Marina, morena Marina, você se pintou*
Marina, você faça tudo, mas faça o favor
Não pinte esse rosto que eu gosto, que eu gosto e que é só meu
Marina você já é bonita com o que Deus lhe deu
E Deus lhe deu, Marina, mais do que esse rosto que eu gosto. Deus lhe deu a sorte de ter nascido humilde, lá no longínquo Acre, terra de Chico Mendes. Lembro de Cora Coralina quando ela diz que “o saber aprendemos com os mestres e nos livros. A sabedoria aprendemos com a vida e com os humildes”. Não tenho nenhuma dúvida, Marina, de que você aprendeu muito com os humildes, porque assim você sempre foi.
Será que lá, no longínquo Acre, vocês dizem lá no longínquo (estado) São Paulo, lá no longínquo Rio de Janeiro? Não é tudo muito distante? São milhares de quilômetros.
Existem algumas distâncias que são nada, Marina. Essa é uma delas. A tecnologia que o homem desenvolveu permite-lhe superar todas essas barreiras, todos esses obstáculos. Mas existem barreiras, Marina, que mesmo o homem do século 21 não consegue superar, são intransponíveis.
Imagine Marina, várias crianças brincando. Não há barreiras entre elas. Não importa se são negras, brancas, amarelas, nascidas no longínquo Acre. Crianças, o mundo perfeito. Observe quando chegam a adolescência e depois à fase adulta. Surgem as barreiras. Confesso que não entendo muito bem, mas parece que alguns começam a mostrar que há diferenças, que não somos iguais, não somos mais crianças, alguns possuem mais direitos. Pronto, o mundo deixou de ser perfeito. Essas diferenças, Marina, tenho certeza que você sabe, tornam-se maiores para quem é, por exemplo, do longínquo Acre. Você as viu de perto. E aí, Marina, o longínquo Acre se torna cada vez mais longínquo. Essa distância não diminui, às vezes me dá até a impressão de que ela aumenta.
Às vezes, Marina, de tão distantes e diferentes, parece que existem dois mundos. Em um deles, existem florestas, o verde, os rios, as crianças, a esperança. No outro, também há o verde, mas não o das florestas. Também há rios, mas não os de águas claras e límpidas. As crianças e a esperança, Marina, viraram programa de televisão uma vez por ano.
Marina, morena Marina, você se pintou. Voce se pintou com o verde de Fábio Feldmann, o verde do Jardins. Voce se pintou com o verde de Gabeira, o verde de Ipanema. E nós, Marina, adultos que ainda teimam em ver o mundo como crianças, vimos a esperança ir embora. Foi triste Marina, vê-la, descaracterizada, esquecer o verde da Amazônia. Foi triste vê-la esquecer o verde de Chico Mendes. Não reconheci esse rosto que eu gosto e que é só meu.
As luzes da ribalta encantam e seduzem todos os protagonistas, poucos resistem a elas, mas frequentemente são cruéis com os coadjuvantes. Como deve estar se sentindo Chico Mendes, um homem humilde com quem, tenho certeza, você aprendeu, ao ver que não foi o verde dele que veio para a avenida. Ao ver que usaram o nosso verde, o das florestas, dos rios, das crianças, do longínquo Acre, para dar passagem a um verde que só despreza o nosso verde. O verde dos nossos mares, Marina, em breve, também pertencerá a outros povos, porque os nossos mares guardam um enorme tesouro nas suas profundezas.
O protagonismo sem sustentabilidade (eu gosto dessa palavra) dá lugar a uma ação coadjuvante quase que logo em seguida. Não queria estar em sua pele.
A História lhe aguarda Marina, morena Marina.
* Trecho de uma música de Dorival Caymmi