Não, não somos racistas

Não li mas já vi comentários sobre o livro “Não somos racistas” de Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo. Por pequenos trechos que pude ver e pelos rumos que já tinha tomado o jornalismo daquela rede, e que se acentuaram com ele, não é estimulante. Da mesma forma que não foi quando me deram de presente “Gota de Sangue – História do Pensamento Racial”, do sociólogo Demetrio Magnoli. Corri até a livraria e troquei por outro. Explico.

Não tenho, infelizmente, o tempo que gostaria para a leitura fora da minha profissão, de tal forma que tenho que selecionar bem o que leio. Como professor de área de saúde tenho que estudar e escrever sobre a minha especialidade, o que não me tira “das minhas leituras”, mas diminui o tempo delas. Assim, fica muito difícil ler um livro sobre racismo de quem não consegue disfarçar o seu.

O título acima não vem do livro do Sr. Kamel, mas da conotação que lhe deu o jornalista Paulo Henrique Amorim.

A questão do racismo e do preconceito é muito mais complexa do que se possa imaginar e se quer enxergar. Ela é percebida a todo instante no dia-a-dia, pelos detalhes sutis e pelos não sutis. O deputado Jair Bolsonaro, por exemplo, poço de sensibilidade e bom senso na vida pública brasileira (também na privada, livre interpretação) não admite que é racista, imagine. Quem admite? Ainda mais agora que é crime.

Não conheço o ex-deputado José Carlos Aleluia. Só sei, isso pude acompanhar pela sua trajetória política, que se trata de alguém que não deve olhar para as pessoas de frente. Por fazer parte de um grupo político cujo único feito de destaque foi a obediência total, sem qualquer possibilidade de uma atitude própria, ao seu líder, não se pode esperar dele grandes atos.

Depois da repercussão (negativa) de um post seu no próprio site atribuindo à jornalista Marília Gabriela declaração contundente sobre Dilma Rousseff durante a campanha presidencial, e diante da ameaça de ser processado, o ex-deputado Aleluia correu e retirou o texto.

O Sr. Aleluia não foi eleito na última eleição, em outubro de 2010, o que o torna um ex-deputado. Pelo que li, ele mantém contato com os seus eleitores (!!!) através do seu site (não conheço). Expressão nacional que é, resolveu enviar uma carta cobrando explicações à Universidade de Coimbra pela concessão do título de Doutor Honoris-Causa ao Sr. Luis Inácio Lula da Silva.

Como definir o indefinível? Acho que nem o deputado Bolsonaro, com a sua sabedoria, conseguiria. Grande repercussão negativa. Acabei de ler que, outra vez, para variar, o engenheiro Aleluia correu e modificou o texto postado.

Esse episódio é de uma complexidade tamanha que caberia uma discussão profunda por parte da sociedade. Por outro lado, ele é de uma clareza tão grande, que não precisa de discussão nenhuma. Na minha indefinição, prefiro que você leia Mauro Santayana.

De olhos opacos no turbilhão do mundo

Mauro Santayana

O engenheiro baiano José Carlos Aleluia enviou carta ao Reitor da Universidade de Coimbra, protestando contra a concessão do título de Doutor Honoris-Causa ao operário Luis Inácio da Silva, que, com o apelido afetivo de Lula, presidiu ao Brasil durante oito anos. Sem mandato, Aleluia mantém contatos com seus eleitores, mediante um site na Internet.

Ele foi um oposicionista inquieto, ocupando, sempre que podia, a tribuna, no ataque ao governo passado, dentro da linha sem rumo e sem prumo do DEM. Aleluia considera uma ofensa às instituições acadêmicas o titulo concedido a Lula, e faz referência elogiosa à mesma homenagem prestada ao professor Miguel Reale. Esqueceu-se, é certo, de outros brasileiros honrados pela vetusta universidade, como Tancredo Neves. Não é preciso conhecer a teoria de Freud para compreender a escolha da memória de Aleluia.

O título universitário é, hoje,  licença profissional corporativa. O senhor Aleluia está diplomado para exercer o ofício de engenheiro. A Universidade o preparou para entender das ciências físicas, e é provável que ele seja  profissional competente, tanto é assim que ministra aulas. O título universitário certifica que o graduado estudou tal ou qual matéria, mas não faz dele um sábio. O conhecimento adquirido na universidade é importante, mas não é tudo. Volto a citar, porque a idéia deve ser repetida, os versos de um escritor mais identificado com a direita do que com a esquerda, T.S. Elliot, nos quais ele mostra a diferença entre ser informado, conhecer e saber: Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?

O título de Doutor Honoris-Causa, sabe bem disso o engenheiro Aleluia, não é  licença profissional, mas o reconhecimento de um saber, construído ao longo do tempo, tenha o agraciado ou não freqüentado a universidade. O papel da Universidade não deveria ser o que vem desempenhando – o de conferir certificados de preparação técnica -, mas o de abrir caminho à busca do saber. O Senador Christovam Buarque, com a autoridade de quem foi reitor da UNB, disse certa vez que a Universidade ideal será aquela que não expeça diplomas.

Lula, com os seus defeitos, e não são poucos, é um doutor em política. Um chefe de Estado não administra cifras, não faz cálculos estruturais, não prolata sentenças, nem deve escrever seus próprios discursos. Cabe-lhe liderar os povos e conduzir os estados, e isso dele exige muito mais do que qualquer formação escolar:  exige a sabedoria que desconfia do conhecimento, e o conhecimento que se esquiva das informações não confiáveis.

A universidade é uma instituição relativamente nova na História. Ela não foi necessária para que os homens, com Demócrito, intuíssem a física atômica; com Pitágoras e Euclides, riscassem no solo  figuras geométricas e delas abstraíssem os teoremas matemáticos; e muito menos para que Fídias fosse o genial arquiteto e  engenheiro das obras da Acrópole e o escultor que foi. Mais ainda:  as maiores revoluções intelectuais e sociais do mundo não dependeram das universidades, embora nelas se tenham formado grandes pensadores – e sua importância, como centro de reflexões e pesquisas, seja insubstituível. O preconceito de classe contra Lula sela os olhos de Aleluia e os torna opacos.

Solidário o meu autodidatismo com o de Lula, quero lembrar o grande escritor norte-americano Ralph Waldo Emerson: um talento pode formar-se na obscuridade, mas um caráter só se forma no turbilhão do mundo.

É no turbilhão do mundo que se forma o caráter dos grandes homens.

O engenheiro José Carlos Aleluia é uma prova de que não somos racistas.

PS. Ontem, 31/03/2011, a Universidade de Salamanca, na Espanha, uma das cinco mais antigas do mundo, aprovou por unanimidade a concessão do título de Doutor Honoris-Causa ao senhor Luis Inácio Lula da Silva. O engenheiro deve estar escrevendo outra carta.