O alargamento do canal

Acredito que muitos de vocês já tiveram dificuldades para instrumentar canais atrésicos, aqueles em que a penetração do primeiro instrumento já é difícil. Não são canais com configuração anatômica normal, aquilo que aprendemos a ver e gostar de tratar, o canal cônico, de fácil acesso. Não, eles aparecem na radiografia como uma linha, uma fita.

Qual é a grande dificuldade? Um instrumento que durante todo o tempo trabalha com fortes interferências em todo o trajeto do canal sofre um maior desgaste, portanto maior risco de fratura, apresenta um maior potencial de alterações na anatomia, particularmente no caso de canais curvos (degraus, desvios), maior possibilidade de entulhamento de raspas de dentina, etc.

O avanço da Endodontia tem permitido a criação de novos instrumentos e novas técnicas de instrumentação. Hoje, não só para esses canais como para os demais, o “grande segredo” é o preparo cervical. Parece haver consenso de que todos os canais devem passar pelo preparo cervical prévio ao preparo do terço apical.

Dos três segmentos do canal, cervical, médio e apical, qual é o mais importante? Está em dúvida ou já respondeu? Vamos lá.

Onde é que mais ocorre fratura dos instrumentos? Onde é mais difícil irrigar bem? Onde é mais difícil preencher bem com a medicação intracanal? Onde é mais difícil fazer uma boa obturação? Se eu disser que a resposta para essas questões é o terço apical estou muito longe de acertar?

Por que o preparo cervical é tão importante? Porque diminui de forma significativa algumas dificuldades e possibilidades de erros. Em termos de modelagem, o objetivo fundamental do preparo cervical é facilitar o preparo do terço apical. Quando se fala de preparo cervical, vêm à mente as técnicas coroa-ápice. Assim, na verdade, é o preparo dos terços cervical e médio.

São inúmeras as vantagens desse tipo de instrumentação, uma delas essa de facilitar o preparo do terço apical. É claro que quando se alarga (faço questão de usar essa palavra neste momento) os terços cervical e médio, a instrumentação das porções finais do canal fica mais fácil e segura para o profissional. Desde já, entretanto, que fique bem claro, tornar mais fácil não quer dizer tornar fácil.

Agora, vamos lá. Você tem dificuldade para penetrar e instrumentar o terço apical de um incisivo central superior em condições normais? É provável que não, confere? Por que? Porque todo o canal é praticamente reto e amplo. Sendo amplo, não oferece dificuldades, concorda comigo? Tendo em vista que naturalmente já são amplos, será que você precisa alargar mais ainda os terços cervical e médio para penetrar e instrumentar o terço apical?

Quantos canais apresentam características semelhantes, ou seja, de não oferecerem maiores dificuldades à sua penetração? Posso dizer inúmeros? Nesses casos, você vai alargar mais ainda para penetrar neles? Vai usar instrumentos com conicidade acentuada (ou devo dizer taper? porque soa melhor, afinal, falar em inglês mostra os nossos conhecimentos) porque o canal comporta? Está certo, comporta, mas tenho uma pergunta bem simples para lhe fazer. Precisa?

Preciso fazer isso naquele canal sobre o qual conversamos aí em cima, atrésico, curvo, difícil de penetrar, uma linha, uma fita. Por que? Porque torna mais fácil aquilo que é muito difícil nesses canais: instrumentar o terço apical. Mas, no incisivo central superior!!!

Sim, tudo bem, não precisa, mas também por que não fazer? Por uma razão bem simples. Existe uma coisa chamada proporcionalidade. Observe que os canais são cônicos, isto é, mais amplos no terço cervical, depois médio e finalmente apical, e esse afunilamento é tão sutil que não se percebem mudanças bruscas de volume de um segmento para o outro. Por que? Porque assim são as raízes. Há uma proporcionalidade entre a luz do canal e as paredes da dentina radicular (volume de um e espessura do outro). O que ocorre quando se alarga demais o canal? As paredes radiculares ficam finas, com pouca espessura, altera-se a proporcionalidade. Resultado: maior risco de fratura. Você já reparou a quantidade de dentes fraturados com pinos largos? Isso se devia à Prótese, mas hoje também não terá a ver com a Endodontia? Não percebemos porque não conseguimos (ou não queremos?) associar uma coisa à outra, mas trabalhos já mostram preocupação com isso.

Fisiologicamente (com o decorrer dos anos) pela deposição de dentina secundária, ou patologicamente (processo acelerado pelas constantes agressões, cáries/restaurações/recidivas, doenças periodontais/cirurgias), pela deposição de dentina reparadora, a luz do canal diminui acentuadamente. Para o tratamento desses canais, o preparo cervical promove um maior alargamento para “recriar” o espaço anatômico original, uma vez que este permitirá maior facilidade com o segmento apical. Quando isso é feito não se está alterando a proporção entre canal e parede dentinária, pelo contrário, “recupera-se” a original.

No canal naturalmente acessível, simplesmente alargar para obedecer a regras pre-estabelecidas, ao modismo de conceitos e instrumentos “modernos”, alargar por alargar, não parece muito sensato. O preparo do canal é bem feito quando o alargamento, um processo natural, consequência da instrumentação, respeita todos os aspectos, particularmente o anatômico, onde se inclui a proporcionalidade. Talvez seja mais o que deve e não o que pode ser feito.

Pense nisso.