O professor e as evidências

Por Ronaldo Souza

Foram 37 anos de consultório.

Os últimos sete, já dividindo um pouco o tempo com a docência, foram uma verdadeira “preparação” para deixa-lo.

E aí, a docência.

Chegava de malas e cuias ao mundo acadêmico.

Um mundo novo.

Deparei-me com coisas que já conhecia, talvez em escala diferente.

Uma delas, a vaidade.

Mas, mais coisa ainda estava por se mostrar.

Fascinado com as possibilidades, fui me encantando.

Aprendi, por exemplo, o valor das evidências.

Ah, o mundo das evidências.

Nada valia se não encontrasse suporte nas evidências.

Mundo admirável!

Como pensar em Endodontia sem evidências?

Exageros aqui, acolá, mas vamos em frente.

2009

Um choque maior.

Um trabalho em que acabara de fazer o último acompanhamento era “negado” pela falta de evidências.

Idealizado e iniciado em janeiro de 1987, ao pé da letra não era um “trabalho científico”, como esses que ganham o Nobel (às vezes chego a pensar que alguns professores de Endodontia já ganharam um), mas tinha normas e procedimentos traçados de acordo com o que eu via na literatura.

Dez anos foi o tempo que levei para fazer e mais outros de acompanhamento clínico/radiográfico (um deles acompanhei durante 21 anos). 

Tudo foi negado num debate ali na minha frente, na minha cidade, num evento promovido por mim.

Com o tempo percebi que outros dos professores que estavam ali (eram 8 convidados de diferentes estados) também o negavam, mas não se pronunciaram naquele momento.

Mais do que natural.

No entanto, um o fizera.

Ressalve-se que, apesar de inúmeros pedidos do auditório, como moderador do debate expliquei que não devia emitir a minha opinião.

Discordando da argumentação utilizada (o Prof. Pécora também), em nome das evidências respeitei e “acatei”.

2011

Dois anos depois, no jantar de um evento de Endodontia em Campinas (SP), um professor do mesmo grupo daquele que negara em Salvador o valor do trabalho (este na verdade, o líder do grupo), entre taças de vinho, falou; “o nosso grupo está começando a repensar o papel da obturação…!!!”.

O trabalho negado estava ali, exposto, na mesa de um jantar, agora com a paternidade do grupo que o rejeitara por falta de evidências.

A minha mente fez uma rápida viagem e não foi capaz de encontrar nenhuma evidência surgida naquele espaço de tempo entre 2009 e aquele momento, 2011, que justificasse tão rápida mudança.

Calei.

Os anos não se passam à toa, pelo menos para alguns.

A vida ensina a ouvir.

E a falar somente na hora certa.

No outro dia eu ia participar de um debate com ele e outro colega.

Ao voltar para o hotel depois do jantar, mudei a aula e preparei um momento especial.

Na aula prévia ao debate, houve um momento em que me dirigi a ele, e com a mão sobre seu ombro, disse:

– Professor…, sei que o seu grupo é sério e estudioso (ainda os achava sérios) e por isso você não é capaz de imaginar a alegria que tive ontem no jantar ao lhe ouvir dizer que vocês estavam ‘repensando o papel da obturação’, você não sabe o tamanho da alegria que senti (reforcei), porque isso eu já sei e digo há 24 anos.

Nessa hora eu já tinha saído de perto dele e estava começando a mostrar o trabalho aos demais professores convidados e colegas que estavam no auditório.

Um amigo e colega (do meu grupo) me disse depois que fui agressivo, como ele nunca me tinha visto ser.

De fato, fui, como nunca tinha sido.

Mas precisava ser.

2014

Eu, que tinha ficado decepcionado com a postura do líder logo após ter estado em Salvador (um dia falo sore isso), convidei-o outra vez para vir ao de 2014. Ainda acreditava nele como professor.

E ele veio.

2016

Convidado do CIOBA (Congresso Internacional de Odontologia da Bahia), o mesmo professor que me dissera em 2011 que o grupo estava começando a repensar o papel da obturação, na minha “cara”, disse:

– Garanto que aí na cabecinha de vocês (literalmente assim), vocês pensavam que eu ia dizer que a obturação desempenha o papel mais importante… Não, a obturação não faz esse papel…

Pronto.

Assumiram de vez a paternidade da concepção que há 29 anos eu vinha estudando e por causa dela tinha apanhado em algumas cidades em que fui.

Fiquei realmente perplexo.

Tamanha foi a perplexidade que não tive reação.

Algo que não acontecerá mais.

Ali percebi do que se tratava e vi com clareza quem eram, de fato, aquelas figuras.

A vida continuou.

E ela costuma pregar algumas peças.

Com o tempo, fui observando, vendo e ouvindo que aquele professor tinha se perdido.

