Por Ronaldo Souza
Mas, professor, como fica o tocar nas paredes do canal?
Não precisa mais?
Ou o senhor já acha que os paradigmas podem ser quebrados sem as evidências necessárias?
Terminamos a primeira parte deste texto com as perguntas acima.
Continuemos.
Não seria interessante ter alguns trabalhos consistentes que mostrem resultados a longo prazo ou pelo menos a médio?
Vamos lá.
Existem inúmeros estudos falando sobre anatomia em Endodontia e poderíamos recorrer a qualquer um deles, inclusive os mais recentes, mas vamos voltar um pouquinho no tempo. Vamos lá atrás para ver há quanto tempo algumas informações importantes estão ao nosso dispor e, pelo visto, são ignoradas.
Em 1958, Green publicou um interessante artigo sobre a anatomia dos canais radiculares, como mostra a figura abaixo.
Vamos ver o que esse trabalho traz de informação importante para os dias atuais.
Como mostra a figura A acima, Green fez cortes em diferentes grupos de dentes a 0,5 e 1 mm e a 5,5 e 6 mm aquém do ápice radicular e examinou ao microscópio.
Deixemos de lado as medidas de 5,5 e 6 mm. Vejamos as de 0,5 e 1 mm e vamos trata-las por igual.
A 1 mm aquém do ápice radicular, medida largamente utilizada como comprimento de trabalho, ele encontrou as configurações do canal que você vê em B e percebeu, como você também pode perceber, que nenhum canal era circular. Usemos a que está apontada pela seta amarela, por ser a que mais se aproxima da imagem que fazemos do canal a 1 mm aquém. Ela é vista em tamanho maior em C.
Observe que ela tem duas medidas, N e W, iniciais de narrow e wide, que significam estreito e largo respectivamente.
Green observou que o menor diâmetro anatômico apical dos canais a 1 mm aquém era, em média, 0,25 mm, o que corresponde à lima 25. Este é o diâmetro anatômico apical, por exemplo, dos canais mesiais do molar inferior.
Como todos sempre imaginaram que os canais instrumentados ficam bonitinhos, certinhos, perfeitamente centralizados, imaginemos que a lima 25 chegou ao CT.
Seria essa imagem que você vê abaixo.
A lima estaria tocando nas paredes da porção mais estreita (N), mas bem distante das paredes da porção mais larga (W).
Você sabe qual é o diâmetro dessa porção mais larga?
Em média, 0,35 mm, o que corresponde à lima 35.
Qual é a lima reciprocante preconizada para instrumentar os canais de menor calibre, como os mesiais do molar inferior?
A lima 25.
Projeto algumas dúvidas no horizonte de certezas dos professores que idealizam e ensinam Endodontia com instrumento único.
- É possível formar uma boa matriz apical em um canal cujo diâmetro anatômico é 0,25 mm instrumentando somente com a lima 25?
- É possível assegurar uma efetiva ação mecânica na busca do controle de infecção, vou repetir, controle de infecção, instrumentando o canal somente com a lima 25, quando algumas partes dele não serão tocadas por apresentarem um diâmetro anatômico apical de 0,35 mm, o que exigiria pelo menos uma lima 35,?
- Posso imaginar algo como “onde eu não toco não limpo”?
- Em outras palavras, é possível que, ao não tocar nas paredes do canal, eu não consiga limpa-lo ou não faça isso com um mínimo de segurança, de previsibilidade como alguns adoram dizer?
- Onde são maiores as minhas chances de conseguir uma limpeza mais efetiva, quando instrumento o canal com instrumento único ou quando o faço com alguns instrumentos na sequência de uso de maiores calibres?
Vou fazer a mesma pergunta do item 5 de outra maneira.
Não importa se 2, 3, 4, 5, quantos forem, conhecendo as discrepâncias entre os instrumentos endodônticos e a anatomia dos canais, as minhas chances de conseguir uma limpeza mais efetiva são maiores quando uso alguns instrumentos para preparar o canal ou quando uso um só?
