O que fazer com o coto pulpar? Parte 3

Por Ronaldo Souza

Esses homens maravilhosos e suas máquinas localizadoras de CDC

Esses homens maravilhosos e suas máquinas voadoras

Terminamos assim a parte 2 dessa conversa, com esse cartaz de um velho e divertido filme, que aproveito para falar do homem e suas máquinas.

Falemos antes, entretanto, de uma máquina maravilhosa e poderosíssima; o cérebro.

Estávamos falando de coto pulpar e coto periodontal.

E o coto pulpo-periodontal?

Coto pulpar''

Observe a figura acima. Imaginemos que o tecido periodontal se estende até o limite delimitado pela linha amarela; até ali teríamos então um coto periodontal. Para efeito didático, imaginemos também que ali estaríamos a 1 mm aquém do ápice radicular.

Imaginemos agora que o comprimento de trabalho (CT) fosse de 2 mm aquém do ápice radicular, muito comum para alguns profissionais, particularmente nos casos de polpa viva.

Assim, cortaríamos a polpa (sabia que até há pouco tempo preconizava-se isso, “cortar” a polpa?) um pouco mais alto, ali onde está a linha azul tracejada. Também para efeito didático, digamos que ali seja 2 mm aquém.

Teríamos então 1 mm de tecido periodontal e 1 mm de tecido pulpar.

Poderíamos chama-lo então de coto pulpo-periodontal, concorda?

Já sabemos que se o coto periodontal necrosar forma-se um novo coto, graças ao excepcional índice metabólico desse tecido.

E o que acontecerá se o 1 mm correspondente ao coto pulpar necrosar, o que segundo Catanzaro Guimarães é o mais provável?

Tendo em vista que polpa necrosada não regenera, o que acontecerá e o que fazer?

Não se preocupe, o organismo faz por você.

Aliás, deixe-me aproveitar e dizer uma coisa.

O organismo do paciente adora ele, o paciente. Todos os organismos são assim, adoram os seus “donos”.

Se é assim, tudo que você fizer para o bem do paciente vai contar com a ajuda dele.

Sabe qual é o grande problema?

É que é muito comum o endodontista atrapalhar o organismo.

Quer um exemplo?

O organismo não suporta que joguem coisa nos tecidos periapicais.

Mas você sabe como é o endodontista, né?

Se acha.

O que faz ele?

A cada obturação joga 3 quilos de material obturador lá nos tecidos periapicais.

Resultado.

O organismo vai passar horas, dias, semanas, meses, anos, se virando para eliminar aquilo.

Sabe o que é pior?

Numa grande quantidade de vezes não consegue.

Você acha que ele gosta disso?

Em outras palavras, o organismo do paciente está do seu lado, ele joga no seu time. Ele jamais vai querer lhe atrapalhar.

Portanto, não o atrapalhe.

Voltemos.

Se essa parte do tecido que corresponde à polpa necrosar, também vai se refazer, às custas do tecido… periodontal.

Isso mesmo.

É o tecido periodontal que vai se refazer e se estender, “caminhando” um pouco mais até o espaço outrora ocupado pela polpa. Formará assim um novo coto, que terá 2 mm de extensão; 1 mm que já era tecido periodontal e 1 mm que era polpa.

Assim, o novo coto terá 2 mm de extensão.

Você ainda tem alguma dúvida de que será periodontal?

Mesmo esse novo coto, sobre o qual não pode haver dúvidas de que é periodontal, foi chamado por diversos autores de coto “pulpar”. Assim, entre aspas.

Um grande equívoco.

Percebe o “poder” do tecido periodontal?

Percebe porque a Natureza (lembra que chamei assim?) é sábia?

Ela colocou ali um tecido conjuntivo fibroso para suportar os impactos que o dente sofrerá ao longo do tempo, mas deu a ele um excepcional índice metabólico, pois, ali, na porção final do canal, ele terá outra função; a de constituir o novo coto, sobre o qual é colocada a responsabilidade de promover reparo.

Como se vê, uma função nobre.

A precisão imprecisa

Apesar do uso que tem sido dado a eles, os localizadores apicais eletrônicos, como eram chamados inicialmente, vieram para reforçar o conceito de preservação do coto pulpar e as chances de se alcançar esse objetivo.

Pela diferença de impedância elétrica existente entre o tecido contido no canal dentinário (pulpar) e o do canal cementário (periodontal) e com a precisão atribuída aos localizadores, conseguiríamos identificar o momento em que ultrapassaríamos o limite CDC.

Nesse momento, os sinais auditivo e visual do localizador nos diriam; pare aqui. Daqui em diante não é mais polpa. Se não é mais polpa, não lhe cabe entrar. Saia. Este território é sagrado.

E assim o coto pulpar seria preservado.

Foi assim que foi ensinado no início.

Nessa forma de ensinar era como se tecido pulpar e periodontal estivessem configurados como na imagem abaixo, ou seja, teriam as suas fronteiras bem definidas e delimitadas. Onde termina um, começa o outro.

Mãos 1

Não é assim. O limite CDC não corresponde ao que se imaginava anteriormente.

Veja as imagens abaixo. As setas vermelhas em A e B apontam para um limite CDC e no mesmo canal as verdes apontam para outro.

Coto pulpar'''

Ainda que sejam canais observados sob microscopia eletrônica de varredura, são apresentados sob uma perspectiva bidimensional estática, tal qual uma radiografia periapical. Quantos limites mais devem existir sob a perspectiva tridimensional dinâmica?

Olhando a imagem em B, onde os limites CDC estão identificados em milímetros, surgem algumas questões:

  1. Onde se daria a passagem de tecido pulpar para periodontal, em 2,1 mm ou em 1,5 mm?
  2. Em que local ocorreria o registro de mudança de impedância entre o tecido pulpar e o periodontal acusando que ali é o limite CDC, local de parada para não traumatizar o coto pulpar; em 2,1 mm ou em 1,5 mm?
  3. Não lhe parece que os pontos de constrição (você vê só um?) não estão nem em 2,1 nem em 1,5, mas sim acima deles, já em tecido periodontal. Em outras palavras, você percebe que o ponto de constrição não está “separando” o tecido pulpar do periodontal?

Além dessas considerações, o encontro entre polpa e periodonto teria uma configuração mais próxima do que se vê na figura abaixo, onde os tecidos se entrelaçam.

Mãos 2

Haveria como registrar passagem de um tecido para o outro e estabelecer limite preciso nessas condições?

Já passou da hora de compreendermos e ensinarmos o tecido contido na porção final do canal como periodontal e não pulpar para entendermos o tratamento endodôntico.

Foi esse o grande equívoco que se cometeu ao longo de todos esses anos, equívoco que nos fez tratar o limite apical de trabalho como uma questão numérica.

Imaginar que o problema e sua consequente solução é estabelecer a quantos milímetros aquém do ápice devemos ficar é erro grosseiro.

Erro que se comete ainda nos dias de hoje.

Ficar falando, discutindo, ensinando o comprimento de trabalho em detalhes milimétricos é insistir no erro cometido no passado.

Apontando para esses aspectos, abro agora um parêntese na nossa conversa.

O Velho versus O Novo

Ao pensar em escolher um caminho, nunca esqueça:

Não há o caminho a seguir.

Insisto; se você trabalha apoiado no conceito de certo e errado, é certo que você está errado.

Não é assim.

Tudo é feito de tal maneira que a “novidade” cause grande impacto, seja ela qual for.

É preciso dizer que o “velho” não resiste ao “novo”, não importa o que isso signifique.

Dão aos instrumentos características definidoras de tratamento, protocolos infalíveis (se não deu certo foi porque você errou em alguma coisa), enfim, procedimentos que encaixotam a atividade clínica em compartimentos.

“Para isso, isso; para aquilo, aquilo; para aquilo outro… ah, aí agora é diferente, aí só com este instrumento…”

Aquela máquina maravilhosa e poderosíssima, o cérebro, sobre a qual falei no início, perde a função.

Há que oferecer muito mais além de técnica.

Exploda as caixas ou, melhor ainda, abra todas e faça o seguinte.

Como já estão cheias de instrumentos, ponha algumas coisinhas mais lá dentro; conhecimento, boas técnicas de preparo do canal, bons materiais e técnicas de obturação e, essencial, a sua inteligência e o seu bom senso.

É isso que está faltando no seu kit; você.

Não existe outra maneira de ser um bom profissional.

O resto é marketing.

A briguinha boba que vivem criando e fomentando entre o velho e o novo sai da cabeça do velho que tem pouca idade; o novo velho.

E tolo.

No cérebro dele não há espaço para o que se consolidou com o tempo (através da comprovação científica e experiência clínica) e o que está chegando para melhorar o que está consolidado.

Para ele, ou é um ou é outro.

