejo e da experiência que se adquire com o tempo, você será um bom endodontista. Marketing, qualquer um faz. E Endodontia bem feita, você tem visto qualquer um fazer?

Você está fazendo um curso de especialização. Você é bom. Parabéns ao curso que o faz bom. Olhe ao redor; são todos tão bons quanto você? Lógico que não. Alguns são melhores do que outros, ainda que façam o mesmo curso. Os parabéns acima são do curso ou seus?

Como sempre, os jovens são as grandes vítimas. Dificilmente eles identificam um vendedor de ilusões.

Vou parafrasear Chico Buarque: “Não quero o novo pelo novo. Quero o novo pelo que de bom ele pode trazer”. O manto da inovação sempre escondeu muita coisa e, é lógico, sempre o fará. Um colega nosso, Luiz Thadeu Poletto, a quem não conheço pessoalmente, diz que “inovar é fazer bem feito”. O que você acha?

 

* Oscar Niemeyer – Dispensa apresentações.
** Alvar Aalto – (1898-1976) Arquiteto finlandês, um dos primeiros e mais influentes arquitetos do movimento moderno escandinavo, que também se notabilizou como designer de mobília, tecidos, cristais, entre outros produtos.

Preparo e obturação do canal

A Medicina é uma profissão fantástica. É extremamente gratificante cuidar da saúde física e mental do ser humano.

Cuidar da saúde física e mental do ser humano. Dá para imaginar o tamanho da responsabilidade que isso representa? Seria possível um profissional ter todos os conhecimentos necessários para algo dessa grandeza? Humanamente impossível.

Daí surgem as diversas especialidades da Medicina. O conceito de um único organismo, mas a necessidade de “dividi-lo” em partes, para tornar possível o seu conhecimento. Cardiologia, Pneumologia, Ortopedia, Odontologia, Oftalmologia, Dermatologia e tantas outras especialidades, todas elas com um único objetivo; a saúde do homem.

Os primeiros cursos de Odontologia no Brasil surgiram como anexos das Faculdades de Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro. Assim também eram os cursos de Farmácia e Obstetrícia. Em São Paulo, o ensino de Odontologia já surgiu de forma distinta da Faculdade de Medicina e chegou a existir uma Escola de Farmácia, Odontologia e Obstetrícia. O modelo adotado no Brasil é o das escolas americanas, isto é, a “separação” da Odontologia das outras especialidades. Se essa separação foi acertada ou não, não cabe aqui discutir. Mas a discussão de pelo menos um dos seus aspectos é inevitável.

Parece que para os profissionais de ambas, a transformação da Odontologia e da Medicina em profissões distintas gerou a idéia de que, de fato, são distintas. A começar pelo fato de que os profissionais que nelas atuam não são colegas. Se existem, quantos médicos consideram seus colegas os dentistas, e vice-versa? Muito pelo contrário, há aí um sentimento de rixa (na verdade há um outro menor, mas… deixa pra lá), expresso de várias maneiras em vários momentos. Mas esse é um tema que pede uma outra hora para a sua discussão e é possível que eu volte a ele mais adiante. A distinção sobre a qual pretendo falar é outra.

Talvez os mais jovens não saibam, mas até há pouco tempo os representantes comerciais das indústrias farmacêuticas que visitavam os dentistas falavam de antibióticos, antiinflamatórios e analgésicos para dentista. Percebeu? Específicos para dentista. O organismo que o médico tratava exigia um antibiótico, o que o dentista tratava outro. “Existiam” dois organismos, um para o médico outro para o dentista. Se observarmos bem, é possível que essa concepção ainda não tenha sido inteiramente eliminada.

O organismo é um só. A compreensão desse aspecto não permite pensar que ele se mobiliza e reage diferentemente na Odontologia e na Medicina. As células que compõem os tecidos e órgãos são as mesmas, onde quer que eles estejam situados. Até onde o conhecimento científico permitiu chegar, não há como o sistema imune se comportar de maneiras diferentes pelo fato de estar atuando em uma patologia da Odontologia ou da Medicina. Isso não existe. Assim, onde quer que estejam ocorrendo, a reação inflamatória e o processo de reparo obedecem às mesmas leis do organismo.

