O escritor

Em uma crônica falei de um garoto negro que era meu vizinho e tinha sido o maior amigo da minha infância. Alguém lê, diz que gostou e que, como eu, também teve “dois pretinho” na infância. Como eu, não. Eu não disse que na minha infância teve um pretinho, disse que o maior amigo da minha infância foi um garoto negro.

O senador americano Barack Obama, negro, ganhou prévias do partido dos Democratas (nada a ver com o daqui, pelo amor de Deus) em alguns estados americanos. “Viu quem ganhou as prévias nos Estados Unidos, um pretinho”?

Não deve ser um pretinho. Apesar de não ser uma sociedade que possa servir de exemplo em termos de sensibilidade e bom senso, ele não deve ser qualquer um para chegar ao senado americano, ainda mais por ser negro. O pretinho seria um homem negro pequeno, de pouca estatura física?

Deve ser bom ser escritor. Ele se vinga de tudo. Ele joga no papel todas as suas mágoas, frustrações, revoltas, medos. Ali, no papel, ele trava todas as suas batalhas e, se quiser, vence todas. Existe coisa melhor? Travar qualquer batalha e vencer todas. A da injustiça, do preconceito racial, político, social. Nada fica travado dentro de você, nada vem “até aqui”, sai tudo.

Numa categoria mais abrangente de escritor, entram outras, como jornalista, autor de teatro, de novelas. Peguemos um autor de novelas como exemplo, até porque o alcance da sua obra é enorme.

Alguns autores de novela são reconhecidos homossexuais, e não vai aqui nenhum juízo de valor, até porque alguns deles não demonstram nenhuma preocupação em esconder a sua homossexualidade, pelo contrário. O homossexualismo já foi retratado de diversas maneiras nas novelas brasileiras, mas vamos à última, Paraíso Tropical, da Rede Globo, em que dois jovens atores, bonitos, fizeram um casal homossexual. Perceberam como foram retratados? Um casal perfeito, sem defeitos. Mais uma batalha vencida.

Chama a atenção a atual novela das oito, também da Globo. Um ator negro, Lázaro Ramos, em um dos principais papéis, faz um favelado que namora uma menina rica (Débora Falabella) da zona sul do Rio de Janeiro e, claro, branca. Cenas quentes de beijos e erotismo. Glória total (ou desgraça?). Posso quase afirmar que existem algumas pressões para acabar com essa “sem-vergonhice”. Se não posso assegurar isso, posso assegurar que o desconforto é grande para muita gente.

Atores negros sempre tiveram dificuldades para encontrar papéis importantes na televisão de brancos (existe outra?), razão pela qual sempre representam criados, porteiros, faxineiros, etc. Grande Otelo, único na sua época, superou isso e sempre foi respeitado, pelo menos na classe. Você é capaz de lembrar quantos mais? É possível que esqueça de alguns, mas, mais recentemente, Milton Rodrigues, Ruth de Souza, Taís Araújo. Não colocaria Camila Pitanga, por não ser uma negra nos padrões típicos.

Mas, sem dúvida, Lázaro Ramos chegou arrepiando. Não sei se também há algum casal homossexual, ou alguém que represente outra “minoria”, mas, ao colocar um negro como par romântico de uma branca em Duas Caras, Aguinaldo Silva, o autor (não é quem escreve um escritor?) teve coragem. Não deixou vir até aqui, botou pra fora. Ganha mais uma batalha.

Dá para imaginar o prazer que sente o escritor, como devia sentir Nelson Rodrigues, ao escrever cada texto retratando a sociedade brasileira? Não, não dá. Deve ser indescritível.

É bom demais ser escritor.

Ouro de tolo

Moleskine
The legendary notebook of Hemingway, Picasso, Chatwin.

