Por Ronaldo Souza
Por muitos anos, o canal dentinário foi tido como “o campo de ação do endodontista”.
Isso significa dizer que o endodontista não devia ousar ir além desse limite; não lhe competia qualquer ação no canal cementário.
No tratamento de canais com polpa viva ou necrosada, não importava, o canal cementário era uma região sagrada, intocável.
Lembremos que ali reside o que se conhece como coto pulpar.
O surgimento do conceito de patência apical (Stephen Buchanan, 1989), “um instrumento fino usado passivamente através da constrição apical sem amplia-la”, incorporou ao arsenal do endodontista a lima de patência, mas, sobretudo, mudou a relação do endodontista com aquela porção final do canal.
Proposta para evitar que raspas de dentina se compactassem nas porções finais do canal e assim interferissem no comprimento de trabalho, imaginou-se também, e alguns assim escreveram, que a patência apical faria a limpeza das referidas porções.
Daí foram surgindo diversas intepretações, muitas delas equivocadas e que trouxeram confusão e incompreensão sobre o tema.
“A instrumentação deve ser feita em um nível suficientemente profundo para remover ou pelo menos reduzir significantemente os microrganismos”.
Wu, MK et al. O Surg O Med O Pathol O Radiol Endod Jan 2000
O que significa um nível suficientemente profundo???
Onde é esse nível?
Incrivelmente vaga e em cima do muro, a frase de Wu e colaboradores nada define e em nada ajuda.
Vamos ver isso mais de perto.
Cavidade pulpar
A cavidade pulpar é dividida em câmara pulpar e canal radicular e este em canal dentinário e canal cementário.
O canal dentinário representa a porção mais extensa do canal radicular e o cementário é significativamente bem menor.
A partir do terço cervical, o canal dentinário apresenta paredes convergentes em direção ao terço apical e lá se encontra com o canal cementário. Este, contrariamente, apresenta paredes divergentes até o seu final, quando já em contato com os tecidos periodontais.
Esse ponto onde os dois tecidos se encontram ficou conhecido como limite CDC; Canal-Dentina-Cemento. O limite CDC representaria o ponto de maior constrição do canal e ali se determina o comprimento de trabalho. Além disso, é também chamado por alguns autores de forame menor, uma definição anatômica pouco conhecida.
Teríamos assim dois forames, o forame apical menor e o forame apical maior, este sim, bastante conhecido, simplesmente como forame apical.
O forame apical menor, ainda “dentro” da raiz, representa o ponto de maior constrição do canal, enquanto que o forame apical maior, bem mais amplo que ele, representa a saída do canal da raiz.
Esse espaço entre os dois forames apicais constitui o canal cementário, de extensão tão variável quanto o canal dentinário.
O tecido contido no canal dentinário é polpa e no canal cementário é periodontal.
Como foi dito, imaginou-se por muito tempo que o limite CDC existia como um ponto bem definido e era o local mais constrito do canal.
Há muito tempo, porém, essa concepção não faz mais nenhum sentido. O conhecimento atual não permite mais pensar assim.
E o marketing pessoal não pode se sobrepor à Ciência porque isso torna a Endodontia menor.
Não se trata de uma questão de tecnologia, como alguns imaginam.
É uma questão de anatomia.
O encontro entre a dentina e o cemento se dá em diferentes níveis no mesmo canal e não em um único local.
“Há uma grande variabilidade na extensão do cemento no canal”.
Ponce, EH e Vilar Fernández, JA. J Endod Mar 2003
Observe a figura A. Nela está o limite CDC como se imaginava há anos atrás. Não é o que se vê nas figuras B e C.
Mesmo mostradas sob a perspectiva bidimensional, como se estivéssemos olhando duas radiografias periapicais, vemos que as setas vermelhas e verdes nas figuras B e C apontam para os locais onde se encontram a dentina e o cemento no canal.