Nenhuma especialidade da Medicina tem qualquer tipo de dúvida de que é removendo a causa que desaparece a patologia, a doença. Nenhuma especialidade da Medicina tem qualquer tipo de dúvida de que é o ato cirúrgico de remoção que elimina a causa. Nenhuma especialidade da Medicina tem qualquer tipo de dúvida de que, uma vez removida a causa, o organismo promove a cura. Na Endodontia, uma especialidade da Medicina, parece que querem que seja diferente.

O preparo do canal é a fase mais importante do tratamento endodôntico, pode ter absoluta certeza disso. Na Endodontia, a causa é o canal infectado, a patologia é a lesão periapical (exsudato persistente, fístula). Na Endodontia, quem remove a causa é o preparo, quem promove a cura é o organismo. Não sei por que ainda hoje queremos ir na contra-mão. Não sei por que ainda hoje queremos, e brigamos por isso, demonstrar que é a obturação que permite a cura. Nunca foi.

Preparo do canal significa acesso, instrumentação, irrigação e medicação intracanal (se e quando necessária). Todos esses procedimentos constituem uma única etapa, que visa a eliminação da causa. Que não se argumente com a impossibilidade de eliminar a infecção em Endodontia. Isso parece ser fato, porém pobre como argumento. Mais pobre do que ele é o que é colocado logo em seguida, e que parece a todos que se justifica: “Ao vedar hermeticamente, a obturação promove o enclausuramento das bactérias que não foram eliminadas. Isoladas entre a obturação hermética e o cemento, elas morrem”. Quem provou isso? Não se pretende uma Ciência que só se justifica com provas? Onde estão os trabalhos que provam a existência do vedamento hermético?

Você já observou quantas vezes uma antibioticoterapia é modificada no tratamento de pacientes em Medicina? Por que? As razões são diversas, mas há uma de fácil compreensão; com essa ou aquela medicação não se conseguiu a eliminação do processo infeccioso. Mas observe que o medicamento está sempre voltado para esse objetivo; eliminação da causa. Quando a medicação funciona e o tratamento controla a infecção, quem entra em cena? O sistema imune. Na verdade ele nunca esteve fora de cena, pelo contrário. No entanto, agora existem condições mais favoráveis para que ele possa fazer o seu papel; promover a cura. Quem criou essas condições? O tratamento, que exerceu controle de infecção.

Será difícil imaginar algo semelhante na Endodontia ? Por que alguns tratamentos podem falhar? Porque as medidas tomadas para controle de infecção não foram suficientes para este ou aquele caso. Em outras palavras, o tratamento endodôntico não foi suficientemente efetivo. Aí você poderá ter como explicação a permanência de microorganismos que não foram alcançados pelo preparo (alojados em locais inacessíveis a ele), microorganismos com maiores recursos de sobrevivência.

O que a literatura propõe além do enclausuramento pelo vedamento hermético? A utilização de cimentos obturadores com atividade antimicrobiana. Olha só que coisa. Perceba a inversão absurda que se faz. Atribuir ao cimento obturador o papel de matar microorganismos.

Vamos pensar juntos? Dispomos hoje de excelentes técnicas de instrumentação, você sabe disso. Você usou uma delas. Além disso, irrigou com solução com reconhecida ação antimicrobiana, solvente de matéria orgânica, em associação com solução de comprovada eficácia de ação sobre matéria inorgânica, e complementou com medicação intracanal, também com comprovada ação antimicrobiana. Várias ações que se somam e juntas ganham grande potencial antimicrobiano. Você realmente acha que os microorganismos que escaparam desse tratamento morrerão pela ação de um cimento obturador? Quais são as chances de isso acontecer? Já pensou que para isso o cimento obturador teria que ter uma ação antimicrobiana superior a todos aqueles procedimentos do preparo juntos? Você conhece algum que tenha? Qual seria a toxicidade desse cimento? Tendo em vista que alguns acreditam que cimentos obturadores com hidróxido de cálcio fariam esse papel com menor toxicidade, esse hidróxido de cálcio contido no cimento estaria em condições, concentração e quantidade mais adequadas e teria mais tempo de ação do que aquele da medicação intracanal?