Nem o “velho” nem o “novo” tem importância para ele, mas sim o marketing e sempre será mais fácil fazer marketing em cima do “novo”.

Vamos fechar?

A radiografia periapical representa a medição clássica para determinação do comprimento de trabalho. Os localizadores foraminais eletrônicos constituem uma nova e excelente ferramenta para ajudar ao endodontista a alcançar esse objetivo.

Assim ensino aos meus alunos.

Ninguém pode ter dúvidas da importância dos localizadores foraminais, recurso que deve fazer parte do arsenal do endodontista, entretanto, algo precisa ser entendido:

O que fazer com o coto pulpar nada tem a ver com tecnologia.

A maior prova disso parece não ser percebida.

Depois da chegada dos localizadores foraminais,

  1. descobriu-se finalmente qual é o comprimento de trabalho adotado pelos autores, professores e profissionais?
  2. qual é ele?
  3. ou ainda são adotados alguns, como 0,5 ou 1,0 ou 1,5, ou 2,0 aquém?

Provavelmente o CT mais preconizado seja de 1 mm aquém do ápice radicular, concorda comigo?

Ótimo.

Qual é o comprimento médio do canal cementário encontrado por Kuttler, para citar talvez o estudo mais clássico da literatura? 0,5 mm no paciente jovem e 0,8 mm no paciente idoso.

O que é um paciente jovem, vai de qual idade a qual idade?

O que é um paciente adulto, vai de qual idade a qual idade?

Fiquemos com os números de Kuttler.

Alguém usa 0,8 mm aquém como CT em pacientes adultos?

Ou usam 1 mm?

Essa medida foi “determinada” pelo localizador foraminal eletrônico ou foi adotada por consenso?

Vai-se ao zero e recua 1 mm.

É uma medida “coletiva”, para todos os canais.

Como poderia ser 1,5 ou 2.

Que precisão é essa?

Aí o “professor” faz 335 vídeos no YouTube.

Em todos vende tecnologia.

“… hoje ninguém mais faz endodontia sem localizador foraminal, porque ele dá 100% de precisão”.

Ninguém mais faz Endodontia sem localizador foraminal???

Cem por cento???

Por que coisas assim são ditas?

Isso é de uma tolice sem tamanho.

O que está por trás de tudo isso?

Deixa pra lá, você já sabe.

O que o endodontista precisa, isso sim, é saber que tecido está “ali dentro” do 0,5, 0,8, ou 1,0, o que seja, e em que condições ele se encontra, isto é, conhecer os tecidos com os quais lida no seu dia-a-dia.

Esse é o aspecto fundamental.

Até a próxima conversa.

O que fazer com o coto pulpar? Parte 2

Por Ronaldo Souza

Coto pulpar versus Coto periodontal

Apesar de termos vivido um momento de “regeneração pulpar”, também conhecido como revascularização pulpar, não se tem conhecimento de que polpa necrosada se revitalize.

Aliás, foi incompreensível esse momento vivido.

Revascularização

É provável que em breve trarei e comentarei esse caso, mas devo dizer duas coisas agora.

  1. a obturação nesse limite foi intencional
  2. nunca o apresentei como revascularização pulpar, por uma razão bem simples; nada a ver.

Considerando-se que polpa necrosada não se reconstitui, não recupera a sua vitalidade, seria menos sensato ainda imaginar a ocorrência desse fenômeno, revitalização, no segmento tecidual onde ela é menos celularizada e por isso menos capaz de se defender e se reparar.

Assim, o coto pulpar que entra em processo de necrose teria menor chance ainda de se refazer e promover reparo. O reparo não ocorre simplesmente porque a polpa não se regenera.

Em outras palavras, podemos dizer que polpa necrosada não se revasculariza e renasce das cinzas, apesar do recente desejo demonstrado por alguns profissionais.

Assim, seria um equívoco creditar à polpa a responsabilidade pelo reparo onde ela é menos capaz.

Entre as funções do ligamento periodontal está a de servir como um “amortecedor” para os impactos que o dente sofre ao exercer as suas funções.

Talvez por conta dessa função, o ligamento periodontal “precisa” ser um tecido mais fibroso do que celularizado.

Você já ouviu dizer que a Natureza é sábia?

Na sua sabedoria, teria a Natureza “envolvido” o dente num folículo com tecido fibroso para que os impactos sobre ele fossem minimizados?

Veja o que dizem o Prof. de Histologia Flávio Fava de Morais (um dos grandes nomes e página especial da Odontologia Brasileira) e colaboradores no capítulo Histologia do Periodonto, no livro Periodontia Clínica, de Lascala e Moussalli (1989).

Fava e o ligamento periodontal

Por que, “diferentemente dos demais tecidos fibrosos…”, foi dado ao ligamento periodontal esse excepcional índice metabólico?

Para utilizar uma expressão bastante conhecida quando se trata do ligamento periodontal, esse tecido apresenta um alto turnover, um dos mais elevados do organismo humano.

Ou seja, ao contrário da polpa, o ligamento periodontal se reconstitui, se refaz, se … revitaliza, com extrema facilidade.

Você também “arranca” o coto pulpar?

Por que você “arranca” o coto pulpar?

Porque lhe ensinaram que ele vai necrosar e necrosando deve surgir uma lesão periapical e você “perde” o caso.

Ótimo, parabéns.

Disseram também que se você fizer ampliação foraminal não só elimina o coto pulpar e se livra desse problema, como cria um espaço maior para que ocorra a invaginação do novo tecido que se forma nesse espaço criado pela ampliação. Esse tecido constitui a base do reparo.

Para facilitar a nossa conversa, trago de volta essa imagem do primeiro texto.

Coto pulpar'

Lá, eu disse que aquele tecido que está “dentro” do canal e representa o coto pulpar não é constituído por polpa, mas por tecido periodontal.

Durante o próprio tratamento o coto sofrerá agressões de natureza mecânica (instrumentação) e química (soluções irrigadoras).

Veja o que diz Catanzaro Guimarães, AS, no seu livro Patologia Básica da Cavidade Bucal (1982)

Terminada a pulpectomia, … tanto o coágulo como a faixa necrótica subjacente intensificam a reação inflamatória aguda ao longo do coto pulpar remanescente, … sendo que na maioria dos casos o processo necrótico envolve todo o coto pulpar.

Perceba que, ao contrário do que se ensinou durante muito tempo, a preservação do coto não ocorre na maioria dos casos porque o processo necrótico envolve todo o coto pulpar.

Voltemos então a aquelas duas questões com as quais terminamos o texto anterior.

  1. O fato de ser coto pulpar ou coto periodontal muda alguma coisa?
  2. A necrose daquele tecido impede o reparo?

Muda sim e muito.

Se, de fato, aquela porção final fosse polpa (coto pulpar), tendo em vista que ele necrosa na maioria dos casos seriam bem remotas as chances de haver reparo, dada a sua incapacidade de se revitalizar, de se regenerar.

Fica mais fácil agora entender porque diferentemente dos demais tecidos fibrosos, o ligamento periodontal apresenta excepcional índice metabólico”.

Sendo assim, e agora respondendo à segunda pergunta, a necrose daquele tecido não impede o reparo porque se trada do ligamento periodontal, que, graças a essa característica, se refaz e assume a responsabilidade pela reparação.

Em outras palavras, mesmo quando o processo necrótico envolve todo o coto pulpar, ele se refaz e readquire a condição de coto… periodontal

São os tecidos periodontais os responsáveis pelo reparo pós tratamento endodôntico.

Vamos lá?

Tecido necrosado não impede reparo

Foi um equívoco ensinar que o coto pulpar necrosado levaria ao insucesso.

Tecido necrosado não desempenha esse papel. Fluido tecidual estagnado também não.

É para isso que existe o sistema fagocitário.

Ao remover o tecido necrosado ele cria as condições favoráveis ao surgimento de um novo tecido.

É a presença da bactéria que muda essa perspectiva. É ela que, ao fazer do tecido necrosado e fluido tecidual estagnado nutrientes, torna-se responsável pelo fracasso do tratamento.

Há, portanto, duas alternativas de tratamento.

  1. Preservar o coto

O que acontecerá?

Perceba que não estou falando de preservação da vitalidade do coto, mas sim de preservação do coto. Estou falando da sua não remoção. Deixa-lo lá.

Deve ser lembrado que durante o preparo do canal ele sempre sofrerá agressões de natureza mecânica (instrumentação) e química (soluções irrigadoras), algo inerente ao próprio preparo.

Nessas condições, ele poderá:

  1. permanecer vivo
  2. necrosar parcialmente
  3. necrosar totalmente

Clinicamente, não temos como saber.

Diante da afirmativa de Catanzaro Guimarães de que na maioria dos casos o processo necrótico envolve todo o coto pulpar”, se isso ocorrer ele será reabsorvido e novo coto será formado.

