O que fazer com o coto pulpar?

Coto pulpar

Por Ronaldo Souza

No princípio, era a Polpa.

Nela, o Coto Pulpar.

Sagrado, intocável.

Todas as técnicas de instrumentação, soluções irrigadoras e materiais obturadores lhe deviam reverências.

Da sua sobrevivência dependiam os endodontistas.

Surgiram então os deuses do olimpo.

Fizeram-se novas leis e tratados.

Rasgando o velho testamento, disseram os deuses:

“O coto pulpar não serve para nada”.

Arranquem!

Chamemos de Natureza o universo que compõe toda a estrutura fisiobiológica do corpo humano.

Ela, a Natureza, mais uma vez, falhara ao criar um tecido que não tem função.

Um peso na vida do endodontista.

A Natureza é assim, cheia de falhas.

Mas, ainda bem que existe o endodontista que, na sua humildade, mais uma vez estava ali, pronto para corrigir os erros dela.

O endodontista gosta desse papel de corretor da Natureza que se atribui e desempenha com frequência.

Os tecidos periapicais, por exemplo, como qualquer tecido do corpo humano não gostam de ser agredidos.

O endodontista, entretanto, na sua onisciência, não concorda com essa fixação tola de preocupação com a fisiologia tecidual.

Diante, por exemplo, da recomendação de se evitar extravasamentos de materiais obturadores para os tecidos periapicais, pela reconhecida agressão que isso causa aos tecidos, os deuses estabeleceram que não só podiam como deviam promover esses extravasamentos.

Assim foi dito, assim tem sido feito.

Surplus'''

Não se tem conhecimento de uma agressão desse porte intencionalmente provocada em qualquer outra área da Saúde.

O que haveria por trás disso?

Os pastores dessa nova seita saíram então pregando no Facebook e Instagram, seus templos prediletos, e mesmo em salas de aula.

E assim surgiu o novo testamento.

Que entre outras coisas decretou a extinção do coto pulpar.

E nós, pobres mortais, como ficamos?

Com o velho ou o novo testamento?

Ou criamos outro?

O sagrado coto pulpar

Nos primórdios, contínuas modificações ocorrem quando a papila dental vai se transformando em polpa.

Esta, ainda jovem, vai se modificando no seu ser e definindo suas características.

Um passeio por ela nos mostrará que nas suas porções mais coronárias ela é mais celularizada, característica que vai perdendo à medida que caminhamos em direção ao terço apical, onde é menos celularizada.

É justamente ali que fica o coto pulpar.

Partindo da premissa de que tecidos menos celularizados apresentam menor potencial de defesa e reparo, é ali, no terço apical, onde a polpa se mostra mais vulnerável a ataques e agressões.

Podemos deduzir então que o coto pulpar é a porção tecidual mais frágil da polpa, com menor potencial de defesa e reparo.

Sendo assim, as agressões mecânicas e ou químicas inerentes ao tratamento endodôntico poderiam leva-lo à necrose.

Coto pulpar necrosado era sinônimo de fracasso do tratamento.

Tão frágil, tornou-se intocável, sagrado.

Por outro lado, a sua preservação era garantia de sucesso do tratamento endodôntico.

“A reparação não se produz quando não se preserva a vitalidade do coto pulpar”.
Mario Leonardo

Estabeleceu-se então que a preservação da vitalidade do coto pulpar era compromisso obrigatório do endodontista e razão do sucesso do tratamento endodôntico.

O famigerado coto pulpar

Se podemos deduzir que o coto pulpar é a porção tecidual mais frágil da polpa, com menores chances de reparar, por que então preserva-lo, correr os riscos de perde-lo por necrose e, como consequência, perdermos o caso?

Não lhe parece lógico o questionamento?

Esse foi o argumento, quem sabe o mais forte, para que fosse condenado ao extermínio.

Surgiam ali os exterminadores do futuro.

O do coto pulpar.

Aquela Endodontia que falava da importância do coto pulpar ia sendo assim sepultada, sem honras e glória, como costumam fazer os moderninhos*.

Aceito de imediato como um grande avanço, o movimento dos moderninhos da Endodontia se alastrou pelo país.

Falar de preservação do coto pulpar era ser taxado de ultrapassado.

A comunidade endodôntica passou então a ser dividida em duas categorias; os adeptos da preservação do coto pulpar e os defensores do seu extermínio.

As pessoas gostam de criar essas divisões. Sentem-se valorizadas e precisam disso.

É compreensível, são carências e assim precisam ser entendidas.

Além disso, no caso da Endodontia, vira peça de marketing.

“Ah, você ainda é da época do coto pulpar”!!!

Aí acham que marcaram aquele profissional com as cores do inferno e ele agora “tá desgraçado”, como diz Ariano Suassuna.

Ah, você ainda é da época do hidróxido de cálcio”!

Lembra?

A mesma coisa.

O que é coto pulpar?

É comum aprendermos em cima do que é certo ou errado.

Rotulam-se como modernos e avançados e aí criam coisas “modernas e avançadas”, claro.

Mas, com a cabeça no passado, dogmatizam; ou é assim ou está errado.

Se você trabalha apoiado no conceito de certo e errado, é certo que você está errado.

Ensina-se a técnica de instrumentação, indicam-se os instrumentos que devem ser comprados, determinam-se a técnica e materiais para obturar o canal, protocolos são definidos e tudo está resolvido.

Não deu certo?

Você fez alguma coisa errada.

Não tem outra.

Venha comigo.

O coto pulpar não é coto pulpar.

Alguém pode dizer; ah, já sabemos disso.

Não parece.

A imagem acima no começo do texto foi gentilmente cedida pelo Prof. Roberto Holland há muitos anos, final dos anos 80, quando eu ainda nem sonhava em ser professor. Guardo-a com carinho pela gentileza de alguém especial, o professor Holland.

Trata-se do terço apical de um canal evidenciando o coto pulpar. Fiz nela algumas sinalizações para facilitar a compreensão do texto, como você pode ver abaixo.

Coto pulpar'

Os círculos amarelos dizem que ali estamos em tecidos que não “pertencem” ao canal, estão fora dele. São tecidos periodontais, mais precisamente, ligamento periodontal.

O círculo verde está “dentro” do canal, portanto, aquele tecido “faz parte” dele.

Constitui o coto pulpar. Por representar a porção mais frágil, indefesa e apresentar baixa capacidade de reparo, como ficou estabelecido deve ser removido.

Perceba, porém, que esse tecido é muito parecido com aquele que está fora, o dos círculos amarelos. A semelhança é muito grande, pode-se dizer que é igual.

Na verdade, não é só igual, é o mesmo, exatamente o mesmo. É o tecido periodontal que invagina para o canal.

Em outras palavras, aquele tecido que está “dentro” do canal e representa o coto pulpar não é constituído por polpa, mas por tecido periodontal.

Sendo assim, quando se diz que o coto pulpar necrosou, na verdade quem necrosou foi o coto periodontal.

Ou estou errado por chamar de coto periodontal um remanescente tecidual constituído de tecido periodontal?

Ora, professor, digamos que seja, mas que importância isso tem? Se vai necrosar, terá que ser removido do mesmo jeito.

Será?

Podemos colocar da seguinte forma.

  1. O fato de ser coto pulpar ou coto periodontal muda alguma coisa?
  2. A necrose daquele tecido impede o reparo?

Veremos.

A expressão moderninhos foi usada neste texto para não confundir com os modernistas do movimento cultural conhecido como Modernismo no Brasil, cujo marco inicial foi a Semana de Arte Moderna, em 1922. Absolutamente nada a ver em termos de horizontes, postura e proposta.