É assim que vem a apresentação de uma caderneta de anotações, com cerca de 10 X 15 cm de tamanho e 192 páginas. Para te-la, você paga R$125,00. Cento e vinte e cinco reais por uma caderneta de anotações!!! Você deve estar admirado. Uma “normal” equivalente a ela custa cerca de R$15,00. Ah! meu amigo, que é isso? Não seja vulgar. Não se esqueça, é uma Moleskine e, detalhe, Hemingway, Picasso e Chatwin tinham. Não vale a pena?

É claro que vale. Você vai poder exibi-la aos seus amigos e, mais uma vez, diferenciar-se. Você já pensou, sacar de uma Moleskine na frente de todos? Se anotar alguma coisa nela com uma Montblanc, aí não tem pra ninguém, você é um homem bem sucedido, fino. E não se esqueça, muito provavelmente você fará parte do time de João Dória Jr. e Danuza Leão.

Está ficando cada vez mais difícil. Em qualquer bate-papo para um chopp (talvez seja melhor eu dizer happy hour), há pouco espaço, quando há, para se falar de coisas simples. Sei que sempre foi difícil ser simples, mas parece que está mais. Não fale que você tem um laptop, não faça isso, diga Macintosh. Relógio, compre um falso, mas que seja ou imite o Rolex, de preferência.

Atreva-se a tomar um vinho. Você não vai escapar, vai ter alguém para falar que aquele vinho foi feito em um dia nublado, com pancadas leves de chuva, ele vai professar um bocado, dizer que a filosofia… e não caia na besteira de querer terminar o vinho sem fumar um charuto (cigarro não, pelo amor dos seus filhos). Talvez um cachimbo quebre o galho.

Um conhecido disse há algum tempo que não resistiu; não podia deixar de aproveitar que estava em São Paulo e foi “conhecer” a Daslu. Não, Daspu não, Daslu. O entusiasmo ao falar, contar o que viu, era tanto que tenho certeza que lá ele teve orgasmos.

No livro “A Sociedade da Decepção”, Gilles Lipovetsky* faz uma abordagem bastante interessante da sociedade atual, que ele chama de hipermoderna. O materialismo e o consumismo, que ele chama de hiperconsumismo, são a sua marca registrada. Antes, diante das intempéries da vida, as pessoas recorriam à religião para acalmar seus males; hoje vão ao shopping. Uma sociedade que tem praticamente todas as possibilidades abertas e por isso mesmo sujeita à grandes decepções.

Os bens de consumo sempre fizeram parte do imaginário do homem. Durante toda a sua vida ele é preparado nesse sentido. Há toda uma trama que o envolve e não permite muitas alternativas. Isso já esteve em níveis muito mais administráveis, hoje não. Há muito tempo as crianças e adolescentes já fazem parte desse processo e representam uma fatia que o mercado (que palavra, hein!) explora de maneira absolutamente despudorada e insaciável.

Acho que já faz parte da sabedoria popular que o homem precisa ter objetivos. Bens de consumo são objetos consagrados nesse sentido, e talvez não houvesse nenhum problema nisso. Você deseja, cria o objetivo, trabalha muito, cresce na profissão, torna-se um profissional bem sucedido (o que nem sempre significa um bom profissional), e compra. Conseguiu, outro logo surge, e você faz tudo outra vez. Raul Seixas, o maluco beleza, já dizia isso com uma beleza poética muito forte clique aqui.

É também o que ocorre quando se cria um outro tipo de objetivo, algo mais sólido, consistente. Por exemplo, um projeto pessoal de vida, seja qual for. Você deseja, cria o objetivo, trabalha muito e realiza. Conseguiu, outro logo surge, e você faz tudo outra vez. Mas, há uma diferença. No segundo, você olha para trás e vê que construiu algo. Você vê a sua obra, não importa se grande ou pequena. É a sua história. No primeiro, você olha para trás e vê que nada ficou.

Observe a criança (vá ao passado e se veja). Ela deseja um brinquedo, grita, esperneia, chora, sofre, e consegue. Com pouco tempo, aquele objeto de desejo, razão de viver, está em um canto qualquer do quarto, esquecido. Isso no adulto provoca um vazio enorme.

