O ministro e a liturgia do cargo
Por Sergio Nogueira Lopes – do Rio de Janeiro
O ministro Joaquim Barbosa se ofendeu com uma pergunta que o repórter ainda iria lhe fazer
Os poderes fundamentais para a integridade dos pilares desta nação desmancham-se nas águas de março, solapados por este festival de desvarios promovido exatamente por aqueles cidadãos investidos no poder público para guardar em segurança os valores pétreos que deveriam reger a vida de todos nós. Uma conjunção de fatores políticos, própria de um tempo em que a mediocridade assoma o debate acerca dos pontos elementares para a sobrevivência da sociedade, converte-se em pano de fundo para arbítrios e intolerância. Aqueles que ocupam postos de extrema visibilidade na República precisam guardar o recato que convém à carga, imensa, de responsabilidades que o acompanham desde quando o sol se levanta, até raiar outra vez, dia após dia. Não há margem para deslizes. Não há espaço para problemas pessoais, dores nas costas, nos pés, na cabeça. Apenas na consciência, se esta estiver em dia com seus afazeres. Há apenas o sentido republicano de sacrifício por seu país, pois este foi o acordo, explicito no termo de posse. Qualquer tentativa de se alterar tais pressupostos será um atentado contra cada um dos brasileiros.
No Brasil, porém, ocorrem fatos próprios apenas de uma sociedade jovem ainda, afoita e estabanada, capaz de se deixar levar por encantos débeis como o discurso impresso nas páginas dos diários comprometidos com seus donos e os patrões destes, em escritórios na Wall Street. Assim, a mídia irresponsável, aliada aos interesses inconfessáveis das elites brancas e podres de rica, viu uma oportunidade para ganhar terreno na eleição de um presidente negro para a Corte Suprema, disposto a romper paradigmas à força, ainda que para tanto precisasse usar o “Domínio do fato” e todas as demais polêmicas que o envolvem. E sem qualquer medida, de forma intempestiva e maniqueísta, estabeleceu-se o rigor da Lei aos réus de um processo rumoroso sobre corrupção, imposto por um juiz contundente com terceiros, mas leniente com seu ego disforme de tão inflado após capas das revistas e tantas primeiras páginas expostas ao clima, nas bancas de jornal. Na internet, longe das impressoras carregadas nas tintas, outra versão sobre o novo “Torquemada”, como o classificou o professor Emiliano José, emérito doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia, passa a ganhar corpo, consistência, na silhueta de um ser instável, irritadiço, mau humorado e ríspido.
Não demorou muito para que a vestal de outrora, símbolo do preto no branco, da rigidez de caráter e moral conservadora, aparecesse em todos os tons de cinza que permeiam os desvios da alma humana. Como ocorre, quase sempre, o desvelo com o conceito de sensatez e amabilidade no trato com o público, aquele que lhe paga o régio salário, esvai-se na pergunta pertinente do repórter de um daqueles veículos que tanto o incensaram. O rapaz ia questioná-lo sobre a gastança e o estilo de vida perdulário dos tribunais de Justiça, inclusive no Supremo Tribunal Federal, dado a recepções e jantares e coisas e tais em que se consomem champanhas e acepipes na mesma razão com que a fome rasga os ventres dos nordestinos, dos favelados, dos desvalidos que lotam as prisões abarrotadas. A pergunta, na realidade, sequer chegou a ser concluída, quando o representante da imprensa domesticada surpreende-se com a explosão vulcânica do entrevistado que o manda, sem meias-palavras, “chafurdar no lixo” onde, provavelmente, encontrou dúzias de Veuve Clicquot e potes de Beluga, lotados do que o sambista e boa gente Zeca Pagodinho nunca viu, nem comeu, apenas ouviu falar.
Os meios de comunicação que criaram a imagem daquele que lhes serviu para impor a maior derrota midiática de que se tem registro na História brasileira a uma agremiação política, pasmos, ficaram reticentes em divulgar o ocaso do mito, reduzido ao humano raivoso que, para completar a grosseria, classifica o jornalista em serviço de “palhaço”, por tentar levar ao público um pouco dos bastidores de um dos poderes do tripé da democracia. Esta, ora claudica diante da atitude irascível de quem deveria apascentar. “Depois de endeusá-lo, fica difícil criticá-lo”, pontua o mestre baiano, diante de um pífio editorial publicado no jornal que emprega o repórter destratado. O editorialista, bem recompensado, resume a inominável agressão a um de seus funcionários como mero fato “lamentável”, ainda que reconheça “o temperamento muitas vezes descontrolado” do ministro.
Fica-se claro, agora, para todos os brasileiros – até aqueles mais dóceis e submissos aos ditames do poder central – que, se uma simples reportagem é capaz de tirar do sério o presidente da mais alta Corte de Justiça do país, cabe até a uma criança perguntar, devido a este espírito iracundo, se não seria o caso de se perpassar uma a uma das sentenças desta lavra e aferir até que ponto seriam válidas, à luz do Direito, diante do contraditório ameaçado por tal estado de exasperação.
Lembre-se, ministro, que perguntar não ofende.
Sergio Nogueira Lopes é sociólogo, jornalista e escritor, autor de Opinião Giratória, entre outros livros.