Filtrando os filtros

Por Ronaldo Souza

Levantar a bandeira contra a corrupção e fazer dela uma “luta diária” é uma das melhores, mais práticas e acertadas formas de oportunismo e de esconder a própria corrupção de maneira que poucos percebam.

A experiência ensina que é muito comum o corrupto assumir a linha de frente do combate à corrupção.

Não precisa fazer nenhum esforço para confirmar, basta observar o momento atual.

Não pense que o moralismo é novidade.

Há muito tempo é assim, pelo menos no Brasil.

Em vários momentos da nossa história isso ocorreu e sempre com a participação decisiva da imprensa, judiciário e boa parte dos políticos brasileiros.

A participação da sociedade se dá de duas maneiras; através dos donos do dinheiro bancando a empreitada (o custo é alto) e a pressão que passa a existir por parte de alguns segmentos que se deixam enganar sempre e muito facilmente.

Chega a um ponto em que quem se põe no meio do caminho tentando desmascarar o “conto do vigário” (expressão antiga usada em Portugal e no Brasil que define uma história criada para enganar alguém), passa a ser taxado de corrupto.

E aí, inocentemente ou mal intencionadas (nos tempos atuais a segunda alternativa tem sido o padrão), essas pessoas que lutam contra “a corrupção que tomou conta do país” saem chamando os outros de corruptos.

Qualquer pessoa que tenha o mínimo de inteligência e discernimento percebe isso facilmente, particularmente nas redes sociais.

Nelas vivem e delas se alimentam pessoas que são conhecidas dentro de suas categorias profissionais e especialidades como desonestas, mas que aos domingos costumam ir ao Farol da Barra e às demais avenidas paulistas espalhadas pelo país com as suas indefectíveis camisas amarelas da CBF (padrão FIFA) para protestar contra a… corrupção.

Achando pouco, alguns chegam a se enrolar na bandeira brasileira, numa demonstração inequívoca do amor pelo país e de que são exemplares pessoas do bem.

Deixemos de lado a hipocrisia, também tão em moda atualmente. São facilmente identificados, reconhecidos e citados em conversas informais.

Só eles não sabem disso.

Por mais que sejam desonestos, como muitos são, por mais que sejam cínicos, como muitos são, por mais que sejam canalhas, como muitos são, como falar deles?

A ética não permite.

Ética!

Como Democracia, é uma palavra que anda na boca de todos e que se tornou algo sem valor.

Tão repetidas que são, ambas se tornaram vulgares e provocam irritação só em serem ouvidas.

Veja o futebol, para muitos um ambiente não muito recomendável.

Observe que quando um comentarista, um repórter, um jornalista, seja o que for, fala mal de um jogador, não se considera algo antiético.

Mas quando um comentarista fala de outro comentarista, isso é antiético.

Quando um repórter fala de outro repórter é antiético.

Da mesma forma, quando um jornalista fala de outro jornalista.

A mesma coisa se o jogador fizer isso com relação a outro jogador.

Aproveito e abro um parêntese.

Há muitos anos fiz parte do Departamento Médico do Bahia e um dos ambientes mais éticos que conheci foi o dos jogadores.

Diria que praticamente não ouvi um jogador falar mal de outro (um em particular não era respeitado por eles e acho que foi o único que vi não ser poupado).

Talvez muitos estranhem o que acabei de dizer (não sei como é hoje, muita coisa mudou), mas conviver um pouco com eles me ensinou algumas coisas.

Fecho o parêntese.

Por que eu disse que o futebol é “para muitos um ambiente não muito recomendável”?

Todos achamos que o futebol não é um ambiente recomendável pelo “baixo nível” dos jogadores.

Infelizmente, devemos reconhecer que muitos jogadores de futebol têm origem em estratos sociais menos favorecidos sob o aspecto socioeconômico, o que leva a uma educação formal de nível inferior ou até inexistente.

Como consequência, somos induzidos a um erro grosseiro; confundir esse aspecto com caráter.

Onde eu disse “aproveito e abro um parêntese”, agora faço questão de reafirmar; foi entre os jogadores de futebol onde vi um dos mais fortes exemplos de ética.

Não teria muitas facilidades para dizer a mesma coisa em relação a outros segmentos sociais com os quais convivi e convivo.

Olhe à sua volta.

