Por Ronaldo Souza
Esses homens maravilhosos e suas máquinas localizadoras de CDC
Terminamos assim a parte 2 dessa conversa, com esse cartaz de um velho e divertido filme, que aproveito para falar do homem e suas máquinas.
Falemos antes, entretanto, de uma máquina maravilhosa e poderosíssima; o cérebro.
Estávamos falando de coto pulpar e coto periodontal.
E o coto pulpo-periodontal?
Observe a figura acima. Imaginemos que o tecido periodontal se estende até o limite delimitado pela linha amarela; até ali teríamos então um coto periodontal. Para efeito didático, imaginemos também que ali estaríamos a 1 mm aquém do ápice radicular.
Imaginemos agora que o comprimento de trabalho (CT) fosse de 2 mm aquém do ápice radicular, muito comum para alguns profissionais, particularmente nos casos de polpa viva.
Assim, cortaríamos a polpa (sabia que até há pouco tempo preconizava-se isso, “cortar” a polpa?) um pouco mais alto, ali onde está a linha azul tracejada. Também para efeito didático, digamos que ali seja 2 mm aquém.
Teríamos então 1 mm de tecido periodontal e 1 mm de tecido pulpar.
Poderíamos chama-lo então de coto pulpo-periodontal, concorda?
Já sabemos que se o coto periodontal necrosar forma-se um novo coto, graças ao excepcional índice metabólico desse tecido.
E o que acontecerá se o 1 mm correspondente ao coto pulpar necrosar, o que segundo Catanzaro Guimarães é o mais provável?
Tendo em vista que polpa necrosada não regenera, o que acontecerá e o que fazer?
Não se preocupe, o organismo faz por você.
Aliás, deixe-me aproveitar e dizer uma coisa.
O organismo do paciente adora ele, o paciente. Todos os organismos são assim, adoram os seus “donos”.
Se é assim, tudo que você fizer para o bem do paciente vai contar com a ajuda dele.
Sabe qual é o grande problema?
É que é muito comum o endodontista atrapalhar o organismo.
Quer um exemplo?
O organismo não suporta que joguem coisa nos tecidos periapicais.
Mas você sabe como é o endodontista, né?
Se acha.
O que faz ele?
A cada obturação joga 3 quilos de material obturador lá nos tecidos periapicais.
Resultado.
O organismo vai passar horas, dias, semanas, meses, anos, se virando para eliminar aquilo.
Sabe o que é pior?
Numa grande quantidade de vezes não consegue.
Você acha que ele gosta disso?
Em outras palavras, o organismo do paciente está do seu lado, ele joga no seu time. Ele jamais vai querer lhe atrapalhar.
Portanto, não o atrapalhe.
Voltemos.
Se essa parte do tecido que corresponde à polpa necrosar, também vai se refazer, às custas do tecido… periodontal.
Isso mesmo.
É o tecido periodontal que vai se refazer e se estender, “caminhando” um pouco mais até o espaço outrora ocupado pela polpa. Formará assim um novo coto, que terá 2 mm de extensão; 1 mm que já era tecido periodontal e 1 mm que era polpa.
Assim, o novo coto terá 2 mm de extensão.
Você ainda tem alguma dúvida de que será periodontal?
Mesmo esse novo coto, sobre o qual não pode haver dúvidas de que é periodontal, foi chamado por diversos autores de coto “pulpar”. Assim, entre aspas.
Um grande equívoco.
Percebe o “poder” do tecido periodontal?
Percebe porque a Natureza (lembra que chamei assim?) é sábia?
Ela colocou ali um tecido conjuntivo fibroso para suportar os impactos que o dente sofrerá ao longo do tempo, mas deu a ele um excepcional índice metabólico, pois, ali, na porção final do canal, ele terá outra função; a de constituir o novo coto, sobre o qual é colocada a responsabilidade de promover reparo.
Como se vê, uma função nobre.
A precisão imprecisa
Apesar do uso que tem sido dado a eles, os localizadores apicais eletrônicos, como eram chamados inicialmente, vieram para reforçar o conceito de preservação do coto pulpar e as chances de se alcançar esse objetivo.
Pela diferença de impedância elétrica existente entre o tecido contido no canal dentinário (pulpar) e o do canal cementário (periodontal) e com a precisão atribuída aos localizadores, conseguiríamos identificar o momento em que ultrapassaríamos o limite CDC.
Nesse momento, os sinais auditivo e visual do localizador nos diriam; pare aqui. Daqui em diante não é mais polpa. Se não é mais polpa, não lhe cabe entrar. Saia. Este território é sagrado.
E assim o coto pulpar seria preservado.
Foi assim que foi ensinado no início.
Nessa forma de ensinar era como se tecido pulpar e periodontal estivessem configurados como na imagem abaixo, ou seja, teriam as suas fronteiras bem definidas e delimitadas. Onde termina um, começa o outro.
Não é assim. O limite CDC não corresponde ao que se imaginava anteriormente.
Veja as imagens abaixo. As setas vermelhas em A e B apontam para um limite CDC e no mesmo canal as verdes apontam para outro.
Ainda que sejam canais observados sob microscopia eletrônica de varredura, são apresentados sob uma perspectiva bidimensional estática, tal qual uma radiografia periapical. Quantos limites mais devem existir sob a perspectiva tridimensional dinâmica?
Olhando a imagem em B, onde os limites CDC estão identificados em milímetros, surgem algumas questões:
- Onde se daria a passagem de tecido pulpar para periodontal, em 2,1 mm ou em 1,5 mm?