Portanto, preservando-se o coto, se não o removermos, haverá reparo.

  1. Remover o coto

O que acontecerá?

Uma vez que ele não é preservado e sim removido, tal qual na primeira situação surgirá um novo tecido e também haverá reparo.

E agora, como ficamos?

Preservando, surgirá um novo coto.

Removendo, surgirá um novo coto.

A primeira coisa a ser feita é uma dedução.

Haverá a formação de um novo coto do mesmo jeito. Nesse sentido não há diferença.

Aquela história de “você ainda tá preocupado com coto pulpar?”, “coto pulpar tá ultrapassado” e outras coisas assim, tudo isso é…

Isso mesmo.

E esse marketing que os professores “modernos” fazem nada mais é do que… marketing.

Ah, se os auditórios e as salas de aula soubessem disso!O professor descoladoperderia o marketing.

É uma pena que auditórios e salas de aula não sejam informados sobre isso.

Sim, mas não há nenhuma diferença?

Há sim.

  1. A ampliação foraminal implica no uso de instrumentos (diâmetro/conicidade) para se conseguir uma boa ampliação. Não é incomum que pelo trauma tecidual adicional induzido aos tecidos ocorra dor pós-operatória com maior intensidade e mais frequentemente. Provavelmente por essa razão o uso de analgésicos e anti-inflamatórios tem sido bastante estimulado e utilizado para essas situações.
  1. Quando você faz ampliação foraminal e remove o coto, a qualidade da sua obturação tende a ser menor pela maior possibilidade de extravasamento de material obturador. É por conta disso que mais comumente são feitas aquelas obturações que desfilam (sob aplausos, conhecidos como curtidas, e muitos elogios) pelo facebook e instagram, onde se vê material obturador extravasando por todos os poros do paciente.

Ambas situações, ampliação foraminal e extravasamento de material obturador, constituem fatores de agressão aos tecidos envolvidos no tratamento. Não parece sensato submeter o paciente à maior possibilidade dessas ocorrências em nome de um procedimento que não lhe traz benefícios.

Não entendeu?

Vou repetir.

Ampliação foraminal e extravasamento de material obturador não trazem nenhum benefício ao tratamento.

Nenhum.

Além disso, a possibilidade de dor pós-operatória mais intensa e mais frequente e a recorrência a analgésicos e anti-inflamatórios podem levantar suspeitas sobre a competência do profissional quando comparado a outros, fato constatável no dia-a-dia.

Não se trata de “medo” da dor, como alguns gostam de alardear, inclusive em videoaulas no YouTube. Recomenda-se que não nos tornemos pobres demais nas nossas argumentações.

Esses homens maravilhosos e suas máquinas localizadoras de limite CDC

Esses homens maravilhosos e suas máquinas voadoras

Agora?

Não, depois.

A história de um trabalho. Final

 Rubem Alves'

Da série Histórias que precisam ser contadas. E serão

Por Ronaldo Souza

Este é o final deste texto, que foi dividido em 4 partes.

Sugiro que você leia as primeiras partes antes de ler esta, para entender melhor as razões pelas quais ele foi escrito (1ª parte aqui, 2ª parte aqui e 3ª parte aqui) ou leia novamente (se já leu), até pelo tempo em que foram escritas e postadas.

Como disse no final do texto anterior, deixei a publicação do artigo de lado, tratei de “esquecer”.

Não posso pautar a vida por episódios como esse.

Apesar do “desapontamento” com todo o episódio e a não publicação, apesar da importância da Endodontia e do que ela representa para mim, há algo maior, bem maior.

E é na direção desse algo maior que está focada a minha vida.

Já disse aqui que o encontro marcado que tenho é comigo mesmo e para mim o que mais importa é o caminho que tenho que seguir para chegar lá e, ao final de tudo, bater um bom papo comigo mesmo.

Era 2012.

A publicação daquele artigo ficaria para um dia qualquer.

Ou, quem sabe, para nunca mais.

Ocorre que ao final do dia 20 de junho de 2017, cinco anos depois, pouco antes da meia noite, cansado, resolvi ler um artigo que estava guardado me esperando.

Ao ler, vi que ali estava algo que refletia o que eu já pensava há muito tempo, só que agora escrito por alguém que conhece muito bem o assunto.

Depois de ler, fui dormir.

A mente, porém, inquieta, não estava mais ali, estava longe, viajando.

Viagem que uma vez iniciada não se sabe quando termina.

São as viagens da imaginação, à qual, segundo o comercial de uma bebida energética, deve-se dar asas.

A imaginação não deveria precisar de artifícios químicos para ganhar asas.

Às 02:30 da madrugada de 21 de junho eu ainda não tinha conseguido dormir.

A viagem se tornara longa.

Contei com o cansaço.

Ele veio.

Dormi.

Mas não por muito tempo.

Às 06:00 já estava enviando o artigo para dois grandes amigos, os professores Pécora e Figueiredo, dizendo; vejam que artigo interessante.

O título é “A miopia dos indicadores bibliométricos”, da professora Lilian Nassi-Calò.

Escrevi o texto “Qual é o nosso real tamanho?” e postei junto com ele. Se desejar, clique aqui, leia os dois com atenção e depois volte.

Trago alguns trechos dele:

“Isso levou os autores a concluir que o sistema atual de avaliação da pesquisa subestima trabalhos que possivelmente terão alto impacto na avaliação em longo prazo. É importante também ressaltar que artigos que se revelaram de alto impacto no decorrer do tempo foram publicados em periódicos de menor FI”.

“Quanto mais estamos ligados a indicadores bibliométricos de curto prazo, mais longe estamos de recompensar a pesquisa com alto potencial de ir além das fronteiras – e aqueles que o fazem”.

“Deveria causar surpresa o fato de que o uso de um indicador torne elegível um ou outro autor pelo fato de que tenha publicado em um periódico de FI mais alto, de que é mais importante saber onde ele publicou do que ler seu trabalho”.

“Se realmente a comunidade acadêmica deseja criar avaliações mais objetivas, todos aqueles envolvidos – desde pesquisadores em início de carreira até os presidentes das agências de fomento – devem usar indicadores qualitativos e quantitativos de forma responsável […] de forma a evitar o uso de indicadores que penalize os pesquisadores e projetos que tem o maior potencial para romper fronteiras”.

Fronteiras.

Talvez seja essa a grande questão.

Quantos trabalhos nos últimos tempos romperam as fronteiras do saber na Endodontia e, sobretudo, as da imaginação?

Aliás, quantos trabalhos mexeram com a imaginação nos últimos tempos na Endodontia?

Perdemos a noção de que bem antes do saber, na mesma rua mora a imaginação.

“A imaginação é mais importante do que o conhecimento”.
Einstein

Mesmo sendo Einstein, e acho que só mesmo ele para dizer algo assim, imagino o desconforto que essa frase gerou nos meios acadêmicos, tão doutores são os seus doutores!

Direto ao assunto

Agora, numa linguagem bem simples, bem ao estilo que adoto aqui no site, vamos direto ao assunto.

Quem deve ser fator de impacto, o periódico ou o artigo?

Quem quebra as barreiras?

Quem derruba os paradigmas?

O editor/revisor ou o autor?

Quem canta mais afinado, o urubu ou o sabiá?

Aliás, urubu canta?

Deixemos de lado as distorções e inversões e caminhemos.

De preferência, cantando como um sabiá.

Fiz este questionamento no texto anterior:

Uma vez que uma hipótese é levantada, a partir daí é que são efetuadas as etapas que construirão as evidências.

Como podem estas existirem se a simples possibilidade de discussão é negada desde o início por professores engessados que não aceitam o que lhes contradiz?

Não, não vou procurar saber onde estão a inteligência e o bom senso desse tipo de professor.

A construção de uma linha de raciocínio que se opõe ao estabelecido tende a criar muitos questionamentos. A possibilidade de uma nova concepção gera rejeições, às vezes fortes, que podem surgir por diversas razões.

É compreensível a resistência que se oferece diante do desconhecido, mas negar a discussão não parece combinar com a tão enaltecida nobre missão do professor.

No primeiro texto deste tema, eu disse; Soltei então todas as rédeas que poderiam conter a minha intuição, deixei o bom senso me conduzir por onde ele bem entendesse e liberei todas as asas da minha imaginação.

Acompanhe comigo o caso clínico abaixo. Todos os canais do primeiro molar inferior esquerdo serão retratados, mas vamos destacar os canais mesiais, onde há um instrumento fraturado no terço apical.

Fig. 1'

A seta preta em A mostra o final da obturação, que não está bem feita. As setas brancas apontam para a lesão periapical. Observe como na radiografia da imagem em B (2 anos e oito meses depois), a obturação está bem “pior”, com grande espaço vazio que não existia (seta amarela) e as setas brancas mostram que a lesão periapical aumentou consideravelmente de tamanho. O instrumento fraturado aparece agora bem destacado.