* Gilles Lipovetsky – Filósofo francês, vivo, com vários livros publicados e um dos nomes importantes da filosofia contemporânea.

Big Brother Brasil

Está de volta o Big Brother Brasil (a Globo coloca Brasil ou Brazil? Por favor, me informem).

A rigor, você só pode fazer crítica a alguma coisa que você conhece. Sendo assim, não poderia fazer qualquer comentário sobre esse programa. Entretanto, apesar de não assisti-lo, acho que posso fazer alguns comentários. Há uma razão para isso; mesmo que você não assista, não há como não saber como é o programa, porque não há nenhum horário (nem nos telejornais) em que não sejam feitas inserções sobre ele. Em outras palavras, que a Globo não empurre goela abaixo.

Começo com uma declaração de José Wilker, feita há algum tempo: “É um programa de indigentes mentais. As pessoas que estão ali não têm nada a oferecer, são de uma pobreza mental que dá dó”.

É isso mesmo, a declaração é de José Wilker, um dos grandes nomes da Rede Globo de Televisão. É claro que ele não podia, e talvez não devesse, fazer uma crítica tão forte a um programa da “sua” emissora sem qualquer outro comentário que a amenizasse. A sua saída foi elogiar a direção do programa, (o diretor é Boninho, aquele que com os amigos joga ovos podres nas pessoas que passam embaixo dos seus belos apartamentos em Ipanema, filho de Boni, o todo-poderoso da Globo), e os aspectos técnicos do programa. Não há como negar a qualidade técnica da Globo. E só.

Na verdade, o processo de massificação (há quem diga de imbecilização) é bastante grosseiro, mas, infelizmente, a essa altura imperceptível. A coisa mais antiga do mundo é a forma como as gravadoras de discos (antes LP, hoje CD) criam alguns “grandes sucessos musicais”. Faz-se o velho acordo com os órgãos divulgadores (as rádios, por exemplo, sempre cumpriram bem esse papel) sobre quais e quantas vezes as músicas devem ser colocadas na programação. Ouvida repetidas vezes, qualquer música “cai” no gosto do povo e se transforma em grande sucesso, e aí surgem os discos de ouro, platina, etc. E tome banda de axé, música sertaneja e pagode. É um desastre.

Assim também fazem as televisões. Todos os dias põem no ar várias vezes as chamadas de um determinado programa, até as pessoas se acostumarem. Acostumou, aceita, o passo seguinte é “gostar”. Porém, não me lembro de ter visto nada igual ao que a Globo tem feito com o BBB. É toda hora. Repetidas vezes, não tem quem “não goste”.

Da mesma forma, algo, ou alguém, que pretendem desqualificar entra no noticiário de forma sutil (?). Nesse sentido, o noticiário político é de uma clareza impressionante. “Bate-se” em alguém várias vezes e de várias formas, e mesmo quando a notícia tem que ser favorável a aquela pessoa, geralmente é seguida de um comentário negativo. Você recorre aos canais fechados é, a mesma coisa. Mudam as figuras, os ataques são os mesmos. Não se percebe facilmente.

Muitos deles não percebem e por isso não entendem, mas mesmo assim comento com os meus alunos: vocês não podem fazer parte desse processo de massificação, são universitários, daqui a algum tempo estarão dirigindo esse país (só não digo que eles fazem parte da elite, isso não faço, seria muita maldade), precisam evoluir e fazer o país avançar.

Quando falo que o BBB é indecente, alguns pensam que é porque tem algumas cenas de apelo sexual (podem esperar, terá cada vez mais). Não, não é por isso, até porque, como falei, por não assistir, não saberia em que níveis isso acontece. Ele é indecente na sua concepção. Ele é indecente porque visa, e atinge, uma sociedade que há muito é preparada para não ver, não saber. Os seus altos índices de audiência refletem simplesmente o tamanho do ralo pelo qual se foram as mais elementares noções de inteligência, sensibilidade e percepção.

Você conhece a música de Zé Ramalho, Vida de Gado? Ela diz:

Eeeiii, oohô, vida de gado
Povo marcado, povo feliz.

