Por Ronaldo Souza
Volto a um tema sobre o qual já escrevi para que possamos, juntos, discuti-lo outra vez.
Dessa vez divido em duas partes.
Percebem-se facilmente as dificuldades ainda existentes com relação à real dimensão das coisas da Endodontia.
A imprescindibilidade do localizador foraminal é dita com tamanha veemência que alguns endodontistas devem se sentir acuados.
– Quem não tem não pode fazer Endodontia!
Pronto!
A forçação de barra é grande e não é novidade.
Há pelo menos quatro razões para isso.
1. O professor acredita de fato que o localizador foraminal é indispensável
Tudo bem.
2. O cara diz para se colocar num pedestal
Funcionou mais no início. Como poucos tinham, o cara precisava se distinguir e deixar todos impressionados. É sempre assim cada vez que lançam algo novo.
Cria-se uma onda à qual muitos não resistem.
Ainda funciona, agora talvez um pouco menos pois muitos já possuem.
3. Desconhecimento da Endodontia
4. Outros
Esse corre por conta de interesses não vinculados diretamente à Endodontia e sim ao entorno dela.
Vamos lá.
- O canal radicular é composto por canal dentinário e canal cementário.
- O local onde se encontram o canal dentinário e o cementário ficou conhecido como limite CDC (Cemento-Dentina-Canal).
- O tecido que se encontra no canal dentinário é pulpar.
- O tecido contido no canal cementário é uma invaginação do ligamento periodontal, portanto, é tecido periodontal.
- O campo de ação do endodontista é o canal dentinário.
- O limite CDC representa o ponto de maior constrição do canal radicular.
Estes são postulados clássicos da Endodontia.
Dito isso, vamos observa-los mais de perto.
Para começo de conversa, diria que até o item 4 não existem dúvidas nem interpretações que possam ser consideradas corretas ou equivocadas.
De maneira simples, direta e objetiva, podemos dizer; é aquilo e aquilo mesmo.
Dali em diante, talvez não.
O limite CDC é algo consagrado na literatura endodôntica.
A partir do conhecimento sobre os tecidos que o compõem e da definição dos seus limites espaciais, tornou-se muito forte o consenso de que ali era o ponto onde deveriam ser estabelecidos os limites apicais de instrumentação e de obturação dos canais.
Apesar de ser periodontal, o tecido contido no canal cementário ficou conhecido como coto pulpar.
O respeito a esse tecido é algo consagrado na literatura endodôntica.
Traumatiza-lo sempre esteve fora de cogitação.
Daí o conceito de que aquela porção final do canal era sagrada.
Ainda que o coto pulpar não mais estivesse vivo e sim necrosado, sem ou com lesão periapical, aquele limite tinha que ser respeitado.
Mas que limite?
O limite CDC.
“O comprimento de trabalho ideal, acordado entre a unanimidade dos autores desde os estudos de Grove, situa-se no limite CDC. Aparelhos eletrônicos promovem a detecção exata da constricção apical”.
Spironelli, CA
Sabendo-se que o canal cementário, e consequentemente o tecido que o compõe, não representavam o campo de ação do endodontista (este era representado pelo canal dentinário), era na constrição apical (CDC) o limite apical no qual deveria trabalhar o endodontista.
Ali ele instrumentava o canal, ali ele o obturava.
Então o comprimento de trabalho do endodontista era… era qual mesmo?
Observando a tabela acima, onde podemos ver uma pequena amostra da diversidade de comprimentos de trabalho recomendada, parecem ficar claras as dificuldades existentes.
Onde finalmente era esse limite?
Onde finalmente o endodontista deveria “parar”?
Ela nos mostra que a depender do autor e da condição tecidual, os comprimentos preconizados são os mais diversos possíveis.
Como recomendar tantas e tão diferentes medidas?
Como exigir precisão diante de tamanha imprecisão?
Afinal, era o conhecimento da anatomia e dos tecidos que constituem as porções finais do canal ou o “achar” de cada professor?
Em outras palavras, era o conhecimento ou a interpretação dele?
“Não há verdades definitivas. Apenas interpretações sobre a realidade, condicionadas pelo ponto de vista de quem as propõe”.
Nietszche
Apesar de esse tema não ter sido percebido e analisado sob essa perspectiva, a tabela nos diz algumas coisas, mas a principal delas:
Ninguém sabe onde é!
Foi nessa onda que chegaram os localizadores apicais eletrônicos.
E o mundo foi salvo.
Os endodontistas podiam “ver” agora com facilidade a impedância dos tecidos que compunham os canais dentinário e cementário.
Ao “apito” do aparelho, sabíamos; cheguei lá.
Cheguei no CDC.
Aqui é o meu limite.
Aqui é onde devo parar.