De acordo com a literatura endodôntica, estes são indícios claros de que, por não ter sido possível fazer o travamento do cone de guta percha por causa do instrumento fraturado, não houve vedamento hermético. Não havendo vedamento hermético, ocorreu infiltração de fluidos teciduais e por isso a parte solúvel da obturação, o cimento, foi solubilizado e “desapareceu” do canal. Por essa razão, a obturação agora se mostra com muito mais falhas na imagem radiográfica. Pela mesma razão, a lesão periapical teria aumentado (setas brancas em B).

Fig. 2

Em C já estou ultrapassando o instrumento fraturado com uma lima 08 para fazer a instrumentação do canal cementário, o que pode ser observado melhor em D, graças ao zoom da porção final da raiz.

Devo fazer a ressalva de que após a instrumentação dos canais foi feita medicação intracanal com hidróxido de cálcio, como faço e preconizo em todos os casos de lesão periapical.

Fig. 5

Em E está sendo feita a prova dos cones de guta percha para a obturação. Perceba que os cones dos canais mesiais “alcançam” o instrumento fraturado. Na verdade vão um pouco além e se posicionam ao lado, no início da fratura (seta preta). Ali, juntamente com o cimento, poderia promover um bom selamento, ainda que prejudicado pela presença do instrumento fraturado. No entanto, intencionalmente, a obturação não será feita naquele limite, mas nos limites apontados pela seta amarela em F.

Por que fiz isso?

Se a literatura diz que o fracasso do tratamento endodôntico se deve à infiltração de fluidos teciduais nos espaços vazios deixados pelas falhas da obturação e a consequente ausência de vedamento hermético (figuras A e B), resolvi “convidar” os fluidos a penetrarem no canal. Se essa é a questão, não há nenhuma chance de reparo, pois agora o espaço vazio intencionalmente deixado é muito maior, quando comparado ao da figura A (seta preta).

Fig. 4

Compare a imagem da figura G (dia em que os canais foram obturados) com a imagem da radiografia de acompanhamento de 2 anos depois (H). Não pode haver dúvidas quanto ao reparo da lesão periapical.

Quanto a essa abordagem do caso clínico apresentado acima, deixemos bem claro o seguinte.

Não estou propondo obturações desse tipo. A obturação precisa, deve e tem que ser feita com os mesmos cuidados de sempre e não será aqui que esgotaremos esse assunto. Trata-se simplesmente de chamar a atenção para vários aspectos do tratamento endodôntico, entre os quais estão:

  1. Travamento do cone de guta percha não é sinônimo de vedamento hermético
  2. Vedamento hermético proporcionado pela obturação, qualquer que seja a técnica, não existe
  3. A obturação não é o fator determinante do reparo

O fator determinante do reparo em Endodontia é o preparo do canal

Certamente, muitas dúvidas ficarão no ar.

É inevitável e ao mesmo tempo intencional.

Pretendo fazer com que você reflita sobre a Endodontia. É a única maneira de se fortalecer e não se deixar enganar por tanta coisa que estão “ensinando” por aí.

Aqui pra nós, que ninguém nos ouça; faz algum sentido falar nessa bobagem que chamam de surplus?

Como já escrevi aqui, “surplus” é embuste em inglês.

Faz algum sentido fazer obturações como essas que você vê abaixo e, pior ainda, ensinar a fazer isso?

Surplus'''

Não pode existir tolice maior do que isso.

Onde podemos enquadrar essa maneira de fazer Endodontia?

No mais absurdo descompromisso com as coisas sérias ou no desconhecimento dos princípios mais elementares das ciências médicas?

Ou nos dois?

Não tenho nenhuma dúvida de que voltaremos a esse tema muitas outras vezes, mas termina aqui a série que chamei de “A história de um trabalho”.

Termina com a recente publicação do trabalho relatado nesses ‘4 capítulos’ de “A história de um trabalho”

O caso clínico apresentado e outros foram publicados agora em maio de 2018, no Endodontic Practice.

Relationship between the apical limit of root canal filling and repair

São 20 casos clínicos, dos quais 10 são apresentados no artigo.

Como falei, são todos do meu consultório, realizados entre 1987 e 1996 (10 anos), com tempo de acompanhamento de até 21 anos e com tomografia de alguns deles. O último acompanhamento foi feito em 2008.

Quando vi o material que tinha nas mãos (aí já era professor), resolvi que um dia sentaria para escrever sobre ele.

Sem pressa, como também já falei, só comecei a escrever enter 2010-2011 e se desenrolou então toda essa “história” que contei aqui.

Por tudo que relatei, no final do ano passado resolvi voltar a “pensar” na publicação.

Dei a ela um novo rumo e aí escolhi o Endodontic Practice, uma revista inglesa bem clínica.

Achei que devia contar a você.

Em virtude do que tenho visto ultimamente, essa conversa certamente não morre aqui.

O Professor Descolado

Professor descolado''

Por Jean Pierre Chauvin

“[…] ao descobrir-me ingênuo, comecei a tornar-me crítico” (Paulo Freire)1

“[…] o esclarecimento abdicou de sua própria realização” (Theodor Adorno & Max Horkheimer)2

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Se há uma figura capaz de cair mais facilmente nas graças do alunado (e dos “gestores”) é a do “professor descolado”. Você já terá cruzado com um destes. Ele conhece “tudo” sobre as “novas mídias”; fala “de igual para igual” com os estudantes; reproduz os pseudovalores do empresariado. A linguagem é vazia, mas up to date: ele é o “líder” e os alunos são eufemisticamente chamados de “colaboradores”. Com um toque de condão, a “turma” vira “equipe”.

Esqueça o sócio construtivismo ou a hipótese mais realista, freiriana, que pressupõe a escuta pelo educador (do que aporta e diz o aluno) e a mediação do conhecimento para o aluno (pelo educador). A pedagogia do “descolado” “inova” no que Paulo Freire disse, sem nunca tê-lo lido: “atualiza” (mas nunca revoluciona, é claro) o teor do que nosso maior educador defendia.

Mas, alto lá! Engana-se quem acredita que o “professor descolado” limita-se aos níveis fundamental e médio. Ele está, há tempos, nas melhores universidades do país. Aprendeu, — desde as primeiras reuniões estratégicas para “captar” matriculados — que o estudante é cliente e que, para assegurar o emprego é preciso manter a melhor relação possível com eles.

O ciclo é vicioso e perverso, mas, a julgar pelo teor dos comerciais que circulam na televisão, no rádio e na internet, é a Faculdade que deve agradar ao Mercado… Fico a me perguntar: ok; mas, se o mercado cooptar a palavra daqueles que refletem, onde, como, por quem, com quem e para quem o pensamento será produzido? Qual será o seu lugar – supondo-se a aliança “benéfica” entre pragmatismo imediato e formação plena?

**

Porém, faça reparo. O “professor descolado” não se confunde com o Sir Mark Thackeray, de Ao Mestre com Carinho (1967), nem com o Professor John Keating, de Sociedade dos Poetas Mortos (1989), tampouco com Merlí Bergeron, da série Merlí (2015-2018). Diferentemente das personagens interpretadas nas telas, o “professor descolado” confunde “revolução” nos métodos de ensino com subserviência aos seus estudantes.

O saldo é que os papéis de professor e aluno se confundem. Não se peça a um estudante que tenha mais discernimento que seus mestres… Ah, bem, esqueci-me de que a palavra “mestre” foi praticamente expurgada da Educação formal. Mestre, mesmo, só se pertencer à ordem dos Jedi, como defende a dita “cultura” geek.

***

A questão ganha maior gravidade, se considerarmos outra acepção de “descolamento”. Refiro-me ao sujeito que, por algum motivo, continua a confundir a dignidade do seu ofício com a atitude arrogante. Neste segundo caso, o “professor descolado” age em descompasso com o mundo que o cerca.

Isso não quer dizer que ignore as mídias sociais, os novos suportes e tecnologias. Significa que, precarizado financeiramente, destituído de seu lugar honroso, dos “bons tempos” de cátedra, o professor lança mão de recursos toscos, de modo a ser percebido como sujeito vetusto, sério, repleto de saberes e domínios sobre os seus alunos.

Na universidade pública (que ainda tem algum prestígio, neste país) é bastante comum topar com o “professor descolado nível 2”. É aquele sujeito que se recusa a almoçar em qualquer lugar, vestir-se sem ostentação e passar mais de seis meses sem viajar – de preferência para o exterior.

Embora tenha incorporado o discurso da modernização e se diga deslumbrado pelas novas tecnologias, discorre fragmentariamente sobre os temas da “sua” aula; tem visível dificuldade para falar de algo não contemplado por “sua” tese de doutorado e costuma agir de maneira incoerente com relação ao que declara durante o horário de aula.