Será que ao dizer que “é um programa de indigentes mentais e que as pessoas que estão ali não têm nada a oferecer, são de uma pobreza mental que dá dó” José Wilker quis dizer algo mais?

Os cantores da Bahia

Era um desastre que há anos se repetia. Cada vez que eles paravam os seus trios elétricos na passarela da imprensa e das autoridades no Campo Grande era um desastre. Era a nota triste do carnaval de Salvador.

Anunciavam-se como amigos íntimos das autoridades presentes e lhes dirigiam elogios de todo tipo. Das mulheres desses políticos eram super íntimos e a ambos, marido e mulher, muitas vezes tratavam pelos apelidos.

A um determinado político, o líder, de quem diziam existir além da amizade a condição de ídolo, dirigiam-se durante minutos intermináveis, quando talvez (devo estar querendo demais) devessem estar cantando. Quantas vezes, em pleno clima de carnaval, irritei-me profundamente ao ouvir toda aquela baboseira. Certamente, eram muito amigos. Um deles, na verdade uma deles (também na verdade não é cantora, mas faz parte desse grupo), fez desse líder padrinho de casamento, sem dúvida uma demonstração inequívoca de grande amizade (não sei se os outros fizeram algo semelhante). E assim caminhava a humanidade.

Dizem que a morte tem muitos poderes. Tem sim. Um deles, inexorável; você foi, não é. E isso muitas vezes se manifesta com uma clareza chocante.

Aquele político, o líder, faleceu. Momento de solidariedade, apoio à família, necessária a presença dos amigos. Onde estão? Não estão. Não, não é possível. Os cantores da Bahia não estavam. Não importa se o líder já estava em pleno ocaso, não importa. Eram amigos.

Ali manifestava-se a face mais cruel do poder; foi, não é mais.

Vou tentar me conter. São sem alma. Para eles é só o dinheiro, e não me digam que um ou outro tem um projeto social; pudera, com o que ganham. Para fazer justiça a um deles, fiquei sabendo que Durval Lélis esteve presente no funeral.

Já digo há algum tipo; têm algum mérito? Têm sim, afinal contribuíram para o fortalecimento da indústria em que se transformou o carnaval da Bahia (para quem isso foi bom?), porém, é importante que uma coisa fique bem clara: êles não são o carnaval, como já chegaram a dizer. Talvez merecessem ser citados nominalmente. Não precisa, todos sabem de quem estou falando.

O carnaval está aí. Há um outro grupo político à frente da Bahia. Para onde soprarão os ventos?

Cantores da Bahia. São lamentáveis.

Ano Novo

“Nesse espírito, acredito que poucos discordem da avaliação de que 2007 foi um ano excepcionalmente bom para o Brasil, em especial na frente econômica…

“Foram criados mais de 2 milhões de empregos formais e o crédito cresceu mais de 50% em um ano. A combinação desses fatores foi altamente benéfica para a economia. Mais de 100 000 novos imóveis foram vendidos, 2,5 milhões de carros novos saíram das revendedoras e ganharam as ruas. Mais de 10 milhões de novos computadores abriram as portas do universo digital a uma legião de usuários. Entre janeiro e dezembro a bolsa cresceu 40%, e ingressaram no país mais 35 bilhões de dólares em investimentos estrangeiros diretos – o dobro do ano passado. Como resultado, o PIB deve fechar o ano com o auspicioso avanço de mais de 5%.

“O novo Plano de Desenvolvimento da Educação, anunciado pelo ministro Fernando Haddad em abril, deixa claro que o governo finalmente passou a tratar o assunto como prioridade. Essa primazia foi reafirmada pela criação de um índice para acompanhar a evolução do ensino básico ao longo dos anos. O rumo está traçado”.

Estes são trechos da Carta do Editor da Revista VEJA, escrita por Roberto Civita* e publicada na última edição do ano da revista. Pelo visto, foi um ano absolutamente diferente do que a VEJA tem tentado mostrar nos últimos tempos. Pelo visto, também anuncia-se um Ano Novo diferente do que poderia imaginar quem a leu nesse tempo.

