Por Ronaldo Souza
Canal cementário
Como foi dito na 2ª parte deste texto, alguns autores chamam de forame menor aquela porção do canal que corresponderia ao limite CDC/ponto de constrição (linha amarela na figura 1). Dali o canal se continua até o forame apical, chamado pelos mesmos autores de forame maior, que constitui a saída do canal da raiz (linha preta na figura 1).
Esse espaço entre o forame menor e o maior constitui o canal cementário (seta dupla azul na figura 1).
Percebe-se com relativa facilidade que a anatomia dessa região, particularmente no que concerne às dimensões dos dois forames, o menor e o maior (Fig. 1), tem gerado muita incompreensão sobre patência apical e ampliação foraminal.
Já conversamos sobre esses dois temas na primeira e segunda parte respectivamente deste texto e expliquei porque essas expressões, apesar de consagradas, não são adequadas e contribuem para o entendimento equivocado generalizado que existe a respeito dessa questão.
Forame é o nome dado a uma abertura para passagem de vasos e nervos em ossos ou entre ligamentos.
Esta é uma definição simples, interessante e objetiva de forame da Wikipédia.
O forame apical é representado então pelas linhas pontilhadas em preto (Fig. 1) e azul (Fig. 2B).
Quando você diz que preparou o canal está dizendo que preparou o comprimento de trabalho (CT) ou que preparou todo o canal?
Você não diz que preparou o CT e sim que preparou o canal, porque sabe que a infecção está em todo ele.
Por outro lado, sempre que se diz que o canal foi preparado fica subentendido que foi o canal dentinário, afinal ele sempre foi e ainda é tido como “o campo de ação do endodontista”.
As imagens da figura acima são da dissertação de mestrado do Prof. Francisco Ribeiro (UFES).
Observe o retângulo preto que envolve o canal cementário e pequena parte da lesão periapical na figura 2 A. Essa imagem é vista em maior aumento em B.
A seta vermelha aponta para uma “colônia” de neutrófilos tentando entrar no canal para combater a infecção contida nele.
Não há como.
As “estradas” foram cortadas.
Como não há mais circulação sanguínea (é uma polpa necrosada), os neutrófilos ou qualquer outra célula de defesa não têm como ter acesso ao canal.
Observe também em B que em toda a extensão do canal cementário, as suas paredes apresentam reabsorções.
Essas reabsorções estão povoadas por bactérias Gram negativas e Gram positivas, como mostra o Prof. Francisco Ribeiro no detalhe de uma delas na figura 2 C.
Vamos juntos?
Todo o canal cementário está infectado.
Sendo assim, o que deve ser feito?
O mesmo que você faz quando prepara o canal dentinário; instrumentar o canal cementário.
Não só para remover o conteúdo da “luz do canal” cementário como também o que está aderido às suas paredes.
Para entender mais facilmente essa questão, sugiro que, se você não leu a 2ª parte deste texto leia agora, como também a leitura do artigo “Relationship between Files that Bind at the Apical Foramen and Foramen Openings in Maxillary Central Incisors – A SEM Study”. Souza, RA; Sousa, YTCS; Figueiredo, JAP; Dantas, JCP; Colombo, S; Pécora, JD (leia aqui).
Deixemos de lado o fato de que o canal cementário varia bastante na sua extensão e que teria, portanto, diversos comprimentos e consideremos que ele apresenta 1 mm de extensão, medida largamente utilizada como comprimento de trabalho.
Uma vez que a infecção, além de instalada no canal dentinário, também está contida no cementário, como demonstra amplamente a literatura endodôntica, por que a instrumentação do canal teria que ser feita somente no canal dentinário?
Qual o sentido que existe em se instrumentar somente o canal dentinário se o cementário, tal qual ele, também está infectado?
Essa resistência está amparada em evidências ou se escora no paradigma de que o canal dentinário é o campo de ação do endodontista e somente ali cabe a ele trabalhar?
Estabelece-se uma norma e pronto?
É assim?
Ninguém ousa repensa-la?
A imaginação é mais importante do que o conhecimento
Digamos que alguém acha que não há evidências suficientes que suportem esse procedimento.
Se as evidências existentes ainda não são em quantidade suficiente, para onde nos leva a nossa inteligência?
Ou ela não nos leva a lugar nenhum?
Para onde nos leva a nossa imaginação?
Diz Einstein que “a imaginação é mais importante do que o conhecimento”.
Como imaginar um canal preparado sabendo-se que uma porção dele permaneceu infectada?
Como imaginar que à luz do conhecimento atual, que mostra a presença da infeção no canal cementário, o endodontista deve ficar preso às determinações de quando não existia esse conhecimento?
Observe novamente as figuras 1 e 2 B. Onde estão os forames apicais nessas imagens?
