
Por Ronaldo Souza
Estivemos conversando sobre esse assunto nas três primeiras partes desse texto (aqui, aqui e aqui)
Como finalmente responder a essa pergunta?
A primeira coisa a ser feita é reforçar que não existe preparo de canal atraumático. Como qualquer outro ato cirúrgico, o preparo do canal gera trauma aos tecidos, no caso em particular, ao coto “pulpar”.
Uma coisa é preparo do canal sem dor pós-operatória, outra, completamente diferente, é preparo do canal sem trauma.
Isso não existe.
Sendo assim, qual será a resposta ao trauma do preparo do canal?
Poderemos ter basicamente três situações.
- Ausência de dor
- Dor provocada
- Dor “espontânea”
Ausência de dor
Diante de um preparo bem conduzido, não deverá haver dor pós-operatória.
Perceba que não estou dizendo que não haverá reação inflamatória e sim que não haverá dor.
No preparo de canal bem conduzido, com pouco potencial agressivo, haverá resposta inflamatória de pequena intensidade.
Assim também deverá ser o edema inflamatório consequente ao preparo.
Nessas condições, com pouco volume, o edema terá menor ou nenhum potencial de compressão tecidual e células sensitivas. Acomoda-se nos espaços medulares dos tecidos periapicais e o paciente se apresenta assintomático.
Dor provocada
A ação mecânica menos cuidadosa da instrumentação, ação física negligente durante a irrigação e o uso de soluções irrigadoras quimicamente mais agressivas configuram um preparo de canal com maior potencial de agressão aos tecidos tratados.
Em situações assim o edema tenderá a se apresentar com maior volume.
A depender disso ele ainda poderá “se acomodar” nos tecidos periapicais e não gerar dor pós-operatória. Nesses casos o paciente deverá permanecer assintomático, a não ser quando houver “provocações adicionais”, como mastigação, toques do dente antagonista…
Em outras palavras, diante dos impactos sofridos pelo dente ao exercer as suas funções ou outros estímulos, o edema sofre compressão e por sua vez comprime tecido e células sensitivas. O resultado é a dor.
São as dores provocadas.
Dor “espontânea”
Existem dois fatores geradores de dor; os externos e os internos.
Vamos lá.
Quando você faz o teste de sensibilidade pulpar ao frio, o surgimento da dor se dá pela aplicação do frio, um estímulo externo.
Quando o estímulo é removido, cessa a dor.
No entanto, quando o paciente se apresenta com alterações vasculares mais avançadas ou, pior ainda, já com sintomas bem definidos de pulpite, diante da remoção do estímulo a dor não desaparece. Ela se mantém “espontaneamente” (não está sendo provocada) graças a fatores internos.
É o que ocorre quando o paciente se queixa de dor “espontânea” ao deitar ou quando faz atividade física mais intensa. Diante do maior aporte sanguíneo em situações em que o fluxo sanguíneo está alterado, a pressão pulpar se acentua e se manifesta através da dor.
Para o paciente, é espontânea porque, de fato, ele nada fez que a justifique, tendo em vista que deitar e fazer atividade física são coisas comuns na sua vida.
Assim, quando o preparo do canal é malconduzido, com instrumentação muito traumática, irrigação feita com ação física intempestiva, de forma descuidada, com soluções irrigadoras de potencial químico agressivo, a reação inflamatória também deverá ser mais intensa.
Nessas condições o edema tenderá a ser bem maior.
Sem espaço para se acomodar nos tecidos periapicais, ele não precisa ser “provocado” para gerar dor. Pelo seu maior volume, todo o tempo estará fazendo compressão e daí virá a dor, definida como espontânea.
Há acontecimentos muito interessantes durante todo esse processo que mostram a beleza e importância da reação inflamatória, cuja discussão em detalhes não cabe aqui por não ser o objetivo deste texto.
Intencionalmente, deixei de lado e o faço também agora alguns aspectos da reação inflamatória, como por exemplo a liberação de citocinas.
Se falo em “deixar de lado” aspectos tão importantes como a participação de citocinas na reação inflamatória é tão somente por pretender, através de abordagem bem clínica, tornar mais didática a compreensão do que acontece com os tecidos periapicais após o preparo do canal.
Entretanto, é necessário entender que, seja qual for a situação (ausência de dor, dor provocada ou dor “espontânea”), haverá sempre uma reação inflamatória.
Neste momento torna-se fundamental a compreensão de que morte celular e necrose tecidual são inerentes à reação inflamatória pós ato operatório.
Assim, é de grande relevância a compreensão de que na maioria das vezes após o preparo do canal o coto pulpar deve entrar em necrose, parcial ou total.

