Esse texto surgiu como resposta à pergunta de Juliana Medeiros feita no Blog da Endodontia (veja aqui).
Há basicamente três situações em que o tratamento endodôntico é realizado: em canais com polpa viva, polpa necrosada sem lesão e necrosada com lesão.
Você sabe que as maiores chances de sucesso registradas pela literatura estão nos casos de tratamento de canais com polpa viva. Por que? É bem simples e você sabe. Porque não há infecção. Restam-nos as outras duas situações.
De um modo geral, em ambas há infecção. Você sabe em qual situação os percentuais de sucesso são maiores? Nos casos sem lesão. Por que? Porque a infecção é mais “recente”.
A lesão periapical é uma reação imunológica que significa, entre outras coisas, que a infecção do canal já apresenta um considerável tempo de instalada, suficiente para sua disseminação pelo sistema de canais. Em outras palavras, os microorganismos já proliferaram mais e ocuparam os espaços desse sistema (túbulos dentinários e canais laterais, secundários, delta-apicais…).
As limitações do tratamento endodôntico são bastante conhecidas. Já se sabe, e não é de agora, que cerca de 35%, às vezes mais, das paredes dos canais não são tocadas pelos instrumentos. Onde você não toca, não limpa, ou terá muito mais dificuldades para faze-lo. Isso significa que a ação mecânica dos instrumentos, a despeito de ser o passo mais importante para se obter controle de infecção, enfrenta limitações claras nesse sentido.
Ao longo dos anos acreditou-se que, graças a algumas características específicas, as soluções irrigadoras seriam capazes de penetrar nos túbulos dentinários, canais laterais… e eliminar a infecção estabelecida nesses locais. Diversas foram estudadas, indicadas e usadas e associação do hipoclorito de sódio ao EDTA tem sido a que melhores resultados tem proporcionado. Nesse sentido, por razões óbvias, a ação solvente do hipoclorito de sódio tem desempenhado um papel da maior importância, razão pela qual o seu uso é consensual em todo o mundo.
O conhecimento atual, entretanto, deixa algumas dúvidas quanto à plenitude dessa ação por parte das soluções irrigadoras e entre as razões para isso estão a relação do volume da solução/tecido, tempo de ação, o diminuto espaço de alguns componentes do sistema de canais e resistência do ar.
Além das soluções irrigadoras, outras substâncias químicas têm sido propostas para aumentar as chances de controle infecção, e seriam utilizadas entre as consultas, o que lhes permitiria um maior tempo de ação sobre microorganismos residuais e seu substrato. Entre elas, o hidróxido de cálcio, puro ou associado, tem sido a mais estudada e indicada, e a que melhores resultados clínicos tem apresentado. Porém, a despeito de não parecer haver dúvidas sobre a sua capacidade antimicrobiana, também aqui alguns questionamentos foram e são feitos.
Temos então, um conjunto de procedimentos (instrumentação, irrigação e medicação intracanal) que se somam e cujo grande objetivo é exercer controle de infecção, a chave do sucesso.
Tem sido estabelecido que mesmo diante da ação conjunta desses três passos, os microorganismos não são totalmente eliminados, o que permite uma discussão sobre que efeito teria a infecção residual sobre o processo de reparo. É aqui que entra um outro passo do tratamento endodôntico; a obturação.
Apesar de se ter colocado durante pelo menos esses últimos cinquenta anos que todos os passos do tratamento endodôntico são elos de uma mesma corrente, e por isso com a mesma importância, é de uma clareza assustadora o fato de que a literatura sempre conferiu à obturação o papel de fator determinante do sucesso em endodontia.
Vou repetir para não deixar nenhuma dúvida. Apesar de se ter colocado durante pelo menos esses últimos cinquenta anos que todos os passos do tratamento endodôntico são elos de uma mesma corrente, e por isso com a mesma importância, é de uma clareza assustadora o fato de que a literatura sempre conferiu à obturação o papel de fator determinante do sucesso em endodontia.
Tudo isso graças ao vedamento hermético que ela proporcionaria. Ainda que forte e defendida por tantos anos, não se conhece um único trabalho que comprove essa crença. Sabe-se de há muito tempo que vedamento hermético não existe. Os estudos mostram que mesmo as mais recentes técnicas e materiais obturadores não conseguiram alcançar esse objetivo.
Já venho falando há muitos anos que o fator determinante do sucesso é o preparo do canal. A obturação é um complemento, importante, mas um complemento. Se é reconhecido que a ação conjunta da instrumentação, irrigação com soluções de comprovada ação antimicrobiana e solvente tecidual, medicação intracanal idem, não é capaz de eliminar a infecção, não é sensato imaginar-se que a obturação o fará.