A essa turma de “professores descolados”, interessa-lhe destacar-se socialmente. Seu representante típico é aquele que não se considera autoritário feito um big boss, embora recorra aos alunos para suplementar a “sua” produção pífia. É aquele que anseia pelas formas de distinção social, nem que para isso precise inventar viagens que não fez e simule participar de eventos para os quais não foi convidado.

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O “descolado” da primeira espécie corresponde ao que Umberto Eco chamava de sujeito “integrado” ao sistema4. Ele não ensina a refletir; molda seus alunos para que atendam às expectativas do famigerado Mercado. O “descolado” da segunda espécie corresponde ao que Pierre Bourdieu chamava de homos academicus5 – vive em busca de índices de distinção, pois incorporou o conceito de “capital cultural”.

Por exemplo, ele acredita que não responder a e-mails enviados pelos alunos (inclusive os mais interessados) pode valorizar o “seu” passe e estimular maior respeito por parte de seus futuros pupilos.

Nem confundir as tintas, nem criar obstáculos para se relacionar com os demais. A primeira providência do professor universitário é declarar-se parte do povo (e não seu guia iluminado, capaz de conduzir as massas pelos desvãos da cegueira). Assumindo-se desta forma será mais fácil sentir a dor dos outros e desejar fazer algo para além dos muros da muy douta academia.

Alguém precisa avisá-lo de que a era do Iluminismo terminou mais ou menos entre os séculos XVIII e XIX.

Mas, porventura esse lembrete não seja suficiente, sugiro que o “deslocado” (re)leia A Dialética do Esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer. E, se isso não bastar, recomendo outro alvitre: perceber o seu lugar e o do outro, na luta contra o lucro — instituído, pela menor parcela da sociedade, como razão da existência. “Valor” absoluto e universal.

____________________

1. Pedagogia do Oprimido. 64a ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017, p. 32.

2. Dialética do Esclarecimento. 1a reimp. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 45.

3. Homo Academicus. Trad. Ariel Dilon. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008, p. 56.

4. Apocalípticos e Integrados. 6a ed.; 3a reimp. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2008.

5. Op. Cit.

O que fazer com o coto pulpar?

Coto pulpar

Por Ronaldo Souza

No princípio, era a Polpa.

Nela, o Coto Pulpar.

Sagrado, intocável.

Todas as técnicas de instrumentação, soluções irrigadoras e materiais obturadores lhe deviam reverências.

Da sua sobrevivência dependiam os endodontistas.

Surgiram então os deuses do olimpo.

Fizeram-se novas leis e tratados.

Rasgando o velho testamento, disseram os deuses:

“O coto pulpar não serve para nada”.

Arranquem!

Chamemos de Natureza o universo que compõe toda a estrutura fisiobiológica do corpo humano.

Ela, a Natureza, mais uma vez, falhara ao criar um tecido que não tem função.

Um peso na vida do endodontista.

A Natureza é assim, cheia de falhas.

Mas, ainda bem que existe o endodontista que, na sua humildade, mais uma vez estava ali, pronto para corrigir os erros dela.

O endodontista gosta desse papel de corretor da Natureza que se atribui e desempenha com frequência.

Os tecidos periapicais, por exemplo, como qualquer tecido do corpo humano não gostam de ser agredidos.

O endodontista, entretanto, na sua onisciência, não concorda com essa fixação tola de preocupação com a fisiologia tecidual.

Diante, por exemplo, da recomendação de se evitar extravasamentos de materiais obturadores para os tecidos periapicais, pela reconhecida agressão que isso causa aos tecidos, os deuses estabeleceram que não só podiam como deviam promover esses extravasamentos.

Assim foi dito, assim tem sido feito.

Surplus'''

Não se tem conhecimento de uma agressão desse porte intencionalmente provocada em qualquer outra área da Saúde.

O que haveria por trás disso?

Os pastores dessa nova seita saíram então pregando no Facebook e Instagram, seus templos prediletos, e mesmo em salas de aula.

E assim surgiu o novo testamento.

Que entre outras coisas decretou a extinção do coto pulpar.

E nós, pobres mortais, como ficamos?

Com o velho ou o novo testamento?

Ou criamos outro?

O sagrado coto pulpar

Nos primórdios, contínuas modificações ocorrem quando a papila dental vai se transformando em polpa.

Esta, ainda jovem, vai se modificando no seu ser e definindo suas características.

Um passeio por ela nos mostrará que nas suas porções mais coronárias ela é mais celularizada, característica que vai perdendo à medida que caminhamos em direção ao terço apical, onde é menos celularizada.

É justamente ali que fica o coto pulpar.

Partindo da premissa de que tecidos menos celularizados apresentam menor potencial de defesa e reparo, é ali, no terço apical, onde a polpa se mostra mais vulnerável a ataques e agressões.

Podemos deduzir então que o coto pulpar é a porção tecidual mais frágil da polpa, com menor potencial de defesa e reparo.

Sendo assim, as agressões mecânicas e ou químicas inerentes ao tratamento endodôntico poderiam leva-lo à necrose.

Coto pulpar necrosado era sinônimo de fracasso do tratamento.

Tão frágil, tornou-se intocável, sagrado.

Por outro lado, a sua preservação era garantia de sucesso do tratamento endodôntico.

“A reparação não se produz quando não se preserva a vitalidade do coto pulpar”.
Mario Leonardo

Estabeleceu-se então que a preservação da vitalidade do coto pulpar era compromisso obrigatório do endodontista e razão do sucesso do tratamento endodôntico.

O famigerado coto pulpar

Se podemos deduzir que o coto pulpar é a porção tecidual mais frágil da polpa, com menores chances de reparar, por que então preserva-lo, correr os riscos de perde-lo por necrose e, como consequência, perdermos o caso?

Não lhe parece lógico o questionamento?

Esse foi o argumento, quem sabe o mais forte, para que fosse condenado ao extermínio.

Surgiam ali os exterminadores do futuro.

O do coto pulpar.

Aquela Endodontia que falava da importância do coto pulpar ia sendo assim sepultada, sem honras e glória, como costumam fazer os moderninhos*.

Aceito de imediato como um grande avanço, o movimento dos moderninhos da Endodontia se alastrou pelo país.

Falar de preservação do coto pulpar era ser taxado de ultrapassado.

A comunidade endodôntica passou então a ser dividida em duas categorias; os adeptos da preservação do coto pulpar e os defensores do seu extermínio.

As pessoas gostam de criar essas divisões. Sentem-se valorizadas e precisam disso.

É compreensível, são carências e assim precisam ser entendidas.

Além disso, no caso da Endodontia, vira peça de marketing.

“Ah, você ainda é da época do coto pulpar”!!!

Aí acham que marcaram aquele profissional com as cores do inferno e ele agora “tá desgraçado”, como diz Ariano Suassuna.

Ah, você ainda é da época do hidróxido de cálcio”!

Lembra?

A mesma coisa.

O que é coto pulpar?

É comum aprendermos em cima do que é certo ou errado.

Rotulam-se como modernos e avançados e aí criam coisas “modernas e avançadas”, claro.

Mas, com a cabeça no passado, dogmatizam; ou é assim ou está errado.

Se você trabalha apoiado no conceito de certo e errado, é certo que você está errado.

Ensina-se a técnica de instrumentação, indicam-se os instrumentos que devem ser comprados, determinam-se a técnica e materiais para obturar o canal, protocolos são definidos e tudo está resolvido.

Não deu certo?

Você fez alguma coisa errada.

Não tem outra.

Venha comigo.

O coto pulpar não é coto pulpar.

Alguém pode dizer; ah, já sabemos disso.

Não parece.

A imagem acima no começo do texto foi gentilmente cedida pelo Prof. Roberto Holland há muitos anos, final dos anos 80, quando eu ainda nem sonhava em ser professor. Guardo-a com carinho pela gentileza de alguém especial, o professor Holland.

Trata-se do terço apical de um canal evidenciando o coto pulpar. Fiz nela algumas sinalizações para facilitar a compreensão do texto, como você pode ver abaixo.

Coto pulpar'

Os círculos amarelos dizem que ali estamos em tecidos que não “pertencem” ao canal, estão fora dele. São tecidos periodontais, mais precisamente, ligamento periodontal.

O círculo verde está “dentro” do canal, portanto, aquele tecido “faz parte” dele.

Constitui o coto pulpar. Por representar a porção mais frágil, indefesa e apresentar baixa capacidade de reparo, como ficou estabelecido deve ser removido.

Perceba, porém, que esse tecido é muito parecido com aquele que está fora, o dos círculos amarelos. A semelhança é muito grande, pode-se dizer que é igual.

Na verdade, não é só igual, é o mesmo, exatamente o mesmo. É o tecido periodontal que invagina para o canal.