Independente do que dizem alguns homens e órgãos de informação, e do que pensamos sobre eles, sabemos que a chegada de um novo ano sempre traz consigo promessas, novos planos, perspectivas de mudanças, e tudo mais a que estamos acostumados nesses momentos. Sem dúvida, momentos interessantes que se repetem todos os anos.

Sobre isso, que tal ver o que diz o nosso poeta Carlos Drummond de Andrade?

"Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustăo. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovaçăo e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar, que daqui para diante vai ser diferente."

É assim? O que fazemos, ou o que podemos fazer, de fato, para que o ano seja realmente novo? Vamos ver Drummond outra vez.

Receita de ano novo 
 
"Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
 
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
 
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre".

 

O “dia novo” está dentro de você. É você quem determina como serão os seus dias. É claro que entram aí vários fatores de interferência. É claro que determinados eventos têm um peso grande nesse sentido, como a perda de alguém que se ama. Mas, os dias não são todos assim.

São cada vez mais comuns, particularmente na Internet, mensagens cheias de esperança, religiosidade, beleza. Leia, algumas valem a pena. Mas lembre, não são elas que fazem o seu dia. Você faz. E lembre que são os dias que fazem o ano.

Feliz Ano Novo.

* Roberto Civita – Presidente da Editora Abril e editor de VEJA.

Natal

Boas Festas

Anoiteceu, o sino gemeu
A Gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A Felicidade pra você me dar.
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu,
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem

O que você acabou de ler é a letra da música de Assis Valente*. Composta em 1932 é tida por alguns como a música mais bonita de Natal (Clique aqui para ouvir) . Viu como é bonita?

Você sabia que Papai Noel é uma criação atribuída a uma peça publicitária da Coca-Cola? Talvez isso não importe muito, ou até mesmo não importe. O que importa, isso sim, é o famoso “espírito” de Natal.

Sempre gostei, e gosto, muito do Natal. A confraternização, os amigos, a família, a ceia, enfim, um clima maravilhoso. Nunca foi difícil de encontrar esse espírito de Natal entre nós. Constituimos um segmento da sociedade que tem acesso aos meios que permitem isso. Mas, será que há outros “natais”, ou será que para muitos não há Natal?

Na minha infância, em Juazeiro (Bahia), em mais uma manhã de 25 de dezembro, brincando na calçada da minha casa com o presente que Papai Noel tinha deixado para mim, perguntei a Dito por que ele não estava brincando com o dele, e a sua resposta foi que Papai Noel não tinha passado na casa dele.

Era uma criança de cor negra, pobre e morava na segunda casa à direita da minha. Um detalhe: o maior amigo de minha infância. Papai Noel estava sentado no batente da minha casa (quem morou em cidade do interior sabe o que é batente) curtindo a minha brincadeira e presenciou esse diálogo. Levantou-se, foi a algum lugar e trouxe um presente para Dito.

Naquele dia, mesmo sem saber, meu pai me “mostrava” a música de Assis Valente, que eu já cantava. Achava bonita aquela música, mas, é evidente que não “via” o seu real significado.

Certamente, para Assis Valente o Natal deveria ser algo mais do que tem sido. Se ele estivesse vivo talvez gostasse de saber que alguns milhões de brasileiros terão um Natal um pouco melhor.

Feliz Natal.

 

*Assis Valente (1911-1958), considerado (ao lado de Dorival Caymmi) o compositor baiano mais importante até o advento da Bossa Nova. É possível que você já tenha ouvido alguma música dele sem saber.

A negação de você

Não há tempo melhor na vida; ser criança. O que vem às nossas mentes? Brincar, com toda a abrangência que essa palavra comporta. Deixe-me falar uma coisa para vocês; brinquei muito, muito mesmo. Acho que era mais possível do que hoje.