Por que precisamos de Conselhos de Ética nas nossas profissões?

Por que precisamos de Conselhos de Ética nos nossos cursos de graduação e pós-graduação?

Quem são os professores de Ética?

Você os conhece bem?

Já parou para pensar nisso?

Quais são os resultados práticos desses cursos?

Ética é algo ensinável?

Ética é algo que se aprende?

Freios e filtros

Ao longo dos séculos as sociedades precisaram de freios, que foram sendo instituídos de diversas maneiras.

O maior deles, sem dúvidas, a religião nos diz muita coisa e daí podemos tirar, quem sabe, o maior exemplo; os Dez Mandamentos, da Igreja Católica.

Até que ponto sociedades ou segmentos sociais mais desenvolvidos poderiam “dispensar” esses freios?

E os códigos e conselhos de Ética?

Diante dos tantos questionamentos (alguns vistos aí em cima) que parecem existir com relação a eles, quem poderá nos dizer que somos éticos ao falar de um jogador de futebol, mas não somos se falarmos de um colega de profissão?

Por que?

Quem poderá nos julgar?

Quem poderá nos condenar?

Sem dúvida, este é um tema muito delicado, mas há nisso tudo uma questão muito importante.

Que prejuízos o gesto, a palavra ou a ação do profissional traz ou pode trazer a um colega ou à classe?

Por que gestos, palavras ou ações no sentido contrário e que, portanto, visam proteger colega e/ou classe são passíveis de condenação moral ou mesmo judicial?

Mais do que freios, em sociedades ou pelo menos em segmentos sociais desenvolvidos, filtros seriam bem mais adequados a situações assim.

Freios são imposições da sociedade, que para isso conta com a ajuda de instituições como a Igreja e o judiciário.

Os freios costumam ser punitivos, expressão de sociedades ainda repletas de seres subdesenvolvidos.

Filtros são atributos adquiridos pela educação continuada, pelo desenvolvimento civilizatório.

Por isso, mais do que filtros sociais, eu os chamaria de filtros civilizatórios.

Apesar de não ser tão simples (precisaríamos de uma educação muito apurada, que só investimentos e tempo poderiam trazer), certamente seriam, se não a solução, mecanismos importantes nesse processo.

Freios são necessários?

Ainda sim, porque sociedades civilizadas ao ponto de elimina-los exigiriam muitos recursos, de investimentos e tempo.

Mas se freios ainda são necessários, deveriam existir em quantidade e intensidade menores.

A barbárie nada exige, a não ser bárbaros e estes ainda existem em todo o mundo.

A civilização, ao contrário, é muito exigente.

Muitas gerações são necessárias para que de fato o processo civilizatório de um povo manifeste os seus primeiros sinais.

Estamos no caminho certo?

Uma coisa é certa. 

O fracasso dos códigos e conselhos de Ética e o fracasso de medidas meramente punitivas em detrimento à educação da sociedade parecem saltar aos olhos e refletem uma sociedade com grande atraso do seu processo civilizatório.

É claro que filtros, como tudo mais, também precisam de análises constantes.

Observando-os recentemente com mais atenção, percebi que alguns me seguraram demais quando me fizeram impotente diante de colegas que não apresentavam comportamento compatível com o juramento profissional, feito naquela noite inesquecível em que tudo foi festa.

Diante dos erros cometidos, o que poderia ter sido feito?

Olhando-os com mais atenção agora, vejo que alguns ainda me seguram quando me fazem outra vez impotente diante de professores que se perderam em compromissos que vão além, mais do que deveriam, daqueles assumidos pelo professor ciente do seu papel.

A omissão diante do visto traz enorme desconforto nesses bons mas duros tempos em que a lucidez se tornou uma cruel companheira.

Seria melhor ficar cego.

“Se tivesses olhos para ver o que sou forçada a ver todos os dias, também quererias ficar cego”.
Personagem de (José) Saramago, no seu antológico livro “Ensaio sobre a Cegueira”.

A cegueira é amiga, traz conforto.

“O que os olhos não veem, o coração não padece”.

A lucidez fere, machuca e lhe tira o sono.

“Vocês não sabem o que é ter olhos num mundo de cegos… sou simplesmente a que nasceu para ver o horror”.
Mesma personagem, no mesmo livro.

Aí está o grande dilema.

Não sou cego.