Pronto, dali por diante, depois da descoberta dos localizadores apicais eletrônicos, finalmente o coto pulpar podia descansar em paz. Estava definitivamente resguardado.
Finalmente, a medida exata, a precisão com que tanto sonháramos.
Saímos mundo afora cantando a oitava maravilha do mundo aos quatro ventos.
Baixaram um decreto.
“A partir de agora, quem não usar localizador apical eletrônico está ultrapassado”.
Pronto!
Mas o mundo não é perfeito.
O mundo da Ciência menos ainda.
Começaram a perceber que não era exatamente daquele jeito.
Ainda existiam problemas, dificuldades a serem contornadas e por razões diversas percebeu-se que a precisão ainda não tinha sido alcançada.
Se já tínhamos avançado para a impedância, avançávamos agora para a frequência.
Agora sim!
Definitivamente aceitos e cantados em prosa e verso por profundos conhecedores da Endodontia, era hora de seduzir o mundo.
Novos aparelhos, novos conhecimentos, novos…
Sim, mas… e a exatidão?
“A nova geração dos localizadores eletrônicos foraminais nos dá uma segurança de 100% na localização do limite CDC”.
Você ainda tem alguma dúvida?
Claro que não.
Como poderíamos, diante de 100% de segurança?
Vamos adiante.
Ser ou não ser! A anatomia é a questão
O encantamento geral terminou sendo inevitável.
Ouve-se falar das maravilhas desses novos aparelhos em todos os lugares.
Cursinhos de endodontia, imersão, vídeos, lives…
Espelho meu, espelho meu, há alguém nesse mundo que não faça live?
Sem dúvida, o localizador é mais um recurso muito bem-vindo e importante para o tratamento endodôntico.
A questão, mais uma vez, é a conotação que deram e dão. Querem por precisão absoluta onde não existe.
Há muito tempo os estudos de anatomia já mostram as peculiaridades dos canais, particularmente no terço apical.
“A constrição do canal só pode ser observada na secção adequada de um corte histológico e este é o único método que permite a determinação do comprimento de trabalho”.
Langeland, K. 1995
Se você ainda não leu Os limites na Endodontia, convido-o a fazer isso para nos entendermos melhor.
Trago de lá a imagem abaixo.
A Ciência tem um péssimo hábito; mostrar a fragilidade das tolas certezas.
Você já parou para pensar o que significa uma “segurança de 100% na localização do limite CDC”?
Observe nas figuras acima que há dois pontos onde se encontram o Cemento-Dentina-Canal (CDC) em cada canal, apontados por setas em verde e vermelho.
Observe também que, como numa radiografia, temos imagens bidimensionais, o que nos faz deduzir pela existência de mais desses pontos na tridimensão.
Pelo que observamos nas imagens acima, como é possível estabelecer precisão com “segurança de 100% na localização do limite CDC” se em um mesmo canal há grande variabilidade na extensão do cemento e, portanto, diferentes pontos onde ele se encontra com o canal dentinário?
“A constrição apical parece ser mais um mito do que uma realidade”.
Walton, R. Princípios e Prática em Endodontia – 1997
“A constrição apical geralmente não existe”.
Wu, MK et al. O Surg O Med O Pathol 2000
“A localização clínica do limite CDC é impossível”.
Ponce, EH e Vilar Fernández, JÁ. J Endod, 2003
“Os nossos resultados indicam que o limite CDC e a constrição apical são dois pontos distintos e que o diâmetro do canal no CDC é sempre maior do que o da constrição apical”.
Hassanien, EE et al. J Endod Abr 2008
A tecnologia se superou.
Ela consegue nos dar “uma segurança de 100% na localização” de algo que não existe.
Não é sensacional?
Anatomia é aquela coisa que douramos quando convém.
As maravilhas do microscópio não seriam tão maravilhosas (a redundância é intencional) se não fosse o sistema de canais.
Sistema de canais!!!
O encantado mundo dos canais invisíveis, istmos, canais laterais…
Que maravilha é pertencer ao maravilhoso (outra vez) mundo da microscopia, onde tudo vemos, onde tudo é possível.
Por outro lado, esse maravilhoso, belo, complexo, impossível, indomável sistema de canais, torna-se pequeno quando o dominamos com um único instrumento, em 40 minutos, em sessão única.
Uma coisa menor, desimportante, à qual impomos a capacidade que nos foi dada pelos deuses da Endodontia de dominar e nos exibirmos diante de exigentes plateias, vomitando o nosso domínio da anatomia.
O maravilhoso, belo, complexo, impossível, indomável sistema de canais, toda essa grandeza então se ajoelha diante da nossa estupidez.
Oh, anatomia, como pretendes ser relevante se és tão desconhecida e desprezada?
Chora o poeta.