Parece ser consenso que não se consegue a eliminação da infecção com o tratamento endodôntico. Também não há comprovação de que o reparo só se dá nessas condições. Por essa razão, hoje prefere-se dizer controle de infecção. Quando se consegue, ocorre a cura. Não parece muito difícil imaginar que as condições para isso são atingidas através do preparo e não da obturação.

Nenhuma especialidade da Medicina tem qualquer tipo de dúvida de que é removendo a causa que desaparece a patologia. É simples. Todos os procedimentos de remoção do conteúdo infectado do canal estão inseridos na fase do preparo do canal. Na Medicina, após o controle de infecção, a pele e as mucosas se reconstituem e “selam” o organismo contra a reinfecção. A reconstituição da pele e das mucosas é a síntese da demonstração de reparo que o organismo pode dar. Na Endodontia, após o controle de infecção que o preparo do canal proporciona, não há como o organismo formar novo esmalte e nova dentina. A obturação do canal e a restauração coronária selam o canal contra a reinfecção. Esse é o papel da obturação: selar.

Desde 1987 trabalho com essa linha de raciocínio e somente a partir de 1992 comecei a mostra-la nos cursos que tenho ministrado em algumas cidades do Brasil. Como era de se esperar, ocorreram as mais diversas reações, algumas das quais violentas. É natural. A História mostra que isso sempre acontece todas as vezes em que surge um novo pensamento, uma nova concepção. Dou um exemplo: a descoberta por Nicolau Copérnico, levada adiante por Galileu Galilei, de que não era a Terra e sim o Sol o centro do Universo, um dos grandes momentos da Ciência. Por ter ido contra o pensamento (errôneo) da época, Galileu foi condenado à prisão e forçado a admitir publicamente que estava errado. Somente quatro séculos depois (1997) ele foi perdoado oficialmente pela Igreja Católica.

Dizer que há 21 anos trabalho com essa linha de raciocínio não significa não dar importância à obturação. Todos os nossos alunos, em todos os níveis, graduação, aperfeiçoamento e especialização, sem exceção, são nossas testemunhas de que em vários momentos orientamos refazer a obturação por não estar bem feita. O fato de o reparo não depender da obturação não significa que ela pode ser feita de forma negligente ou, o que seria pior, não ser feita. O reparo não depende dela, mas a sua manutenção sim. A obturação do canal e a restauração coronária fazem o papel da pele, “evitar” a reinfecção.

Portanto, o argumento da negligência com a obturação ou, pior ainda, da sua supressão, que já foi utilizado contra mim, só encontra explicação na incompreensão do que tenho dito ou na má fé. Além do que já publiquei (pelo menos alguns artigos podem ser vistos na seção ARTIGOS PUBLICADOS desse site), inclusive o meu livro, trabalhos importantes de outros autores começam a surgir seguindo essa mesma linha de raciocínio. Veja, por exemplo, “Healing of Apical Periodontitis After Endodontic Treatment with and without Obturation in Dogs” (Journal of Endodontics, julho de 2006, p. 628-633) clique aqui.  Após acompanhamento histopatológico de canais tratados, os autores dizem que “o achado digno de registro do estudo é que não houve nenhuma diferença na cura de lesões periapicais entre canais obturados e não obturados”.

Atribuir o reparo à obturação do canal foi um dos grandes equívocos cometidos na Endodontia. O reparo ocorre graças ao preparo do canal. É a Endodontia em consonância com todas as outras especialidades da Medicina.

Entendendo o processo

O preparo do canal é um ato cirúrgico e como tal gera reação inflamatória. Não existe preparo de canal atraumático. Uma das consequências diretas disso é a formação de edema. Podemos dizer que a depender da intensidade do trauma gerado pelo preparo, o edema pode ser de pequena, média ou grande intensidade e, pelo seu volume, terá ou não espaço adequado para se acomodar nos tecidos periapicais.

1. Como se forma o edema?
Com a agressão, o organismo promove uma série de eventos que funcionam como mecanismos de proteção, como enviar células de defesa para o local. Com isso também passa mais fluido dos vasos para os tecidos (edema).

2. Por que a dor?
A participação do edema é decisiva. Ele provoca a dor porque, sem espaço para se acomodar nos tecidos, fica comprimindo as células nervosas.

