Descartes, Universidade e a Endodontia

Descartes e Endodontia

Quando realizamos o preparo do canal com a técnica da FOP-UNICAMP com patência e ampliação do forame apical, é comum o extravasamento (surplus) de cimento, o qual demonstra que a área pela qual houve a saída do excesso foi limpa, deixando livre o caminho para o preenchimento completo.

Por Ronaldo Souza

Mesmo tendo frequentado as melhores universidades da Europa, (René)Descartes, o filósofo francês, achava que não tinha aprendido nada de importante, ou pelo menos consistente, em seus estudos, exceção feita à matemática.

Não parece muito provável que diante de uma formação acadêmica de reconhecida qualidade ele estivesse certo no seu pensamento.

Parece mais provável que ele tenha se deixado levar pelo seu elevado nível de cobrança com ele próprio, muito comum às mentes inquietas.

Penso, logo existo

Não é difícil imaginar essa possibilidade quando vinda de um homem que pensava na razão humana como única forma de existência.

Acreditava no “verdadeiro conhecimento”, algo irrefutável, inquestionável.

Mas como todas as teorias científicas são refutáveis, passou a duvidar de tudo, inclusive da sua própria existência.

Porém, ao duvidar da sua própria existência Descartes se deparou com algo irrefutável.

A dúvida.

E a dúvida o trouxe para a compreensão e aceitação da sua existência.

Se estivéssemos presentes naquele momento e pudéssemos “ouvir” seu pensamento, talvez fosse algo desse tipo:

Ao duvidar de algo, estou pensando, se estou pensando, existo.

“Penso, logo existo”.

Assim, a sua existência parece ter sido a primeira verdade irrefutável que ele encontrou.

É possível, quem sabe, que Descartes tenha percebido que a certeza é a convicção do idiota.

Descartes nos ensina a “descerteza”, a dúvida.

E a dúvida é amiga inseparável do pensamento.

E, de acordo com Descartes, é o pensamento que nos faz existir.

Mas o mundo não vive só de Descartes.

O mundo não vive só de quem ainda se permite ter dúvidas.

Há homens que de tudo têm certeza.

E tudo afirmam.

Pense, para existir

Por que falo de mentes inquietas e de Descartes como um dos seus mais importantes representantes?

Porque, além de se questionar tanto, questionou as melhores universidades da Europa.

E aí ele nos ensina mais uma vez.

A falibilidade da Universidade.

Ainda que tenha importante papel a desempenhar na nossa formação acadêmica, não é ela, universidade, que nos torna diferenciados.

Muito menos a busca do seu guarda-chuva protetor pela repetitiva citação do seu nome. Isso só expõe a insegurança de quem usa esse artifício.

“Respaldar-se” na tradição da instituição mostra toda a fragilidade do profissional, ao demonstrar que, sem ela, ele não é capaz de “segurar” determinados conceitos.

A instituição se torna seu salvo-conduto.

“Surplus” como sinônimo de limpeza

“Quando realizamos o preparo do canal com a técnica da FOP-UNICAMP com patência e ampliação do forame apical, é comum o extravasamento (surplus) de cimento, o qual demonstra que a área pela qual houve a saída do excesso foi limpa, deixando livre o caminho para o preenchimento completo”.
Freire, AM

Da mesma forma que é equivocado imaginar que a matriz apical impede que o material obturador extravase para os tecidos periapicais durante a sua condensação, é um grande equívoco imaginar o que diz a frase acima.

A sua inconsistência é flagrante.

Imaginemos o tratamento de um canal com polpa viva.

Sem entrar no mérito, imaginemos agora quantos milhares de canais com polpa viva foram tratados mundo afora preservando-se o coto pulpar, pelo simples fato de que era assim que se ensinava.

Você é capaz de dizer em quantos houve extravasamento de material obturador?

Claro que não, mas, provavelmente lembra que isso aconteceu em diversos casos que você mesmo tratou e muito mais ainda nos que você viu de outros colegas, em cursos de Endodontia, em congressos, jornadas e encontros de Odontologia.

Mais uma vez, sem entrar no mérito da questão se é certo ou errado “preservar” o coto pulpar, naquele momento da obturação ele ainda tem corpo, oferece resistência ao toque, ou seja, a porção final do canal, a área pela qual houve a saída do excesso de obturação não está vazia.

Mesmo assim, como você sabe, há extravasamento de material obturador.

Imaginemos agora o tratamento endodôntico de um canal com polpa necrosada.

Nesses casos, como você também sabe, não há mais coto pulpar vivo.

Agora, o canal cementário está “preenchido” por um tecido necrosado que, diferentemente do coto pulpar vivo, não tem corpo, não tem consistência e, portanto, não oferece nenhum tipo de resistência.

Nessas condições, a simples irrigação será capaz de “empurrar” esse material para os tecidos periapicais.

Diante da compressão que se faz para condensar bem a obturação, dá para imaginar o que pode acontecer com ela?

Diante da “compressão hidráulica” (bonito o nome, não?) da guta percha plastificada, dá para imaginar o que pode acontecer com ela?

Diante do bom escoamento do cimento e de uma boa compressão, dá para imaginar o que pode acontecer com ele?

Vamos juntos?

Nessas condições, você seria capaz de afirmar que o extravasamento (surplus) de cimento é uma demonstração de que a área pela qual houve a saída do material obturador foi limpa?

Ao duvidar de algo, estou pensando, se estou pensando, existo.

Lembra?

“Penso, logo existo”.

Não pensar leva a afirmativas desprovidas de qualquer sentido como a feita acima.

Não pensar compromete a compreensão das coisas mais elementares e compromete a própria atuação clínica. Afinal, que importância tem “fazer” se se desconhece os princípios mais básicos do que se está fazendo?

É isso que se chama de ignorância ativa.

Por mais que não se perceba, e pelo visto não se percebe, a Endodontia exige um pensar no dizer e no fazer.

Diante da certeza de que o extravasamento (surplus) de cimento demonstra que a área pela qual houve a saída do excesso foi limpa, recomenda-se uma visita a Descartes.