Ele passou a defender determinados “pontos de vista” que não estavam vinculados diretamente à Endodontia e sim ao entorno dela, vínculos que vão além do ensino.

Em momentos assim, as pessoas costumam não se dar conta de que muitos estão percebendo.

Há um episódio recente num evento de Endodontia que evidenciou isso com clareza preocupante e os professores presentes ficaram horrorizados.

O que se pode dizer é que essa é uma opção que não permite retorno, porque a credibilidade fica ferida de morte.

Ao defender determinados pontos de vista com o entusiasmo com que fez e faz (o tempo deverá lhe ensinar a ser pelo menos mais discreto), o professor mostra que perdeu o compromisso com as evidências.

Aulas acontecem todos os dias; é a vida ensinando

A sua nova função não exige que evidências suportem o mais “novo” lançamento.

Mais do que suporte de evidências, a defesa desse novo só pede um marketing bem feito do que está sendo lançado.

O professor desmorona.

O homem se desmoraliza.

Aquele professor (eu), que, em nome da falta de evidências, acatou a negação do seu trabalho (com acompanhamentos radiográficos e tomográficos de até 21 anos), viu de forma decepcionante quem poderia ser uma referência (durante um tempo chegou a ser) mostrar-se como farsa.

A única?

Não, já tinha conhecido outras, mas aquela chocou.

Fiquei mais atento e passei a não me surpreender tanto.

A vulnerabilidade do homem parece dominar a cena nos dias de hoje.

O professor se tornou presa fácil.

Não deve haver retrato mais representativo de uma sociedade do que o professor.

Como também não deve haver retrato mais representativo de uma sociedade decadente do que o professor que desmorona.

Quando ele perde a nobreza de ser professor e se deixa envolver por episódios pequenos, mundanos, o perigo que ronda a sociedade é iminente.

Os reflexos disso nunca foram tão… evidentes como hoje.

Cientistas e pesquisadores de todas as partes desse enorme e belo planeta repetem todos os dias que  a vida é o bem maior da humanidade.

E o que temos visto?

No momento em que o mundo está diante da complexidade de um fenômeno que segundo diversas autoridades só encontra paralelo na Segunda Guerra Mundial, a vida está sendo relegada a um plano inferior.

Apesar de alguns dos maiores cientistas, pesquisadores, infectologistas, médicos, enfermeiros,  farmacêuticos… de todas as partes do mundo estarem apontando todo dia para o comportamento mais adequado para enfrentar a pandemia do coronavírus, estamos presenciando gestos e atitudes de covardia, crueldade e desumanidade jamais vistos nesse país.

Tudo à sombra do cinismo debochado e da canalhice.

Evidências de todas as partes do mundo nos chegam todos os dias.

Dirigentes de cidades, estados e países pediram desculpas pelo erro cometido por terem ignorado a importância das primeiras informações e como consequência amargaram um aumento alarmante de contaminações e mortes.

E o que fazem muitos dos nossos professores?

Na contramão de todas as evidências, tornam-se base importante de apoio ao comportamento insano, descontrolado e sádico de um homem reconhecidamente desequilibrado.

Tornam-se base importante não por inteligência, sensibilidade e bom senso, coisas que há tempos demonstram não possuir, mas porque, por serem professores, têm o poder de arrastar muitos jovens que tendo-os como referências se deixam arrastar pela correnteza da estupidez e da ignorância, como uma nau dos insensatos por mares desconhecidos.

Nunca tantas evidências foram negadas e rejeitadas pelo que chamaríamos, nós, professores e pesquisadores, de achismo.

Um homem, com a sua opinião, com o seu modo único de “ver” as coisas, lidera um movimento absolutamente irracional contra a ciência.

A opinião, única, isolada, sem nenhuma base que lhe dê o mínimo de suporte vence todo o conhecimento, toda a ciência do mundo.

Pasme, insisto, com o apoio de inúmeros professores, muitos dos quais adoram exibir a sua pobre ciência pretensamente respaldada por… evidências.

Professores que em nome da ciência (que hoje se vê, não respeitam) condenam opiniões, agora esquecem o que tanto gostavam de alardear pelos quatro cantos do mundo; que o conhecimento jamais será vencido.

Ainda mais por um homem que, por tudo ignorar, nunca escondeu o seu desprezo por ele.

O futuro dessa história não aguardará os livros que a contarão aos nossos netos.

Esse futuro irá ocorrer muito em breve, quando estivermos de volta às salas de aula.

Serão cobrados por alunos que mantiveram o mínimo de lucidez e não se perderam completamente nessa cegueira pandêmica.

Como falar de evidências daqui por diante?

Como esconder que, na verdade, nunca se importaram com isso?

Como negar que é algo que se usa de acordo com conveniências e necessidades.

Nem sempre farsas e farsantes têm vida longa.