Por Ronaldo Souza
Nele explico a diferença entre patência apical e limpeza do forame (como eram conhecidos) e
que o objetivo da patência apical (foraminal) é basicamente mecânico e não biológico
Assim terminei a primeira parte do texto “Paradigmas da Endodontia“.
O nele se refere ao artigo The Importance of Apical Patency and Cleaning of Apical Foramen on Root Canal Preparation, que espero você tenha lido. Se não, é só clicar no link aqui em cima.
Publicado há treze anos, veja o que digo na segunda página dele:
“Entretanto, deve-se levar em consideração que a manutenção da patência apical não limpa o forame; só evita que haja bloqueio por entulhamento de raspas de dentina. O forame apical deve ser instrumentado para realmente ser limpo. Em outras palavras, um forame patente não está necessariamente limpo porque patência apical e limpeza do forame são procedimentos diferentes”.
Na sequência, também na segunda página, digo:
“A patência apical é estabelecida durante o preparo do canal com o objetivo de manter o acesso ao forame (objetivo mecânico), mas é importante que após a instrumentação o forame não esteja só patente mas também limpo (objetivo biológico). A lima de patência, que deve ter um diâmetro menor que o forame, provavelmente não fará essa limpeza de maneira adequada. O uso de um instrumento ajustado ao forame e que toque nas paredes do canal certamente será mais bem indicado. Por esta razão, a melhor abordagem seria assegurar a patência apical com um instrumento de menor diâmetro durante a instrumentação do canal e depois limpar o forame com uma lima ajustada às suas paredes”.
Mesmo tendo escrito alguns antes, foi a partir daí que fizemos uma sequência de publicações sobre esse tema, sob a visão da microscopia eletrônica de varredura. Você pode ver pelo menos três deles.
1. Location of the apical foramen and its relationship with foraminal file size – na seção Publicações deste site.
2. Relationship between Files that Bind at the Apical Foramen and Foramen Openings in Maxillary Central Incisors – A SEM Study – clique aqui www.scielo.br/pdf/bdj/v22n6/v22n06a03.pdf
3. Influence of Apical Foramen Lateral Opening and File Size on Cemental Canal Instrumentation – clique aqui www.scielo.br/pdf/bdj/v23n2/v23n02a06.pdf
Mais recentemente, iniciamos trabalhos com experimentos em animais nessa mesma linha e o primeiro artigo publicado (abril de 2019) foi o de Paula Brandão, minha orientanda no mestrado.
Você pode ler aqui www://link.springer.com/article/10.1007/s00784-018-2628-2
Perceba que no título do artigo consta a expressão “foraminal enlargement”, mas, como se pode ver abaixo no título original na dissertação consta “instrumentação do canal cementário”.
O titulo original da dissertação foi modificado porque alguns periódicos rejeitaram a expressão “instrumentação do canal cementário”, por não constar na literatura endodôntica, numa clara demonstração das idiossincrasias que existem na literatura.
Por conta disso, mais uma vez, uma expressão equivocada, ampliação foraminal, foi adotada e difundida como consequência do desconhecimento e leitura incorreta das particularidades anatômicas do terço apical, especialmente na sua porção final.
Veja no vídeo abaixo do meu canal no YouTube, o Falando de Endodontia, porque considero ampliação foraminal uma expressão inadequada, como já tive oportunidade de dizer em diversos momentos.
Para dificultar ainda mais o conhecimento desse tema, erros grosseiros são ditos e “ensinados”, particularmente nas redes sociais e em vídeos que proliferam no YouTube, onde salta aos olhos o desconhecimento sobre aquilo de que se fala.
Ampliação foraminal é um procedimento com evidentes equívocos desde a sua concepção, que numa considerável quantidade de vezes é inviabilizada na sua execução pela forma como é “ensinada”.
Onde estão as discussões sobre temas tão importantes e pertinentes à Endodontia como esse?
Por que não são vistas em lugar nenhum?
Porque os eventos se transformaram em desfile de palestras, quase todas falando dos “mais recentes e avançados sistemas de…”.
Vamos lá.
Não é razoável a compreensão da necessidade de preparo do canal para efeito de controle de infecção nos casos de necrose pulpar e infecção?