Crianças, brincadeira, não percebemos, mas, nesse momento sublime, os nossos pais já estão introduzindo nas nossas vidas determinados sentimentos e conceitos; carinho, amor, proteção, solidariedade, respeito, dignidade, honestidade. Como? Através de conselhos (a importância da palavra chegando a você na orientação pela conversa) e exemplos (criança vê, criança faz).

Como sabemos, a vida vai chegando cada vez mais e passamos a ter contato com outras coisas; coisas que não são de criança, inclusive o chamamento do amor. Outras pessoas, outras formas de ver, outras formas de agir; outros mundos. Mas, em níveis absolutamente “administráveis”.

Vida adulta. Um dia de glória; a formatura. Quem está mais feliz, você ou seus pais? Vida profissional, dificuldades iniciais (maiores hoje?). Ninguém está mais disposto a brincar, não dá mais tempo. Há muito tempo o mundo deixou de ser você, seus irmãos, seus pais e seus amiguinhos. Você não sabe o que é, mas, algo mudou. E tem uma coisa; dói.

Você não tem mais só amigos; agora tem colegas. Que bom seria se não existissem colegas, só amigos. Como pensam, do que gostam, quem são eles? Por que são assim?

Opa, cuidado. Será que você está achando que o mundo está errado? Não, não está. Ele é assim. Cheio de imperfeições. O mundo da criança é perfeito, o seu não. Mas, observe; na sua imperfeição, o mundo é perfeito. Como saber qual o valor do que é doce, bom, amoroso, honesto? Conhecendo o que é amargo, ruim, rancoroso, desonesto.

Por que você acha que você está certo? Não será ele? Você sabe que não. Você sabe que você está certo, porque está apoiado em princípios. Já ouvi falar de princípios, mas por que não se apoiar em algo mais atual? Afinal, você vale o que parece ser, não o que é. Seja mais pragmático. Palavra mágica e atualíssima; pragmatismo. Alguém sabe o que significa? Não se apóie em princípios, ninguém sabe o que é, tenha jogo de cintura.

O choque é inevitável; onde fica a sua infância e onde ficam as coisas que você aprendeu lá? Respeito, honestidade, princípios. Como viver sem essas coisas se elas são a base da sua vida? Você não consegue entender porque está com gastrite? E a pressão, está normal? Ao seu lado, todo mundo está “se passando para trás”. Não esquente (sábio conselho; se você conseguir, por favor, me ensine).

Alguém que não merece o seu bom dia, terá o seu bom dia. Incrível, as pessoas querem que você seja cordial. Cumprimente-o. E você se revolta; como vocês podem me pedir isso? Ele é um indigno, um mau colega, ele denigre a minha profissão. Faça. Isso é viver em sociedade.

Quando me vejo cumprimentando certos homens, penso; que bom, acho que estou aprendendo a viver em sociedade.

Podem ter certeza. O preço é muito alto.

Reminiscências

– Foi um golpe forte na memória, mas, ao mesmo tempo, algo que mostra o distanciamento do homem maduro que começo a ser.

São palavras de Gilberto Gil em um programa que acabo de ver no Canal Brasil (TV a cabo), realizado há 11 anos. Que delícia. Primeiro, por ver Gil revisitando alguns lugares da sua infância (neste momento ele estava em Bom Jesus da Lapa [Ba]) e por ouvi-lo cantando algumas das suas lindas músicas (Gil é talento puro). Uma delícia de programa. A lamentar que quando comecei a assistir imagino que já tinha começado há algum tempo.

Em segundo lugar, e acho que aí está a razão maior de ter me deixado tocar, porque, junto com Gil, revisitei a minha infância; Juazeiro (Ba). Me emocionei.

Como foi gostosa. Vou sempre lamentar não ter podido proporcionar às minhas filhas uma infância maravilhosa como a que tive. Foi infância em todos os sentidos que se pode dar a essa palavra, ou, melhor ainda, a esse momento divino do homem. É evidente que aqui falo do homem em um sentido abrangente, incluindo naturalmente a mulher.