Ora, se na maioria das vezes ocorre necrose do coto pulpar, na maioria das vezes os canais com polpa viva que tratamos ao longo de todos esses anos teriam se tornado insucessos. A literatura afirmou isso em vários momentos.

E não parece ser esse o relato dos endodontistas.
“Com relação ao chamado coto pulpar, em condições normais…”

Se morte celular e necrose tecidual são inerentes à reação inflamatória pós ato operatório e “na maioria dos casos o processo necrótico envolve todo o coto pulpar”, como diz Catanzaro Guimarães, elas, morte celular e necrose tecidual, parecem estar inseridas nas condições normais.
E aqui está a confirmação do que acabo de dizer; “…os fibroblastos jovens e outras células da região se mobilizam em direção ao coágulo e iniciam a deposição de um novo tecido, o chamado tecido de granulação”.
Dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Se um novo tecido, o chamado tecido de granulação, está sendo depositado é porque o que estava lá, o coto pulpar, não está sendo preservado.
Se ele não é preservado, não parece correto afirmar que “a reparação não se produz quando não se preserva a vitalidade do coto pulpar”.
Não lhe parece óbvio?
As contradições da literatura sempre existiram e sempre exigiram maior cautela por parte de quem a produz e sobretudo na sua interpretação, aspectos que parecem não ter merecido a devida atenção.
Por essa razão, há de se repensar algumas recomendações que têm sido feitas nos últimos tempos.
Ampliação foraminal
Uma vez que o coto pulpar vai entrar em processo de necrose, o que levaria ao insucesso do tratamento, ele deve ser removido.
Esta era a concepção que reinava; coto pulpar necrosado era sinônimo de caso perdido.
Imaginou-se inicialmente que, removendo-o, a ampliação foraminal seria necessária para que houvesse espaço físico suficiente para a invaginação tecidual e a consequente formação de um novo coto “pulpar”.
À luz do momento em que está ocorrendo o desenvolvimento radicular, é fato que o espaço físico apical apresenta grande diâmetro (rizogênese incompleta).
Por conta desses aspectos, surgiu a nova onda.
Passou-se à disseminação ampla, total e irrestrita da necessidade de se fazer ampliação foraminal. Ao mesmo tempo em que se removia o coto pulpar, criava-se o espaço necessário para a invaginação tecidual e consequente formação do novo coto.
As ondas são perversas, não têm compromisso e são bem coordenadas.
Massifica-se um determinado conceito, cria-se uma enorme corrente que a tudo e a todos arrasta, de maneira que, mesmo quem discorda ou não concorda inteiramente, fica acuado, entra e passa a fazer parte dela.
Uma vez nela, não é permitido pensar.
Ainda que a linha de raciocínio da necessidade de maior diâmetro apical para a invaginação tecidual e formação do novo coto pareça lógica, é possível que um olhar mais cuidadoso não apresente convergência com esse modo de pensar.
Como de fato aconteceu. Não se confirmou a relação de causa e efeito que se pretendeu dar ao procedimento.
Questionamentos básicos precisam de uma explicação e aqui vão pelo menos alguns deles.
- Qual lima ou quantas limas seriam necessárias para se remover o coto pulpar?
- Quantas análises, estudos de relação das limas com os forames, foram feitos para investigar isso?
- Nessas condições, em quantos casos os cotos foram de fato removidos ou simplesmente lacerados?
Não, não houve esse tipo de preocupação.
A regra era e é fazer ampliação foraminal.
Porque e como, não importa.
Finalmente, faz ou não a ampliação foraminal?
Não.
Ela é inteiramente desnecessária.
Sobre isso já falei anteriormente, particularmente na parte 2 desse texto (veja aqui).
Repito.
Ampliação foraminal nos casos de polpa viva não traz nenhum benefício ao tratamento.
Nenhum.