Em outras palavras, aquele tecido que está “dentro” do canal e representa o coto pulpar não é constituído por polpa, mas por tecido periodontal.

Sendo assim, quando se diz que o coto pulpar necrosou, na verdade quem necrosou foi o coto periodontal.

Ou estou errado por chamar de coto periodontal um remanescente tecidual constituído de tecido periodontal?

Ora, professor, digamos que seja, mas que importância isso tem? Se vai necrosar, terá que ser removido do mesmo jeito.

Será?

Podemos colocar da seguinte forma.

  1. O fato de ser coto pulpar ou coto periodontal muda alguma coisa?
  2. A necrose daquele tecido impede o reparo?

Veremos.

A expressão moderninhos foi usada neste texto para não confundir com os modernistas do movimento cultural conhecido como Modernismo no Brasil, cujo marco inicial foi a Semana de Arte Moderna, em 1922. Absolutamente nada a ver em termos de horizontes, postura e proposta.

O teclado da minha mente

Cabeça quente

Por Ronaldo Souza

Como é bom sentar e ver o tempo passar.

Como é bom ter tempo para ver o tempo passar e observar.

Ver e ouvir.

Diante de tanta coisa, como é bom aprender.

Mas, por que dói?

Por que os anos não se tornaram bons conselheiros e acalmaram meus pensamentos?

Ao contrário, fizeram-me ver.

Nada pior.

“Se tivesses olhos para ver o que sou forçado a ver todos os dias, também quererias ficar cego”.
José Saramago

Por que fizeram isso comigo?

Nomes, gestos e atos que passam repetidas vezes à minha frente?

Que desfile estranho e incômodo é esse?

O que quer me dizer?

Os nomes surgem nas teclas do computador como que uma corrente que arrasta a tudo e a todos.

Uma corrente, porém, contida.

Por que, ao contrário das correntes, que tudo arrastam e destroem, essa me prende e me faz passivo?

Correntes e correntes.

Que arrastam e que acorrentam.

Oh, Deus, por quanto tempo ainda terei que suportar a inércia que impede o livre movimento das minhas mãos na tentativa de expressar o que a minha mente liberta e reprime?

Por que essa tortura?

Quando se acenderá aquela ínfima fagulha que fará explodir o meu cérebro, libertando-o dos grilhões da convivência profissional?

Quando finalmente terei a coragem para denunciar farsa e farsantes que se auto afirmam diante dos meus olhos?

Que dizem o que se quer ouvir.

Evangelistas do óbvio.

Doutrinadores.

Que, pequenos, fazem alunos do seu tamanho.

Eles estão aqui, do meu lado!

Basta que eu dê dois passos.

Oh céus, oh vida!

“Yuppies”

Yuppie''

Por Ronaldo Souza

Outro dia assisti a um belo debate sobre Evidências Científicas em Medicina.

Todos médicos, eram três professores; um baiano, um sergipano e um terceiro que prefiro não dizer o estado de origem.

Nada contra ele e muito menos seu estado, pelo contrário, me pareceu também competente, mas com um detalhe sobre o qual falarei mais tarde e por isso prefiro preservar sua identificação. Direi apenas que é “lá do Sul”, jeito de dizer de alguns quando querem falar de alguém que pode ser tanto do Sul quanto do Sudeste. Assim, você que está me lendo não terá ideia de onde realmente ele é.

Sem o dom da comunicação ao ponto de destacá-lo na apresentação, o professor de Sergipe esteve muito bem, pela competência, conhecimento do tema e abordagem que fez. Muito interessante.

Digo isso porque o professor da Bahia, que eu não conhecia, este sim, foi simplesmente brilhante.

Conhecedor do assunto, domínio da palavra, grande fluência, palestrante raro.

Via-se ali um professor de muita qualidade, dando uma bela aula e com respostas objetivas e bem colocadas durante o debate.

Outra coisa também me chamou a atenção; o real compromisso com o tema.

A competência, compromisso e fidelidade ao tema foram suficientes para que ele fosse o grande destaque, mostrando toda sua independência ao atacar pontos importantes que precisavam ser apontados. Sem qualquer tipo de vínculo que não fosse com a Medicina.

O “sulista”, insisto, também mostrando conhecimento do assunto, teve uma boa participação.

Mas tudo nele cheirava a preocupação em se mostrar “moderno”.

Para entender bem esse moderno, recorro a uma expressão em inglês; up to date.

Interessante, não? Para me fazer entender melhor em português, recorro ao inglês.

Aliás, que ele usou e abusou.

Foi muito “up to date” pra lá, “odds ratio” e outras expressões pra cá!

Sabe o cara moderninho?

Ele me fez lembrar de um tipo que surgiu ali pelos anos 80 e ganhou muito destaque, sendo motivo de muitas reportagens e capas de revistas importantes, aqui e fora do Brasil.

O “yuppie”.

Vamos ao Wikipédia.

“Yuppie é uma derivação da sigla “YUP”, expressão inglesa que significa “Young Urban Professional”, ou seja, Jovem Profissional Urbano.

É um termo usado para se referir a jovens profissionais entre os 20 e os 40 anos de idade, geralmente de situação financeira intermediária entre a classe média e a classe alta.

Os yuppies em geral possuem formação universitária, trabalham em suas profissões de formação e seguem as últimas tendências da moda. O termo também passou a ser utilizado no Brasil e em Portugal sem tradução, e com o mesmo significado adotado na língua inglesa”.

Em primeiro lugar, pode estender mais a faixa etária, vai além dos quarenta e pode até surpreender no seu alcance.

Uma expressão (gíria) também utilizada para esse tipo de profissional é “Ambitious Young Professional”, ou seja, Jovem Profissional Ambicioso.

A ambição é enorme e nada a detém.

Passam por cima de qualquer coisa.

Objetivo!

Notoriedade.

Ambas expressões ganharam conotação pejorativa. Seria difícil evitar que isso acontecesse.

Para muitos deles, a forma será sempre mais importante do que o conteúdo e não é incomum que sirva para disfarçar a ausência deste.

O conteúdo, quando existe, costuma ser para dourar a pílula, dar-lhe mais colorido. O colorido chama mais a atenção e põe mais em destaque.

Causar.

Este é o lema.

Tendo surgido ali pelos anos 80, os yuppies não se foram, apesar de assim às vezes parecer.

Continuam por aí compondo alguns segmentos sociais.

E por falar em Clorexidina…

Recebi esse trabalho do Prof. Rielson Cardoso, achei interessante e por isso trouxe para vocês.

Clorexidina

A “U.S. Food and Drug Administration (FDA)”, por meio do Comunicado de Segurança de Medicamentos (“FDA Drug Safety Communication”), alerta sobre reações alérgicas raras, porém graves, com o gluconato de clorexidina utilizado como antisséptico na pele (FDA, 2017).

O Comunicado da FDA alerta que raras, porém graves reações alérgicas foram notificadas divido à ampla utilização de produtos contento o gluconato de clorexidina para antissepsia da pele, sendo que o número de relatos de reações alérgicas graves a esses produtos aumentou nos últimos anos (FDA, 2017).

Nos Estados Unidos da América do Norte, os enxaguatórios bucais contendo gluconato de clorexidina já contêm aviso sobre a possibilidade de reações alérgicas graves em seus rótulos, mas os antissépticos de pele, ainda não apresentam tal notificação de alerta (FDA, 2017).

O referido Comunicado da FDA sugere que os profissionais de saúde devam sempre perguntar aos pacientes se eles já tiveram uma reação alérgica a qualquer antisséptico antes de [utilizar], recomendar ou prescrever um produto contento gluconato de clorexidina, aconselhando aos pacientes a procurar atendimento médico imediato se sentirem algum sintoma de reação alérgica ao usar o produto. Nos casos cuja reação alérgica prévia foi informada pelo paciente, a equipe de saúde deve considerar o uso de antissépticos alternativos (vide “FDA Drug Safety Communication”).

A FDA, por meio do seu comunicado, também orienta aos pacientes e consumidores que apresentarem sinais e sintomas de reação alérgica grave, que eles devam interromper o uso do produto que contém gluconato de clorexidina e procurar atendimento médico imediatamente. Ainda segundo o Comunicado da FDA, os sinais e sintomas de reação alérgica grave seriam os seguintes: chiado ou dificuldade para respirar, inchaço do rosto, urticária que pode progredir rapidamente para sintomas mais graves, erupção grave, ou choque, que é uma condição com risco à vida que ocorre quando o corpo não está recebendo fluxo sanguíneo suficiente.

Referências

FDA Drug Safety Communication: FDA warns about rare but serious allergic reactions with the skin antiseptic chlorhexidine gluconate. 2017. Disponível em https://www.fda.gov/Drugs/DrugSafety/ucm530975.htm. Acesso em: 25 jul.  2018.