A simplicidade é recurso de poucos.
Leonardo da Vinci diz que “a simplicidade é o último grau de sofisticação.”
Mas estão confundindo simplicidade com simplismo.
Da inocência para a tolice é um passo.
Sim, neste momento não estou mais falando somente de instrumento único, mas de pensamento simplista, algo muito danoso à Endodontia.
Será que está correta a proposta do instrumento único?
Para não pôr certeza onde certezas têm pouco espaço, diria que, no mínimo, é muito provável que não.
Até que se prove o contrário, o conhecimento da anatomia e o bom senso não permitem pensar assim.
Mas, por outro lado, será que não foi também um equívoco predeterminar que o canal tinha que ser preparado com 4 ou 5 instrumentos?
Não seria mais?
Quem sabe, menos?
Em 2012, publicamos o artigo Apical third enlargement of the root canal and its relationship with the repair of periapical lesions (clique no título) no European Journal of Dentistry, em que os resultados mostraram não haver diferença quanto ao reparo de lesões periapicais entre o grupo I (canais instrumentados até 3 limas) e o grupo II (canais instrumentados até 4 limas).
Encontramos a verdade final?
Longe disso.
É claro que outros precisam confirmar os nossos resultados.
Os resultados do nosso trabalho simplesmente oferecem uma evidência que sugere não existir diferença quando você instrumenta o canal portador de lesão periapical com 4 ou mesmo 3 instrumentos e não com 5 (1+4), como manda a regra. Outros trabalhos podem ir na mesma direção ou na direção oposta,
A regra sugere que nos casos de necrose pulpar os canais devem ser preparados com 5 instrumentos (1+4).
O nosso artigo aponta para o reparo de lesões periapicais com o preparo do canal realizado com 3 instrumentos, o que representa 1+2.
Se projetarmos isso para a figura que mostra acima uma lima 25 ajustada no diâmetro menor (N), veremos que se fizermos a instrumentação com mais 2 na sequência de calibres maiores, chegaremos à lima 35, que corresponde ao diâmetro maior (W) relatado por Green.
Instrumentando com a lima 35, que estaria tocando também nas paredes das porções de maior diâmetro do canal (W) e assim promovendo ação mecânica efetiva sobre essas paredes, onde estariam as minhas maiores chances de promover limpeza? Nessa forma ou com um único instrumento?
Interessante é que, “apesar” dos nossos resultados apontarem para a eficácia do uso de 3 instrumentos, em casos com lesão periapical, não mudamos a nossa orientação.
E qual é a orientação que damos aos nossos alunos?
De instrumentar os canais com algo em torno de 4 a 5 instrumentos.
Quatro instrumentos é igual a dizer 1+3 e cinco é dizer 1+4.
Isso, você está certo!
É exatamente a mesma coisa.
Sabe por que faço isso?
Para fugir da regra do 1+3 e 1+4, porque ela se tornou compromisso obrigatório para vários professores.
Mas percebeu que tem um algo em torno.
Os meus alunos não têm que instrumentar com 3, 4, 5, 6… instrumentos, por uma razão bem simples.
Quem dá as cartas é a anatomia, não o professor.
Os nossos alunos aprendem algo em torno, sempre que possível!
Professor, aqui pra nós, o senhor acha correto querer fazer valer a ideia do instrumento único sem as sempre exigidas evidências que suportem essa visão?
Sem elas, as evidências, dá para sair Brasil afora fazendo cursos de imersão ensinando a preparar canal com instrumento único?
“O aluno sairá apto a realizar o tratamento de canal com lima única”.
Autor (des)conhecido
Incrível!!!
Como ver tamanha tolice e ficar indiferente?
Então agora os cursos de Endodontia não visam mais deixar o aluno apto a realizar o tratamento endodôntico e sim a realizar o tratamento de canal com lima única!