3. O que ocorrerá com o edema formado?
Além das reabsorções teciduais que ocorrem para a sua acomodação, ele será drenado (por mecanismos como os vasos linfáticos) e “desaparecerá” do local.

4. Quando desaparecer, o que ocorre?
Passa a dor.

5. E o gelo?
O frio promove contração vascular. Isso diminui a permeabilidade dos vasos e consequentemente a passagem de fluido dos vasos para os tecidos. Diminuindo o edema, diminui a dor.

6. Quer dizer que em alguns casos (dor de pequena intensidade) o paciente pode usar o gelo e não usar aintiinflamatórios?
Pode sim.

7. Qual a vantagem disso?
Essa resposta exige uma atenção maior.

Em grau variável, toda medicação sistêmica apresenta efeitos colaterais. Se é possível manter o pós-operatório de um paciente sem medicação sistêmica, e isso é plenamente possível, é melhor para a saúde dele, e esta é a principal razão. Além disso, representa um custo financeiro menor para ele. Há, porém, uma outra razão de grande importância.

A não prescrição sistemática de medicação sistêmica é uma boa maneira de você acompanhar a qualidade do seu trabalho. Como já disse, não existe preparo de canal atraumático, mas um pós-operatório sem dor sugere que ele induziu um mínimo de injúria aos tecidos periapicais. Ao contrário, dor pós-operatória intensa deve significar agressão maior a esses tecidos. É evidente que entre esses dois “estágios” há diferentes níveis de dor e não simplesmente ausência ou presença dela.

É possível que você não tenha tido exatamente esse tipo de orientação, mas vamos ver uma coisa. Sem dúvida, é muito mais fácil e cômodo ter um paciente medicado; há uma “certeza” de que ele não vai lhe incomodar com as ligações telefônicas que poucos profissionais conhecem como o endodontista: “doutor, o dente ‘tá doendo”. Entendo perfeitamente isso.

Em várias áreas da Medicina, e também da Odontologia, o uso abusivo de medicação sistêmica é aceito como algo absolutamente normal. Em determinados momentos é inteiramente possível atuar sem prescrição sistemática de medicação sistêmica, ou, no mínimo, fazer muito pouco uso dela. Sei que não é assim que se faz, pouco importa. Que é possível é. Posso lhe assegurar que poucas vezes é, de fato, indispensável recorrer à medicação sistêmica para combater a dor pós-operatória. Evidentemente, isso exige uma técnica endodôntica apurada (só se consegue com o tempo), um mínimo de conhecimento científico (não se tem valorizado isso), determinação (algo absolutamente individual) e bom senso.

Quando você consegue determinadas coisas, você, e talvez só você, sabe que se torna um profissional diferenciado, e essa é uma delas. Se os outros percebem ou não é outra história, já que há uma tendência para se viver em função do que os outros pensam. Mas pode ter certeza, nada é mais reconfortante do que quando você sabe.

Endodontia em sessão única

É chavão dizer-se que o “endodontista não vê o que está fazendo”, o que lhe traz sérias limitações quanto ao real conhecimento e domínio do seu campo de ação. Portanto, mesmo uma Endodontia “bem feita” pode encontrar limitações nos resultados desejados e esta parece ser uma realidade de difícil digestão. Mesmo que tenhamos dificuldades para entender e aceitar, as limitações no tratamento endodôntico não são poucas. Pode-se contra-argumentar com os altos índices de sucesso relatados pela literatura, porém, ao mesmo tempo, como, diante deles, explicar a grande quantidade de retratamentos de canal?

O processo de instalação e disseminação da necrose e infecção não parece ser muito rápido. Uma necrose sem lesão periapical é um reflexo do pouco tempo de instalação desse processo e que, por isso, não teria ainda se manifestado através da rarefação óssea periapical; o fator tempo desempenha papel fundamental. Assim, fica difícil interpretar a inexistência da lesão periapical como uma expressão da ausência de infecção do sistema de canais ou do grau de infecção existente nele.