Vi as casas de taipa, as ruas sem paralelepípedos, o chão rachado pela seca. Vi homens, mulheres e crianças, iguais aos da minha infância. Não sei por que, não sei se por associação à infância, mas quando vejo esses homens e mulheres, a imagem que me vem à mente é de dignidade.

Já em um momento financeiro melhor dos meus pais (meu pai agora era um funcionário do Banco do Brasil) do que na época dos meus dois imãos mais velhos (sou o do meio), já pude ter uma infância que toda criança devia ter; sem dificuldades. Por isso, e também pelo fato de ser criança, não via as dificuldades onde sempre existiram, mas as feições ficaram na minha memória e foram elas que eu vi com Gil. Mas, faço questão de repetir; sofridas, mas, dignas. Em quantos lugares, hoje, você vê de fato dignidade?

A palavra de um homem era o que havia de mais importante. Onde você a encontra hoje? Você deve estar dizendo; nossa, ele está pesado hoje. Estou? Se não me engano, foi um filósofo chamado Chapman que disse; “quando você olha a vida com mais profundidade, só encontra o desespero”.

Hoje, homem, entendo melhor o desespero de certos homens, pesados, amargurados.
Não, não se preocupe, não estou desesperado. Reflexivo, não desesperado. A minha infância deixou muito pouco espaço para o desespero no homem maduro que começo a ser.

Hereditariedade ou exemplo?

A hereditariedade é há muito tempo assumida pela Medicina. De maneira bem simples, nascemos e herdamos dos nossos pais alguns dos seus caracteres físicos e psicológicos. A Psicanálise, pelo menos alguns dos seus membros, vê de uma outra forma e aquilo que se atribui à hereditariedade, eles preferem dizer que se trata de exemplo, isto é, vemos e fazemos. È o que se diz muito com relação às crianças; criança vê, criança faz.

Diante da sua extrema complexidade, não me atreveria a discutir pensando em definir um tema como esse. Porém, na minha modesta opinião (aqui modéstia não tem nada a ver com aquela tão bem definida por Schopenhauer*; um dia converso com vocês sobre isso, vale a pena), deve ter um pouco de cada coisa.

A nossa ignorância chega a assustar, apesar da estupidez demonstrada todos os dias por homens que, detentores de um pequeno saber, exibem uma arrogância que mal conseguem disfarçar, quando querem. Sem dúvida, ainda teremos que avançar muito para identificar o nível de influência que sofremos por sermos filhos daquele pai e daquela mãe. Porém, não parece fácil negar essa influência.

Ao mesmo tempo, acredito firmemente que o exemplo é fundamental nas nossas vidas. O que ouvimos, de todos, mas, particularmente dos nossos pais, é muito importante, mas o que os vemos fazer talvez seja mais. Eles são os nossos ídolos; eles fazem, nós fazemos.

E é aí que reside um dos grandes problemas do momento; os pais se perderam. São cada vez mais freqüentes as notícias de jovens que infringem as mais elementares regras de convivência, e o farão por toda a vida. Será que tem relação com alguma coisa que vemos no dia-a-dia?

Já viram os pais na porta das escolas, levando e trazendo os filhos? Onde e como param os seus carros é o que menos importa. As faixas para pedestres, aquelas elevadas melhor ainda, não servem para outra coisa que não seja para parar os carros para entrarem e saírem os “donos do mundo”. Isso é tão elementar que qualquer estudante de psicologia sabe; se os pais não têm noção de limites, como esperar que os filhos tenham? São eles que chegam às faculdades cada vez mais arrogantes, mal educados. Certamente, muitos vão dizer; que bobagem, nada a ver uma coisa com a outra.

Dos 11 aos 17 anos morei em um edifício em que as famílias tinham um padrão sócio/cultural/financeiro relativamente próximo, mas também moravam algumas, digamos, com nível mais elevado. Nesse período presenciei algumas vezes, e até hoje vejo isso, os pais brigarem com os porteiros do edifício por estes reclamarem, com o maior cuidado do mundo, dos seus filhos. Malditos porteiros (reclamar dos nossos filhos, só podem ser malditos). Assim crescem, podendo tudo.

