FHC e sua quarta-feira de cinzas sem fim

FHC e cinzas

Por Ronaldo Souza

A intensidade com que brinquei o carnaval por muitos anos tinha um custo alto.

A quarta-feira.

Ah, como doíam as minhas quartas-feiras de cinzas.

Parecia que o mundo desabava sobre mim.

Lembro de uma em que o trio elétrico ainda insistia em tocar dentro da minha cabeça na quarta-feira à noite.

Ainda solteiro, morando com meus pais, não conseguia dormir.

A minha conexão com o mundo real parecia ter-se perdido.

Não tive dúvidas.

Peguei um colchonete e pus no chão aos pés dos meus pais.

Alheio às notícias que eles viam na televisão, num esforço tremendo fui tentando sair daquele mundo gostoso e surreal.

Aos poucos o som do trio elétrico e todas as imagens que o acompanhavam foram se arrefecendo e, de lá de longe, começavam a chegar sinais cada vez mais perceptíveis do mundo real. As vozes dos meus pais e irmãos já ocupavam espaço bem maior do que aqueles sons que ainda ecoavam da festa.

O carnaval me ensinava, sem que eu já tivesse a devida percepção, os perigos da ilusão, quando a quarta-feira se mostrava mais longa e dolorosa.

Mas haverá sempre outro carnaval.

E a dor das quartas-feiras será cada vez menor.

Há, porém, outras quartas-feiras. Estas, muitas vezes traiçoeiras.

Hoje, imortal pela Academia Brasileira de Letras, Fernando Henrique Cardoso se sente atormentado pela verdadeira imortalidade de um homem que, operário, para ele sempre foi e é inferior.

A sua quarta-feira de cinzas não tem fim.

Sentimentos pequenos lhe corroem qualquer possibilidade de gesto ou ação com o mínimo de grandeza que se pode esperar de um homem que caminha para os 90 anos de idade sem mais nenhuma dignidade.

Diante da condenação do homem que o fez um perdedor, a pobre alma de Fernando Henrique Cardoso ainda encontrou forças para um ato que já não representava mais nada.

Ao dizer após a referida condenação “agora é que começa o jogo”, o pobre FHC pareceu antecipar o que pode ser a frase da sua lápide; “aqui jaz um homem sem honra”.

Nos momentos iniciais da sua crescente pusilanimidade, em que cada vez mais FHC subia os degraus da corrosão moral, houve momentos em que se imaginou que Fernando Henrique Cardoso traía o seu passado.

Mais recentemente, ao se tornar cabo eleitoral de Luciano Huck e apresenta-lo como o novo na política brasileira, como já o fez com João Dória e o faria (e fará caso seja necessário) com Bolsonaro, apontou-se para a sua possível senilidade.

Entenda-se “caso seja necessário” como uma eventual mudança de rumo da Globo na direção do homem que vai metralhar a Rocinha. No outro dia FHC estará com a taça de champanhe para dar as boas-vindas a Bolsonaro como o novo na política brasileira.

Não, não se trata de traição ao passado nem senilidade.

As duas alternativas de diagnóstico estão erradas.

Não se trai o passado quando este é uma farsa.

E esta, a farsa, quando chega o momento, faz com que caia a máscara para então se mostrar inteira.

Por outro lado, não parece sensato acusar a senilidade pelos percalços desse homem.

Pode-se lançar hoje um olhar diferente sobre o desespero de FHC ao dizer anos atrás “esqueçam o que escrevi” e, quem sabe, até entende-lo.

O seu evidente sedentarismo intelectual poderia sim antecipar-lhe a senilidade.

Também poderia ter semelhante papel a sua confortável vida material, desde a longínqua, privilegiadíssima e cara vida na Avenue Foch em Paris, para qual os olhares dos homens da lei que agem fora dela jamais se voltaram.

FHC e apart. em Paris 1

FHC e apart. em Paris'''

FHC e apart. em Paris'

A sua cada vez mais frequente rejeição pelos meios acadêmicos certamente também pesariam nesse sentido.  

Entretanto, o exercício da sua intelectualidade cansada e vencida em textos que ainda parecem exercer fascínio sobre segmentos carentes de um mínimo de razoabilidade nas colunas da nossa decadente imprensa, deve ter algum efeito atenuante sobre isso.

Mas que, ao mesmo tempo, parece não funcionar mais, mesmo entre os seus antigos admiradores.

Veja o que diz em sua coluna nesta quarta-feira de cinzas o jornalista Elio Gaspari, um dos que sempre aplaudiram de pé o ex-presidente.

FHC e Gaspari

Abre aspas
Não se pode responsabilizar FHC pela ruína do PSDB, mas ele foi parte dela. Quando saiu do MDB, acompanhando Mário Covas e Franco Montoro para livrar-se das práticas que o haviam contaminado, buscava algo novo e foi bem-sucedido. O tucanato envelheceu, em vários sentidos.

Indo buscar o ‘novo’ na telinha, FHC e os articuladores da candidatura de Huck atestam o fracasso de suas práticas políticas. Huck é um profissional bem-sucedido no seu ofício, nada mais que isso…

Huck é um bom candidato para quem tem medo de perder eleição, e só. De Sartre a Huck, FHC percorreu sua curva…
Fecha aspas

Em outras palavras, é o fim.

De um homem que a ilusão da festa fez acreditar que tudo aquilo era real.

De um homem que tentaram mostrar ao país como grande presidente, mesmo diante das desastrosas estatísticas do seu governo e que só agora jornalistas como Gaspari começam a mostrar como atestado do “fracasso de suas práticas políticas”.

De um homem que se acostumou a trair seus parceiros do PSDB, como agora mais uma vez faz com Alckmin em favor de Huck.

De um homem que traiu o país dando-o de bandeja aos interesses internacionais, leia-se particularmente Estados Unidos, com a famosa Privataria Tucana, para qual os olhares dos homens da lei que agem fora dela jamais se voltaram.

De um homem cuja vida se tornou um suplício por não conseguir entender e admitir a grandeza de outro homem que, companheiro de lutas anteriores, tornou-o pequeno e desprezível.

É o fim de um homem que já há algum tempo se deixou levar pela decrepitude moral e chega de forma melancólica ao final da vida.

E deixa para trás uma legião de admiradores que jamais teve a menor capacidade de perceber o quanto foi manipulada durante tantos anos.