Tomemos a figura C como exemplo. Onde “a nova geração dos localizadores eletrônicos foraminais nos dá uma segurança de 100% na localização do limite CDC”? No local para onde aponta a seta vermelha, a 1,5 mm aquém do ápice, ou a seta verde, a 2,1 mm?
Considere-se ainda que numa imagem tridimensional é bem possível que em outras paredes do canal o encontro entre a dentina e o cemento ocorra em locais mais diversos ainda.
Nem que fosse como no desenho da figura A, a nova geração dos localizadores eletrônicos foraminais nos daria uma segurança de 100% na localização do limite CDC, graças a outras peculiaridades anatômicas da “zona crítica apical”.
Não existe limite CDC. Existem limites CDC!
Um conhecimento que pode parecer recente, mas não é. Existe há muitos anos.
“O encontro dessas estruturas, canais dentinário e cementário, não se dá em um único ponto, isto é, existem vários pontos de união do cemento com a dentina. Em outras palavras, há vários limites CDC, portanto,…”
Está escrito exatamente assim, inclusive com o negrito, na página 11, Capítulo 2 (Limite Apical de Trabalho), do livro Endodontia Clínica, 2003.
Ainda a se considerar, o limite CDC também não representa o ponto mais constrito do canal.
Como poderia se esse ponto não existe?
O conhecimento atual nos ensina que seria muito mais uma zona de maior constrição do que um ponto.
Já sabemos que o canal cementário apresenta extensão bastante variável, mas para efeito didático, digamos que seja de 1 mm, provavelmente o comprimento de trabalho mais aceito atualmente.
Independente de ponto ou zona de constrição, se as paredes do canal dentinário convergem em direção ao ápice radicular e as do cementário divergem, deverá haver algum local de estreitamento do canal, que será maior ou menor em função de algumas características anatômicas de cada raiz, de cada canal.
Patência foraminal
Buchanan define patência apical como “um instrumento fino usado passivamente através da constrição apical sem amplia-la”.
Que fique bem claro desde já que nessas condições, “um instrumento fino usado passivamente…”, não se pode associar patência apical com limpeza do forame, como tem sido dito.
Patência apical é uma coisa, limpeza do forame é outra completamente diferente.
Façamos uma recapitulação.
Recapitulação é a palavra intencionalmente utilizada aqui para mostrar que a patência apical é semelhante à recapitulação, que tanto se fazia quando se usavam as técnicas escalonadas para instrumentar os canais.
O objetivo da recapitulação era evitar que as raspas de dentina geradas durante a instrumentação em diferentes níveis se acumulassem e compactassem nas porções finais do canal, frequentemente promovendo a perda do comprimento de trabalho (CT).
Isso era feito com o que se chamou de instrumento memória.
O que é a patência apical se não evitar que as raspas de dentina se acumulem e compactem nas porções “mais” finais ainda do canal, que frequentemente promovem a perda do acesso ao forame?
Isso é feito com o que se chama de instrumento de patência.
Detalhe.
O instrumento memória então determinado era o último que tinha instrumentado no CT, geralmente a lima K 25.
Nesse procedimento havia um equívoco.
Ao preconizar o último instrumento como o de memória, esquecia-se de que, estando de uma certa forma ajustado ao calibre por ele deixado, era grande a possibilidade de que, ao voltar ao CT para fazer a recapitulação, ele funcionasse como o êmbolo de uma seringa, “empurrando” o que estivesse à sua frente.
Pela mesma razão, não recomendo que a lima de patência esteja ajustada ao forame.
“A patência foraminal é então testada a cada troca de instrumento, sempre com a lima de patência, que corresponde à última usada na limpeza de forame”.
Lopes, H; Siqueira Jr, JF; Elias, CN. Endodontia-Biologia e Técnica 2015
A minha recomendação é a de que a lima de patência seja sempre mais fina do que aquela que se ajustou. Sempre que possível, pelo menos 2 calibres a menos.