Parece que as escolas e os professores existem para agradar aos filhos. Nas particulares, incluam-se aí as faculdades, cada vez mais comum na vida dos brasileiros, esse processo é mais marcante, pois eles “pagam para isso”. O estacionamento destinado aos professores (será que ainda existe algo que se pareça com respeito às normas?) é frequentemente utilizado por alunos. O argumento? Eu pago.

Lembram da cena chocante de recente episódio de agressão a uma mulher (somente mais um) flagrada pelas redes de televisão, em que um dos pais entra na delegacia com o argumento, “eles são crianças, não podem ser presos, são jovens, universitários, têm endereço”?

Hereditariedade ou exemplo?

* Arthur Schopenhauer – filósofo alemão do século XIX, conhecido como o filósofo do pessimismo.

Blow-up

Blow-up *

Conheço um pouco de Salvador. Vivi a juventude numa época em que ainda se andava pelas suas ruas a qualquer hora, em qualquer dia. Foram muitos momentos, muitas histórias, muitas experiências, vividas com intensidade, que fizeram de mim o homem que só eu conheço, e respeito.

Tinha uns 16 anos. Naquela época costumava sair com um primo no carro do pai dele para “pegar mulher”. Numa dessas tardes de domingo (parece até música da “Jovem Guarda” – os com mais de 40 anos sabem do que estou falando), não pegamos ninguém. Dia perdido, ocorreu-nos ir ao cinema. O horário, final de tarde, não oferecia muitas opções e fomos, meio a contra-gosto, ao Cinema de Arte.

Como vocês não sabem que cinema é esse (será que alguém aí lembra?), deixe-me dizer onde era. Ficava naquela rua, que não sei o nome, sou péssimo para isso, atrás da rua do Cine Liceu. O que! Nem esse vocês conhecem? Não acredito. Pois é, dia perdido, caçador sem caça, vamos lá.

Como o nome diz, Cinema de Arte é um cinema que passa filme de arte, portanto, com poucas chances de agradar a um garoto de 16 anos. Chegamos lá, sessão iniciada, não tem jeito, só tem esse, vamos ver esse. Hoje, iríamos a um shopping, cada um tem trezentos cinemas, trezentos filmes para assistir, sem problema. Aliás, tem sim; não tem um que preste.

Vamos voltar ao nosso Cinema de Arte. Entramos e começamos a assistir ao filme. Não, não era filme para um garoto de 16 anos que tinha saído para pegar mulher, tanto que meu primo, um pouco mais velho do que eu, detestou. Mas, estranho, o filme foi me prendendo, prendendo…

Quando terminou a sessão o meu primo estava doido para sair e eu disse que queria ver a parte inicial que tínhamos perdido; ele não acreditou. É verdade, quero ver a parte inicial. Ficamos. E vi.

O filme era Blow-up. O nome é esse mesmo, ele não teve tradução para o Português (acrescentaram um “Depois daquele beijo”). De Antonioni, um dos diretores consagrados do cinema. Naquela tarde de domingo, o menino de 16 anos começava uma relação diferente com o Cinema.

A partir desse dia, filmes como Morangos Silvestres (Bergman), Amarcord (Felini), A Bela da Tarde (Bunnel), Cinema Paradiso (Tornatore), este bem mais recente, criaram em mim gosto pelo cinema que mostra muito mais do que violência, sexo e efeitos especiais.

Foi uma tarde de domingo especial para a vida daquele garoto de 16 anos.

* Esse texto estava pronto há cerca de 10 dias antes das mortes de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni e não foi alterado em função desses acontecimentos. Fica agora como uma homenagem póstuma a dois grandes cineastas, que se preocuparam e mostraram com competência o homem, com as suas angústias e aflições, mas, sobretudo com a dignidade de quem busca entender e melhorar a raça humana.