- Em que local ocorreria o registro de mudança de impedância entre o tecido pulpar e o periodontal acusando que ali é o limite CDC, local de parada para não traumatizar o coto pulpar; em 2,1 mm ou em 1,5 mm?
- Não lhe parece que os pontos de constrição (você vê só um?) não estão nem em 2,1 nem em 1,5, mas sim acima deles, já em tecido periodontal. Em outras palavras, você percebe que o ponto de constrição não está “separando” o tecido pulpar do periodontal?
Além dessas considerações, o encontro entre polpa e periodonto teria uma configuração mais próxima do que se vê na figura abaixo, onde os tecidos se entrelaçam.
Haveria como registrar passagem de um tecido para o outro e estabelecer limite preciso nessas condições?
Já passou da hora de compreendermos e ensinarmos o tecido contido na porção final do canal como periodontal e não pulpar para entendermos o tratamento endodôntico.
Foi esse o grande equívoco que se cometeu ao longo de todos esses anos, equívoco que nos fez tratar o limite apical de trabalho como uma questão numérica.
Imaginar que o problema e sua consequente solução é estabelecer a quantos milímetros aquém do ápice devemos ficar é erro grosseiro.
Erro que se comete ainda nos dias de hoje.
Ficar falando, discutindo, ensinando o comprimento de trabalho em detalhes milimétricos é insistir no erro cometido no passado.
Apontando para esses aspectos, abro agora um parêntese na nossa conversa.
O Velho versus O Novo
Ao pensar em escolher um caminho, nunca esqueça:
Não há o caminho a seguir.
Insisto; se você trabalha apoiado no conceito de certo e errado, é certo que você está errado.
Não é assim.
Tudo é feito de tal maneira que a “novidade” cause grande impacto, seja ela qual for.
É preciso dizer que o “velho” não resiste ao “novo”, não importa o que isso signifique.
Dão aos instrumentos características definidoras de tratamento, protocolos infalíveis (se não deu certo foi porque você errou em alguma coisa), enfim, procedimentos que encaixotam a atividade clínica em compartimentos.
“Para isso, isso; para aquilo, aquilo; para aquilo outro… ah, aí agora é diferente, aí só com este instrumento…”
Aquela máquina maravilhosa e poderosíssima, o cérebro, sobre a qual falei no início, perde a função.
Há que oferecer muito mais além de técnica.
Exploda as caixas ou, melhor ainda, abra todas e faça o seguinte.
Como já estão cheias de instrumentos, ponha algumas coisinhas mais lá dentro; conhecimento, boas técnicas de preparo do canal, bons materiais e técnicas de obturação e, essencial, a sua inteligência e o seu bom senso.
É isso que está faltando no seu kit; você.
Não existe outra maneira de ser um bom profissional.
O resto é marketing.
A briguinha boba que vivem criando e fomentando entre o velho e o novo sai da cabeça do velho que tem pouca idade; o novo velho.
E tolo.
No cérebro dele não há espaço para o que se consolidou com o tempo (através da comprovação científica e experiência clínica) e o que está chegando para melhorar o que está consolidado.
Para ele, ou é um ou é outro.
Nem o “velho” nem o “novo” tem importância para ele, mas sim o marketing e sempre será mais fácil fazer marketing em cima do “novo”.
Vamos fechar?
A radiografia periapical representa a medição clássica para determinação do comprimento de trabalho. Os localizadores foraminais eletrônicos constituem uma nova e excelente ferramenta para ajudar ao endodontista a alcançar esse objetivo.
Assim ensino aos meus alunos.
Ninguém pode ter dúvidas da importância dos localizadores foraminais, recurso que deve fazer parte do arsenal do endodontista, entretanto, algo precisa ser entendido:
O que fazer com o coto pulpar nada tem a ver com tecnologia.
A maior prova disso parece não ser percebida.
Depois da chegada dos localizadores foraminais,
- descobriu-se finalmente qual é o comprimento de trabalho adotado pelos autores, professores e profissionais?
- qual é ele?
- ou ainda são adotados alguns, como 0,5 ou 1,0 ou 1,5, ou 2,0 aquém?
Provavelmente o CT mais preconizado seja de 1 mm aquém do ápice radicular, concorda comigo?
Ótimo.
Qual é o comprimento médio do canal cementário encontrado por Kuttler, para citar talvez o estudo mais clássico da literatura? 0,5 mm no paciente jovem e 0,8 mm no paciente idoso.
O que é um paciente jovem, vai de qual idade a qual idade?
O que é um paciente adulto, vai de qual idade a qual idade?
Fiquemos com os números de Kuttler.
Alguém usa 0,8 mm aquém como CT em pacientes adultos?
Ou usam 1 mm?
Essa medida foi “determinada” pelo localizador foraminal eletrônico ou foi adotada por consenso?
Vai-se ao zero e recua 1 mm.
É uma medida “coletiva”, para todos os canais.
Como poderia ser 1,5 ou 2.
Que precisão é essa?
Aí o “professor” faz 335 vídeos no YouTube.
Em todos vende tecnologia.
“… hoje ninguém mais faz endodontia sem localizador foraminal, porque ele dá 100% de precisão”.
Ninguém mais faz Endodontia sem localizador foraminal???
Cem por cento???
Por que coisas assim são ditas?
Isso é de uma tolice sem tamanho.
O que está por trás de tudo isso?
Deixa pra lá, você já sabe.
O que o endodontista precisa, isso sim, é saber que tecido está “ali dentro” do 0,5, 0,8, ou 1,0, o que seja, e em que condições ele se encontra, isto é, conhecer os tecidos com os quais lida no seu dia-a-dia.
Esse é o aspecto fundamental.
Até a próxima conversa.