FDA Drug Safety Communication: FDA warns about rare but serious allergic reactions with the skin antiseptic chlorhexidine gluconate. 2017. Disponível em https://www.fda.gov/downloads/Drugs/DrugSafety/UCM539059.pdf. Acesso em: 25  jul. 2018.

A história de um trabalho. 3ª parte

Nietzsche

Da série Histórias que precisam ser contadas. E serão

Por Ronaldo Souza

Sob o título Quando as evidências não estão evidentes, abordei em sete artigos aqui no site a questão das evidências científicas que falei no texto A história de um trabalho. 2ª parte.

Veja o que eu disse no Quando as evidências não estão evidentes 3.

Não parece elementar que toda nova proposta, toda nova ideia, toda nova concepção, todo novo instrumento e toda nova técnica surjam sem evidências que as sustentem, mas que surgirão à medida que se aceite e se estude a ideia do novo?

Afinal, novo é o que ainda não existe, está surgindo.

De modo simples e direto, como surgem as evidências?

Todas ao mesmo tempo?

Como surge a primeira?

Uma vez que uma hipótese é levantada, a partir daí é que são efetuadas as etapas que construirão as evidências.

Como podem estas existirem se a simples possibilidade de discussão é negada desde o início por professores engessados que não aceitam o que lhes contradiz?

Não, não vou procurar saber onde estão a inteligência e o bom senso desse tipo de professor.

Não podiam ser diferentes a perplexidade e a reação do professor Pécora diante do argumento daquele professor quanto à não existência de evidências para negar aquela nova concepção que acabara de ser colocada em discussão.

Pensar é Transgredir

Se todos pensam da mesma maneira e ninguém propôs qualquer tipo de mudança, como podem existir evidências sobre a nova concepção que está sendo proposta?

Como podem existir evidências sobre algo em que ninguém tinha pensado até então?

Como podem existir evidências sobre o que ninguém viu ou pensou, o que ainda está por surgir?

Como moderador do debate me arrepiei com aquela argumentação.

Era 2009.

Agosto.

Aquela argumentação não poderia partir de quem partiu, pelo menos pelo que se imaginava que ele fosse.

Fiquei chocado.

Just my two cents (Ariano Suassuna há de me perdoar).

Pensando fora da caixa

Venha comigo.

Existem inúmeras patologias com as quais a Medicina tem que lidar. A depender de com qual o médico lida a abordagem poderá ser diferente.

Independentemente desse aspecto, existe um conhecimento que se tornou um axioma em Medicina:

“Remova a causa que cessa o efeito”.

Em outras palavras, ainda que existam diversas patologias que exigem tratamentos específicos e diferentes abordagens cirúrgicas, a Medicina estabelece que, independente de tudo isso, os tratamentos específicos e as diferentes abordagens cirúrgicas têm um objetivo; remover a causa.

Os diversos aspectos de uma cirurgia devem ser analisados, estudados e reconhecidos na sua importância.

Por exemplo.

Cirurgias que envolvem mais marcadamente a estética do paciente fazem com que, além de todos os outros passos, algo simples como a sutura ganhe grande relevância.

Afinal, a depender de como e com que materiais ela é realizada, a cicatrização e, portanto, a estética do paciente, poderão ser comprometidas.

Não consta, porém, que por conta desse fato a Medicina credite a cura do paciente à sutura.

Assim, mesmo considerando uma cirurgia cujo componente estético adquire grande relevância, é, no mínimo, muito pouco provável que a Medicina estabeleça que a qualidade da sutura seja o fator determinante da cura da patologia.

A sutura não pode ser o fator determinante do sucesso.

A sutura não é o fator determinante do sucesso.

Já fez a analogia?

Não?

Então façamos juntos.

Diferentemente da Medicina, a Endodontia lida basicamente com uma patologia; a periodontite apical.

Por que haveriam de ser justamente elas, a Endodontia e a periodontite apical, as únicas especialidade e patologia respectivamente em que o axioma da área da saúde, “remova a causa que cessa o efeito”, não seria verdadeiro?

Por que a obturação do canal (a sutura) seria o fator determinante para o reparo da lesão periapical, como vem sendo dito há mais de 60 anos?

Faz algum sentido isso?

Se a chave para a cura é a remoção da causa, por que o selamento do canal seria o fator determinante para o reparo da lesão periapical e não a remoção da causa?

Qual é a patologia?

A lesão periapical.

Qual é a causa da lesão periapical?

A infecção do canal.

Quem remove a infecção do canal?

A obturação?

Claro que não.

Doutrinado pela necessidade de evidências acima de todas as coisas, inclusive da inteligência e do bom senso, o professor não conseguia escapar do engessamento a que submetera sua forma de pensar e ao qual estava preso.

Era o muro ao qual me referi no artigo anterior, ao dizer que “sabia que ia ser muito difícil ir de encontro ao que estava estabelecido para esse tema, afinal era consagrado como unanimidade”.

E como também disse naquele artigo, bati de frente com ele:

O paradigma da obturação.

Depois de ter publicado Apical limit of root canal filling and its relationship with success on endodontic treatment of a mandibular molar: 11 year follow-up, chegara a hora de sentar e escrever o segundo artigo da tríade, sobre a qual também falei no referido artigo anterior.

Onde publicar?

Se algum dia tive dúvida sobre a minha baianidade, deixei de ter.

Abençoado por Dorival Caymmi e orientado por Caetano Veloso, foi o artigo que escrevi com mais “sem pressa” até hoje.

O texto não lhe dá as mesmas condições que a apresentação oral.

A entonação da voz, a ênfase, a veemência…, nada disso é possível na escrita, onde cada palavra tem que ser medida e pesada.

Ainda mais depois que vi a recepção proporcionada ao primeiro da tríade.

Imaginei que não seria tão simples escrever esse, mais importante, mais complexo e mais definitivo.

Ao terminar notei que “passava” um pouco dos limites geralmente estabelecidos de quantidade de páginas e figuras permitidas.

Feita a adequação, mas ainda excedendo os limites, veio a dúvida de onde publicar, uma vez que a seção de Endodontia do Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology, Oral Radiology and Endodontics não existia mais.

Através de um belo editorial “Are we doing enough?, escrito em Junho de 2011, Spangberg, lamentavelmente, já preparava a sua despedida rumo a aposentadoria.

Submeti a periódicos, inclusive os que havia tentado no artigo anterior.

Rejeitado.

Definitivamente, os deuses da Endodontia pareciam não gostar do tema, da abordagem, da condução do artigo, de alguma coisa eles não gostavam.

Resolvi então escrever uma “apresentação” (um arrazoado) do artigo ao próximo periódico ao qual seria submetido.

Em rápidas palavras, justifiquei-o dizendo que era possível que o texto e as figuras ultrapassassem os limites de espaço estabelecidos pelo periódico, mas acreditava que a supressão de parte de qualquer um deles tiraria a força do artigo, razão pela qual…

O editor do JADA, Michael Glick, enviou uma mensagem duas semanas depois aceitando o artigo.

JADA 3'

As tarjas pretas são para bloquear endereços que prefiro resguardar.

Não havia nenhuma sugestão para fazer correção em qualquer parte do artigo.

Nem no texto, nem nas figuras.

Havia somente uma pendência e você a vê na parte final da mensagem grifada em vermelho.

Uma vez que o trabalho não tinha sido submetido a nenhum órgão, o JADA pedia para providenciar uma autorização do Comitê de Ética para sua publicação.

Mais do que compreensível, até porque já esperava por isso.

Busquei a resolução de implantação do Comitê de Ética no Brasil; veja aqui Comitê de Ética – Resolução nº 196, 10 de outubro de 1996.

O Ministro da Saúde era o Prof. Adib Jatene, governo Fernando Henrique Cardoso.

Como já disse aqui na primeira parte deste texto, “o trabalho sobre o qual estamos conversando foi feito no meu consultório entre 1987 e 1996. Exatamente 10 anos o tempo em que foi realizado”.

O Comitê de Ética foi implantado no Brasil em 10 de outubro de 1996, ano em que conclui o trabalho. Não existia antes.

Enviei a resolução explicando do que se tratava.

Aceitaram e me pediram então que conseguisse a autorização para utilização das radiografias de acompanhamento dos casos clínicos, tendo em vista que a partir de outubro de 1986 elas tinham sido feitas já sob a vigência do Comitê de Ética.

Uma vez que não consegui imaginar qualquer dificuldade nesse sentido, pensei que tudo estava sob controle.

Não, não estava.

Para resumir e sem entrar em detalhes, o Comitê de Ética não me deu a autorização que permitiria ao JADA publicar o artigo.

Não haveria necessidade de qualquer tipo de intervenção nos pacientes.

Não haveria necessidade de novas radiografias.