A literatura registra de maneira clara o menor percentual de sucesso dos tratamentos endodônticos dos casos com lesão periapical em relação a aqueles sem lesão. Isso deve significar que há diferenças na capacidade de se exercer controle de infecção nas duas situações, expressando nitidamente uma maior dificuldade nos casos com lesão. Como, provavelmente, a maior causa disso, a complexidade anatômica do sistema de canais impede o acesso dos “instrumentos cirúrgicos endodônticos” a determinadas áreas, o que tem como consequência maior o favorecimento da permanência de alguns microrganismos e seu substrato no sistema de canais.

Tendo em vista a aceitação de que a completa eliminação dos microrganismos do sistema de canais é pouco provável, um dos argumentos a favor da sessão única é o enclausuramento daqueles remanescentes proporcionado pela obturação hermética, por muitos também chamada de tridimensional.

Seja hermética ou tridimensional o nome que se queira dar à obturação, não tem sido demonstrado na literatura que ela, de fato, proporciona o isolamento desses microrganismos residuais dos “meios externos” (cavidade oral e tecidos periradiculares). Assim, a impossibilidade de atribuir à obturação tridimensional a condição de vedar hermeticamente o sistema de canais faz pensar em medidas que possam contribuir para um controle de infecção o mais efetivo possível.

Como foi dito acima, é consensual a inviabilidade da eliminação dos microrganismos pela instrumentação do canal. O impacto que esse “resíduo de bactérias/substrato” trará ao processo de reparo é imprevisível. É importante que se entenda que esse aspecto não pode ser observado somente sob a ótica mecânica do alargamento e vedamento. O combate aos microrganismos é revestido de uma complexidade maior e por isso talvez não permita abordagens simplistas. Aí entram fatores como o hospedeiro, tipo de microrganismos, condições em que habitam o sistema de canais, etc.

No preparo do canal há uma ação mecânica (instrumentação) e outra físico/química (irrigação/aspiração) que, juntas, têm um objetivo; controle de infecção. Deve-se entender que a medicação intracanal representa mais um mecanismo nesse sentido; um complemento importante, mas um complemento. Se houve exageros na interpretação do seu papel, também há agora na sua rejeição absoluta.

Alguém já definiu qual a concentração ideal em que se deve usar o hipoclorito de sódio para todos os casos? Ela existe? Alguém sabe qual é o antibiótico ideal? Ele existe? Mais perguntas se impõem. É possível dar a última palavra para essas e outras questões nas ciências da saúde? Será que as particularidades de cada paciente ou, fechando mais ainda, de cada caso, permitem uma visão única e, o que é pior, permitem uma abordagem que vem se tornando um compromisso, um objetivo?

São conhecidas as dificuldades técnicas inerentes ao retratamento, mas ouve-se cada vez mais falar-se de retratamento de canais de molar com lesão periapical em sessão única como algo rotineiro. O que é retratar um canal? Considerando somente os canais retos e/ou sem desvios, seria somente desobturar e reobturar, ou seja, trocar uma obturação por outra, possivelmente mais bonita? Retratar é fazer um novo tratamento, é fazer o que não foi feito, não é reobturar. Você só retrata canais retos? Por acaso, quando você retrata um molar encontra sempre os mesiais do molar inferior e os vestibulares do superior sem nenhum desvio? Você sai desses desvios e retoma o canal com os instrumentos rotatórios, que não aceitam pré-curvamento, ou manualmente com os de aço inoxidável pré-curvados? Quanto tempo leva isso em todos os molares? Você está lembrado que a literatura acusa um menor percentual de sucesso para o tratamento endodôntico de canais com lesão periapical? Por que será? Dificuldade maior de controle de infecção. O que você acha mais fácil, tratar ou retratar um molar? Em que situação deverá ser mais fácil conseguir controle de infecção, no tratamento ou no retratamento do molar com lesão periapical? Em que situação a solução irrigadora desenvolverá melhor a sua ação antimicrobiana nos túbulos dentinários e canais laterais, em outras palavras, no sistema de canais, nas paredes dentinárias “limpas” de um tratamento ou naquelas ainda “obstruídas” por resíduos da obturação anterior, tão comum nos retratamentos, conforme demonstra a literatura e pode observar qualquer endodontista com relativa experiência?