Não se ensina mais a fazer tratamento endodôntico no tempo compatível com cada situação, respeitando-se a capacidade e experiência de cada um? Tem que fazer todos por igual, em sessão única?
Não se ensina mais a fazer tratamento endodôntico de acordo com a anatomia do canal, condição patológica…? Tem que fazer todos por igual, com um único instrumento?
Não se ensina mais a fazer tratamento endodôntico de acordo com cada paciente, respeitando a sua individualidade, a complexidade emocional-afetiva de cada um deles e as eventuais dificuldades que isso pode trazer para o tratamento? Tem que fazer todos por igual, em sessão única e com um único instrumento?
Será que nem de longe dá para desconfiar da insensatez da proposta?
Há como esquecer ou contestar a frase de Martin Trope?
“Uma lima, uma hora, uma sessão. Como matar uma especialidade!”
O que são os jovens?
Todos idiotas, para aceitarem isso passiva e indefinidamente, sem que em nenhum momento venham a refletir e perceber a fragilidade da orientação que estão recebendo?
O senhor, professor, não consegue imaginar a distorção que um marketing desse tipo pode gerar na formação deles?
O que de fato significa tudo isso?
O que está por trás disso?
Qual é o objetivo real?
Será que há alguma informação da qual não temos conhecimento?
Será que há alguma outra coisa qualquer que não percebemos?
Essa outra coisa tem a ver com Endodontia?
Professor, deixe-me lhe dizer uma coisa.
Sabe aquelas coisas que dizem sobre “domínio da anatomia”?
Aquelas frases de efeito tipo “o problema da endodontia são as bactérias, porém o problema do endodontista é a anatomia!”
Pois é.
Alguém diz algo desse tipo e os dadores de curso se encarregam de difundir.
E aí, numa bela manhã de domingo, “descobrem” que dominam a anatomia.
Pretendem que o domínio da anatomia represente a chave para o sucesso na Endodontia.
O domínio da anatomia é o passaporte para a felicidade.
Dominando-a, como dizem, dominam as bactérias.
Dominando as bactérias, têm o controle da infecção.
E auditórios cheios.
Simples.
Muito simples.
Mas como podem mostrar esse domínio se o preparo do canal não tem imagem própria?
De várias maneiras.
Uma delas, a obturação.
“Quando realizamos o preparo do canal com a técnica da FOP-UNICAMP com patência e ampliação do forame apical, é comum o extravasamento (surplus) de cimento, o qual demonstra que a área pela qual houve a saída do excesso foi limpa, deixando livre o caminho para o preenchimento completo”.
Freire, AM
Olha que maravilha! (veja meu comentário sobre essa afirmativa na primeira parte deste texto)
Foi essa a preocupação de Steven Spielberg quando disse que “nós perdemos e devemos recuperar nosso caso de amor com a Palavra. Eu sou tão culpado quanto outros por ter exaltado a Imagem às expensas da Palavra”.
As palavras são usadas assim, soltas, superpostas, vazias, sem nenhum compromisso com elas.
O importante é criar a imagem.
O pedestal está logo ali adiante.
O que me resta?
A dúvida.
Rio ou choro?
Por que historicamente muitas vezes o conhecimento foi retido e se tornou um bem dos predestinados?
Conhecimento é luz e isso o torna incômodo.
A luz costuma fazer caírem as máscaras.
A verdade é que o desconhecimento ainda ocupa espaço relevante na Endodontia.
É esse desconhecimento que permite o surgimento de propostas que, a despeito do seu poder de sedução, muitas vezes não passam de… propostas.
Algumas mirabolantes.
Quantas já vieram, quantas já se foram!
Não se trata de fechar olhos e mentes ao novo, muito pelo contrário.
Abram-se portas e janelas, mas observemos o que chega.
Como disse Chico Buarque:
Não quero o novo pelo novo. Quero o novo pelo que de bom ele pode trazer.
É chegada a hora de fazer uma imersão no desconhecimento.
Luz, por favor.