Graças aos avanços da medicina, sobretudo no conhecimento científico, tornou-se mais fácil recuperar as condições de saúde dos pacientes. Em qualquer área médica, no entanto, sabe-se que uma patologia disseminada pelo organismo é muito mais difícil de ser eliminada e o maior exemplo disso é um câncer com metástase. Por se constituir em importante elemento de controle de infecção sobre uma doença disseminada, a medicação sistêmica em medicina é fator de fundamental importância para a promoção de saúde dos pacientes.
O controle de uma infecção endodôntica disseminada pelo sistema de canais representa uma dificuldade muito maior para o profissional, razão pela qual os percentuais de sucesso do tratamento de canais que apresentam essa condição são os mais baixos.
Por que será que a
s duas situações, polpa necrosada sem lesão e com lesão, apresentam resultados tão diferentes? Será válida para situações que se mostram tão diferentes a mesma forma de tratar? Existe alguma alternativa de tratamento que possua chances de melhorar o prognóstico dos casos com lesão periapical?
O enfrentamento dessa condição tem sido feito com a realização das três etapas que constituem o preparo do canal – instrumentação, irrigação e medicação intracanal. É possível que a supressão de uma delas venha a representar uma diminuição no potencial antimicrobiano da terapia endodôntica.
As conhecidas limitações da instrumentação e irrigação, brevemente comentadas aqui, para exercer controle de infecção não têm constituído motivo para a sua não realização. Em uma endodontia com o mínimo de seriedade e respaldo científico, não se tem conhecimento da realização de tratamento endodôntico sem ambas. Se não a única, a maior razão para isso é a importância desses passos na busca do controle de infecção do sistema de canais radiculares.
Entretanto, uma instrumentação bem feita, sem a ação química de solução irrigadora, levará à cura em muitos casos, aliás como já demonstrado na literatura. Porém, ao se fazer esse mesmo preparo com o uso de soluções irrigadoras com ação antimicrobiana e solvente, ninguém tem dúvidas de que as chances de sucesso serão maiores. Por que? Porque mais um elemento de combate à infecção foi incorporado ao tratamento.
Ao se sugerir a incorporação de um outro elemento para esse combate, a medicação intracanal, deseja-se tão somente que as chances de sucesso se tornem maiores. Há muitos anos, apoiada em pesquisas científicas sérias e resultados clínicos de profissionais espalhados pelo mundo inteiro, esse procedimento é consensual.
Mais recentemente, porém, surgiu com grande impacto a possibilidade de se fazer aquilo que ficou conhecido como endodontia em sessão única, ou seja, sem a necessidade da medicação intracanal. Algum erro nisso? Nenhum. O grande avanço da ciência e tecnologia na endodontia permite essa alternativa de tratamento. Basta que se respeitem princípios de maneira mais criteriosa.
O exsudato inflamatório assume características e consequências bem diferentes quando expressa a resposta a um tratamento endodôntico realizado em canais com polpa viva e necrosada com lesão periapical. Preconizar a obturação nessas condições, ou seja, na presença de exsudato inflamatório nos casos de infecção, demonstra uma absoluta ignorância dos princípios mais elementares da biologia. Diante de dor pós-operatória em sessão única com lesão periapical, argumentar-se com a prescrição de anti-inflamatório beira a insanidade.
É possível que se diga que não é assim que é preconizado. Será então que só ocorre isso na minha querida Bahia? Não, infelizmente não é. Tenho conhecimento de que vem ocorrendo também em outros locais.
É claro que além de tudo que foi colocado aqui, as características do profissional (indivíduo) devem ser levadas em consideração, tais como conhecimento, habilidade, treinamento, particularidade de cada paciente e/ou caso, etc.
Mesmo tendo sido publicado há sete anos, portanto idealizado e escrito antes, nesse artigo Tratamento endodôntico em sessão única – Uma análise crítica (veja aqui), eu já me colocava favorável à sessão única em endodontia, ressalvadas algumas condições. Mais recentemente, voltei a abordar o assunto aqui mesmo no site e da mesma forma defendi a sua realização sob critérios mais rigorosos (veja aqui).
Não se trata de pedir. Não, não peço. Eu imploro. Imploro que se assuma uma única coisa: seriedade. Até a ignorância ativa pode ser perdoada, mas a falta de seriedade, não. Muita coisa pode, deve e terá que ser discutida sobre esse tema. As diferentes concepções devem ser expostas e debatidas de forma madura, como deve ser em um ambiente que se pretende científico. Infelizmente, não é o que tem acontecido. Um tema da maior importância, cuja tendência é enriquecer a endodontia, infelizmente muitas vezes tem sido discutido não à luz da ciência, da clínica e do bom senso, mas de sentimentos menores, com tomadas de posição e atitudes que levaram a uma guerra surda tola, gerando uma discussão absolutamente estéril.