Há reparo das lesões periapicais com a Endodontia em sessão única? É claro que sim. Deve-se entender que para haver reparo basta simplesmente controle de infecção e o preparo do canal faz isso. O organismo está apto a combater qualquer patologia. Ele dispõe de mecanismos fantásticos para isso. Quando, por razões diversas, o sistema imune não consegue debelar uma patologia, o médico recorre a medidas complementares, como o uso de antibióticos por exemplo. O antibiótico, via circulação sanguínea, chega ao local da infecção persistente e, juntamente com o sistema imune, combate-a.

Vamos estabelec

er uma situação análoga na Endodontia. O preparo do canal (controle de infecção) e a obturação logo em seguida (sessão única) são realizados. Digamos que o reparo não ocorra (você já viu vários tratamentos “bem feitos” com lesão periapical, não é mesmo?). Tal qual o médico, o endodontista recorre então à medida complementar, o antibiótico, e aí a lesão não repara. Por que? Nem o sistema imune nem os antibióticos “entram” no sistema de canais de dentes tratados endodonticamente para combater a infecção persistente. Não há circulação sanguínea para leva-los. A medida complementar, que funciona tão bem na Medicina, não funciona na Endodontia.

Você concorda comigo se eu disser que no caso acima o preparo do canal (instrumentação e irrigação) não foi suficiente para que houvesse controle de infecção? Entra aí, com apoio da literatura e dos resultados clínicos, a medicação intracanal com uma ação antimicrobiana complementar à da instrumentação/irrigação. Dispõe-se de mais um passo, mais um recurso, na busca de um melhor controle de infecção. Não parece uma medida insensata.

No artigo que publiquei no JBE em 2003 (Tratamento endodôntico em sessão única – Uma análise crítica) clique aqui para ler eu já dizia que “a realização da Endodontia em sessão única não deve ser considerada algo fora de propósito…”  e que “a Endodontia caminha cada vez mais na direção de procedimentos com o devido respaldo científico e, por isso, acreditamos que não deve haver radicalismo contra ou a favor da Endodontia em sessão única”. Deve ser lembrado que até bem pouco tempo a sessão única era proibida na polpa viva, postura que não se justifica cientificamente. É possível adotar esse procedimento também nos casos de necrose pulpar, estejam eles sem ou com lesão periapical. Mas, também é possível que as evidências científicas e as alternativas clínicas de tratamento atuais, e este é um aspecto de importância fundamental, ainda não sejam suficientes para respaldar inteiramente essa conduta como rotina. Apesar de não preconizar, respeito a concepção, mas somente quando colocada com um mínimo de embasamento científico, e não é o que tenho observado muitas vezes.

Você já viu uma radiografia periapical com o tratamento de canal mais bonito do mundo com uma lesão periapical? Como explicar aquele insucesso? Digo sempre que a coisa mais fácil do mundo é explicar porque determinada terapia deu certo. Não deve ser tão fácil explicar porque não deu. Quantos podem dar essa explicação? A ignorância ativa ganhou corpo nesses últimos tempos.

Falta-nos frequentemente humildade para reconhecer que ainda há um desconhecimento científico muito grande. A minha recomendação, e a do grupo do qual faço parte, tem sido no sentido de que nos casos de necrose pulpar com lesão periapical o tratamento endodôntico não seja feito em sessão única. Perceba que em nenhum momento falei na quantidade de casos que dão certo com qualquer uma das terapias, argumento bastante utilizado. Para falar disso também teria que me reportar à quantidade de casos que não dão certo, aliás, questão sobre a qual ninguém fala. Precisamos entender que a discussão vai além disso.

Devíamos respeitar mais a individualidade de cada ser humano e, por conseqüência, de cada profissional. Recém-formados, clínicos, especialistas, profissionais mais experientes, todos, não se comportam de maneira igual; cada um tem o seu tempo. Que se permita isso. Estamos privilegiando o tempo em que é feito e não como é feito. É a técnica acima do conhecimento, é a arte acima da ciência. Deveriam estar lado a lado. A Endodontia em sessão única, como qualquer outro procedimento endodôntico, pode, deve e precisa ser discutida sob as luzes da pesquisa e da clínica. Lamento, mas há algum tempo não é assim. Para muitos virou peça de marketing.

Endodontia se faz com olhos, coração e mente abertos. Além disso, técnica, conhecimento e bom senso.