Nada.

Mas, graças à recusa do Comitê de Ética em autorizar o uso das radiografias de controle dos meus arquivos, o trabalho não pôde ser publicado.

Comuniquei ao JADA que ia retirar o artigo do processo de submissão e, para minha surpresa, contei com grande boa vontade de Susan Lozinak, secretária do periódico que, sob orientação do Dr. Michael Glick (que a orientava sobre como proceder, com cópias das mensagens para mim), me deu alguns meses a mais para tentar contornar a dificuldade.

Não nego que guardo todas essas mensagens até hoje, seis anos depois.

Por que conto tudo isso?

Há razões para faze-lo, pode acreditar.

E se algum dia eu sentir que é necessário, algo que cada vez mais parece bater à porta, explicarei.

Os ventos que soprarão darão rumo às coisas.

O que não posso deixar de comentar agora é que fiquei muito chateado, claro.

Ao mesmo tempo, porém, fiquei sereno e resolvi “deixar pra lá”.

Não toquei mais no artigo.

Mas, há um final na história desse trabalho?

Há, sim.

E começo a conta-lo no próximo texto.

Obs. “Pensar é Transgredir” é o título de um dos livros de Lya Luft.

A história de um trabalho. 2ª parte

Obturação'

Da série Histórias que precisam ser contadas. E serão

Por Ronaldo Souza

Bati de frente com um muro chamado paradigma.

O paradigma da obturação.

Sabia que ia ser muito difícil ir de encontro ao que estava estabelecido para esse tema, afinal era consagrado como unanimidade.

Todos os autores, nacionais e internacionais, ensinavam que se o canal não fosse hermeticamente vedado o resultado final do tratamento endodôntico a ser esperado era o fracasso.

Era consensual: “A obturação é o fator determinante do sucesso em Endodontia”.

Obturação''

Mas eu não tinha mais nenhuma dúvida de que esse conceito de mais de 60 anos era um grande equívoco.

Antes de ver porque, um pequeno parêntese.

Se alguém pegar o meu currículo quando comecei a entrar de vez na carreira docente (ali por volta de 2000), vai observar que já os meus primeiros artigos são sobre preparo do canal, “limpeza do forame” (como eu chamava à época) e obturação.

Se esse alguém ler os artigos verá que em todos, TODOS, enfatizo o papel do preparo do canal e questiono o papel da obturação.

Questiono o limite apical da obturação, travamento do cone, vedamento hermético, importância do cimento…

Convido-o a ler alguns deles aqui Publicações (permita-me orienta-lo; para ver na ordem cronológica em que foram publicados leia os artigos da parte de baixo da seção para cima).

Não espere encontrar metodologias bem delineadas e sofisticadas. Muito pelo contrário, os trabalhos eram muito simples e tinha plena consciência disso.

Eu era um clínico dedicado exclusivamente ao consultório e, portanto, com muito pouco conhecimento de metodologias de pesquisa.

Além disso, não tinha acesso a nenhum laboratório.

Era simplesmente o desejo de mostrar como pensava aquele professor que dava os primeiros passos no mundo da docência.

Reconheço que seria normal e de uma certa forma até compreensível que os artigos não fossem “considerados” pela comunidade endodôntica.

Entretanto, para quem quis ler, já havia ali os primeiros sinais do que estaria por vir.

Quando fui para o mestrado (com 20 anos de formado), por exemplo, já tinha em mente o que fazer. A minha dissertação, publicada no artigo Interferência da camada residual no selamento apical, foi o primeiro teste.

Aproveito para fazer duas considerações.

  1. O Journal of Endodontics fez um editorial em dezembro de 2007 em que dizia que a partir de julho de 2008 nenhum artigo sobre avaliação da qualidade da obturação através de métodos de infiltração apical seria aceito. De corante nem pensar.
  2. A avaliação da qualidade da obturação através desses métodos foi então rejeitada por pesquisadores e professores.

Meu recém inaugurado laboratório de pesquisa, constituído por um frasco de corante, era o meu consultório e só funcionava, claro, aos sábados e domingos.

O único método ao meu alcance era justamente… infiltração apical de corante.

Assim, a minha também recém inaugurada carreira de “pesquisador” estava condenada.

O que fazer, então?

Uma vez que eu não tinha nenhuma estrutura que me permitisse investigar a real participação da obturação no processo de reparo, resolvi recorrer a algo que tinha feito no meu consultório; analisar se havia alguma relação entre o limite apical da obturação e o reparo de lesões periapicais.

Um dos temas mais polêmicos em Endodontia.

Resolvi escrever e publicar o trabalho que fora iniciado em 1987 e concluído em 1996, exatamente 10 anos.

O mesmo cujos resultados já vinha mostrando Brasil afora e que vinha tendo rejeição ampla, total e irrestrita por parte de toda a comunidade endodôntica do país.

Para dar um exemplo, em um debate em 2009 em que alguém da plateia fez uma pergunta sobre a forma como eu vinha abordando o limite apical de trabalho e particularmente o papel da obturação, um dos professores negou a validade da minha concepção sob o argumento da ausência de evidências científicas.

Um breve comentário; a colega que fez a pergunta me procurou no intervalo do debate para dizer que tinha visto minha aula em Curitiba e tinha gostado da abordagem que eu apresentara, tanto sobre a instrumentação do canal cementário quanto da obturação. Por isso ela tinha feito questão de colocar o tema para a discussão.

Logo após a negação daquele professor, o professor Pécora, à frente no tempo e no discernimento, foi enfático:

“Então ninguém pode ir além do que está estabelecido? Ninguém pode ter a ousadia de mudar os conceitos”?

A vida seguiu.

Resolvi então partir para a primeira publicação, que pretendia ser parte de uma tríade, com mais dois artigos que lhe sucederiam.

Nuvens pesadas

Tentei publicar em dois periódicos de “impacto”.

Os dois rejeitaram.

Em 2011, publiquei no Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology, Oral Radiology and Endodontics.

O editor era Lars Spangberg.

Triple Oral

A aceitação do artigo foi rápida (duas semanas), mesmo sendo tempo de Natal e Réveillon, como você pode observar no grifado em vermelho e verde na imagem acima.

Ainda bem que “caiu” nas mãos de Spangberg.

Se tivesse caído nas mãos de dois revisores brasileiros o artigo não só teria sido recusado como esquartejado, salgado e exposto em praça pública, devidamente carimbado:

Pior artigo do mundo

Por que digo isso?

Porque dois professores aqui no Brasil se juntaram e quase me levam ao suicídio.

Um deles pediu ao outro para fazer uma análise crítica sobre o artigo.

Isso foi feito num fórum de Endodontia na Internet.

Em plena praça pública.

Confesso que quando vi fiquei sem entender.

Por que aquela atitude?

Qual seria o objetivo?

Li.

Acabara de aprender um pouco mais sobre a vida e do que alguns homens são capazes.

E corri para a janela.

Minha mulher percebeu e não permitiu que eu cometesse aquela loucura.

Isso mesmo, tentei me jogar.

Sabe em que andar eu moro?

Quinto.

Tinha alguma chance de estar aqui agora escrevendo?

Confesso que quando tomei aquela pancada fiquei muito incomodado.

A degradação de alguns homens é por demais conhecida, a vida nos mostra todos os dias.

Mas, mesmo assim, não consegui entender o objetivo daquilo.

Restava-me respirar fundo, absorver e metabolizar.

Foi o que fiz.

Sem pressa.

E à medida em que as coisas iam ficando mais claras, também foi ficando claro que era o momento de tomar decisões.

Foi então que resolvi mudar o foco de muita coisa, inclusive deste site.

No final de 2015 e começo de 2016 (perceba que se passaram 4 anos desde a publicação e sua carimbada como o pior artigo do mundo pelos nobres colegas), comecei a escrever vários textos sobre temas que sempre achei que mereciam uma discussão sob uma nova ótica.

Por conta daquele episódio, um deles foi justamente o das tão famosas e exigidas evidências científicas.

Quer conhecer melhor essa história?

Leia primeiro o artigo publicado (é só clicar nele) Apical limit of root canal filling and its relationship with success on endodontic treatment of a mandibular molar: 11 year follow-up, leia depois os textos abaixo na sequência da numeração e volte. É o tempo que escrevo a continuação deste texto.

  1. X + Y é igual a que?
  2. Um “expert” perdido entre a má fé e a obtusidade
  3. Um “expert” perdido entre a má fé e a obtusidade 2
  4. Um “expert” perdido entre a má fé e a obtusidade 3
  5. Um “expert” perdido entre a má fé e a obtusidade – final

Aviso de utilidade pública – Informo aos amigos e colegas que a tentativa de suicídio narrada acima é uma figura de retórica.

Aviso de utilidade pública 2 – Mas que eu fiquei p… da vida, fiquei.