Nas linhas pontilhadas em preto e azul respectivamente, confere?
E na figura abaixo? No círculo pontilhado em B.
Perceba que o forame apical, como foi dito na 2ª parte deste texto, é a saída do canal cementário da raiz.
Instrumentação do canal cementário – o novo conceito
Vou fazer duas perguntas cujas respostas parecem óbvias.
O canal cementário tem paredes?
Sim.
O forame apical tem?
Não.
Apesar de alguns pensarem assim, o forame apical não possui paredes.
Representado neste texto pelas linhas pontilhadas mencionadas, o forame apical é tão somente o final das paredes do canal cementário.
Forame é o nome dado a uma abertura para passagem de vasos e nervos em ossos ou entre ligamentos.
Lembra?
No caso da Endodontia, por onde passam os vasos e nervos que compõem o tecido conjuntivo pulpar.
Vejamos algumas definições do Dicionário de Termos Médicos:
Forame aracnoide – abertura mediana do quarto ventrículo
Forame carótida – abertura de cada extremidade do canal carotídeo na porção pétrea do osso temporal
Forame dextrum – abertura diafragmática por onde passa a veia cava inferior
Forame infraorbital – abertura externa do canal infraorbital na superfície do corpo da maxila
Estão consagrando outro equívoco, como fizeram com o coto pulpar.
O coto pulpar é conhecido como coto pulpar sem ser coto pulpar.
A construção da frase é intencional.
Quando lhe dizem coto pulpar você pensa nele como tecido periodontal?
Claro que não.
E o que ele é?
Tecido periodontal.
Ah, mas não tem importância, já está consagrado.
Legal!
E aí os nossos alunos morrem sem saber o que, na verdade, é o coto pulpar.
Como posso ser um bom endodontista se não sei o que são e como reagem os tecidos que trato?
Simples.
Vá lá, entre no canal, alargue e obture bonito.
Fez isso?
Fez rapidinho?
Ficou bonita a obturação?
Fez surplus?
Pronto.
Você é um endodontista de excelência!
Seu professor?
É o cara.
É nas paredes do canal cementário que ocorrem as reabsorções (figura 2 B) e é o detalhe de uma dessas reabsorções que é visto povoado por bactérias na figura 2 C.
Não alcançadas pela instrumentação convencional do canal e fora do alcance do sistema imune, elas habitam o canal cementário.
É isto que precisa ser entendido; a necessidade da instrumentação do canal cementário para efeito de limpeza, para efeito de remoção do seu conteúdo necrótico e infectado.
Para efeito de controle de infecção.
Não se trata de ampliar o forame.
Este é um conceito equivocado.
É o mesmo que se usa para alargar canal.
Devia ser proibido “alargar canal”.
Devia ser ensinado como preparar o canal.
Enquanto não aprendermos a diferença entre uma e outra coisa, continuaremos nessa mesmice que não consegue alterar o panorama da Endodontia.
E tome retratamento!
E tome cirurgia parendodôntica!
E tome extração!
E tome implante!
Por que diante de tantos bons instrumentos/técnicas de instrumentação e de tecnologia a literatura registra que os nossos percentuais de sucesso não se modificam ou não o fazem de forma significativa?
Porque usamos os bons instrumentos/técnicas de instrumentação e a tecnologia para alargar e obturar os canais e não para, de fato, fazer bons preparos de canais.
Ao se enfatizar muito a modelagem e não o preparo do canal, como tem sido feito, comete-se um grande equívoco.
Modelagem é escultura, modelar é esculpir, e isso é usado para dar ao dentista ares de um refinado artesão, como historicamente sempre se fez e se faz ainda hoje.
Preparar o canal é voltar-se para um ato operatório em que o conjunto da ação mecânica/física/química visa fundamentalmente o controle da infecção, seja evitando a sua instalação, seja “eliminando-a” caso já tenha se instalado.
“O tratamento endodôntico é fundamentalmente o manejo clínico de um problema microbiológico”.
Figdor, D. Periodontite apical. Oral Surg, Oral Med, Oral Pathol… Editorial, Dez 2002
Da mesma forma que patência foraminal e ampliação foraminal são coisas distintas, ampliação foraminal e instrumentação do canal cementário são conceitos diferentes.
Há equívocos também na maneira de executa-lo.
Enfim, adotou-se um procedimento sem o devido entendimento do que realmente significa e de como faze-lo e assim uma grande corrente foi formada.
Formou-se uma confraria.
Muitos hoje fazem parte desse movimento e em nome dele dizem coisas completamente equivocadas.
E eles se acham!
A plateia ainda aplaude, ainda pede bis
A plateia só deseja ser feliz
(Gonzaguinha)