Claro que sim.
O canal com necrose pulpar e infecção precisa ser instrumentado para que a infecção seja “eliminada” .
Mas você acha sensato que após tantos anos de conhecimento adquirido, que demonstra claramente a infecção do canal cementário nos casos de necrose pulpar e infecção, particularmente nas situações de lesão periapical, que a instrumentação desse canal para efeito de controle de infecção seja desconsiderada?
Não é razoável que, sendo assim, as evidências que podiam “aprovar” a concepção que recomenda a instrumentação do canal cementário não existiam porque engessaram a Endodontia em ideias e conceitos que eram compatíveis com o conhecimento da época, mas que hoje se mostram fracas como evidências?
Como pode ser evidência científica uma ‘evidência’ (a redundância é intencional) que nega a necessidade de tratamento de um órgão infectado?
Em que área da Medicina isso seria possível?
E por que é na Endodontia?
Deixar intencionalmente material cariogênico infectado permanentemente no corpo é único na prática da Medicina e da Odontologia.
Hasselgren, G In: Ørstavik, D e Pitt Ford, TR. Fundamentos da Endodontia 2004
Deixar intencionalmente material cariogênico infectado permanentemente no corpo é único na prática da Medicina e da Odontologia.
A sutil modificação da frase de Hasselgren acima não seria uma representação do que ocorre quando não se instrumenta o canal (cementário) infectado?
Quando será que os endodontistas vão perceber que a Endodontia não pode ser uma ilha isolada nas ciências da Saúde?
Quando irão perceber que algumas vezes a Endododontia bate de frente com conceitos clássicos, consagrados pela ciência e importantes da fisiologia humana?
Quando irão perceber que as “evidências” iniciais estão na imaginação de autores que não se deixaram contaminar pela conveniência das evidências dos pensamentos e procedimentos consagrados pelo tempo e ousam avançar e ir além, muito além do jardim?
O que é mais importante?
- A imaginação, a percepção, o ver o que não se viu, a ideia e o consequente surgimento de uma eventual nova concepção
- Publicações repetidas sobre determinados assuntos
E o que é que mais se vê hoje em dia?
Entende-se a necessidade de se estabelecer alguns critérios que “reconheçam” o valor do artigo e estimulem os pesquisadores, mas são notórias as distorções.
Urubus e sabiás
Por Rubem Alves
Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam… Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza eles haveriam de se tornar grandes cantores. E para isto fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão para mandar nos outros. Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu titular, a quem todos chamam de Vossa Excelência. Tudo ia muito bem até que a doce tranqüilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida. A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas para os sabiás… Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa, e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito.
– Onde estão os documentos dos seus concursos? E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvessem. Não haviam passado por escolas de canto, porque o canto nascera com elas. E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam simplesmente…
– Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à ordem.
E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás…
MORAL: Em terra de urubus diplomados não se houve canto de sabiá.
Assim, vejo a “necessidade” da instrumentação do canal cementário como um conceito a ser compreendido, como ocorre com a instrumentação do canal dentinário.
A razão de ambas, instrumentação do canal cementário e instrumentação do canal dentinário, é uma só: controle de infecção.
Talvez agora fique mais claro mostrar porque algumas evidências, como muitas vezes se imagina e se diz, não são evidências.
Como a que existiria, por exemplo, a partir de artigos como “Success of maintaining apical patency in teeth with periapical lesion: a randomized clinical study“, sobre o qual estamos tratando desde a primeira parte deste texto, Paradigmas da Endodontia.
Por tudo isso que foi dito aqui é que escrevemos o artigo abaixo, que está sendo publicado agora em dezembro de 2019.
Como já comentei anteriormente, publico-o junto com Julian Webber, endodontista inglês que fez parte da criação e desenvolvimento de alguns instrumentos endodônticos que são utilizados nos dias de hoje, como o Wave One Gold, instrumento reciprocante da Dentsply.
Deixo aqui o link para você ler o artigo na íntegra aqui no nosso site.
Cemental canal instrumentation: a new concept – http://localhost/wp/endo2/publicacoes/
Continuaremos a conversa no próximo texto, abordando outro tema com nova visão dentro desse mesmo contexto.