Por Ronaldo Souza
As distâncias e dificuldades existentes entre aluno e professor não são de agora. No entanto, a impressão que se tem é de que se acentuaram. Não é incomum, por exemplo, professores se queixarem da falta de comprometimento dos seus alunos. Pelo contrário, é queixa recorrente.
Essa queixa é improcedente? Seria apenas “mais um desafio para a docência”?
Mais um desafio para a docência, como já ouvi, parece querer significar responsabilidade da docência, mais especificamente, do professor. Se é esta a perspectiva, certamente estamos diante de um grande equívoco. Ainda que a participação do professor ocupe lugar de destaque nesse processo, há um simplismo desalentador nessa maneira de pensar.
A complexidade do tema dispensa comentários e é justamente por isso que é sempre bom reforçar que não há espaço para gestos e atitudes simplistas. Há sutilezas a exigir maior sensibilidade e ações mais conectados com a realidade que, com frequência, têm faltado nesses momentos.
Descer degraus para se fazer entender faz parte da docência. Diria mais, é princípio norteador. Entretanto, descer degraus, estender a mão em busca daquela que se deseja trazer para caminhar junto e não perceber nenhum movimento nesse sentido, pode representar uma frustração que, repetida diversas vezes, pode levar à solidão.
Sim, solidão. Há solidão na docência!
“Se tivesses que ver o que sou forçada a ver todos os dias,
também quererias ficar cego!”
Toda a população daquele país tinha ficado cega. Quando o oftalmologista, também cego, percebeu que sua mulher era a exceção, (somente ela não ficara), foi grande a sua indignação. Na sua ira, ele cobrou dela aquela condição especial, aquele privilégio.
Por ser a única a continuar enxergando, diariamente ela observava a degradação física e moral da sociedade. Por ver o que os outros não conseguiam ver, seu sofrimento foi ficando insuportável e, diante da ira do marido, respondeu com um desabafo: “se tivesses que ver o que sou forçada a ver todos os dias, também quererias ficar cego!”
Através dessa metáfora, no livro “Ensaio sobre a Cegueira”, Saramago mostra que ver o que outros não veem não é propriamente uma dádiva. Pelo contrário, pode ser angustiante.
Não “ver” traz conforto!
Ver o que existe, mas não é visto, pode gerar sensação de impotência e grande desconforto. A sensação de que nada pode ser feito traz muita tristeza e, a depender da intensidade, cria uma autopercepção de passividade. Daí ao desencanto é um passo, algo que se vê com frequência preocupante nos tempos atuais.
Desconhecer é ignorar.
Nesse sentido, o desconhecimento da real amplitude da docência pode ser cruel com o professor e tornar menor sua trajetória. Por desconhecimento, os horizontes se tornam curtos e os objetivos facilmente alcançáveis.
“O animal satisfeito dorme.” (Guimarães Rosa).
Veja o que diz essa definição de comprometimento: “É uma promessa recíproca de alguém que tende a cumprir com os seus acordos, independentemente da forma que eles sejam feitos”.
Chama a atenção o “independentemente da forma que eles sejam feitos.” É aqui que entra e adquire grande importância a participação do professor.
O fundamento para o professor/instituição de ensino é ensinar e é justamente este fundamento que passa a constituir um grande problema. Para o professor, ensinar sem qualidade não é ensinar.
Organização da disciplina/componente, assiduidade, pontualidade germânica…, são aspectos importantes para a instituição de ensino e por ela, instituição, os professores são cobrados. Sob essa perspectiva, torna-se inevitável a necessidade de mostrar serviço.
Entretanto, não está em disputa o título de funcionário do mês, com direito a foto pendurada na parede.
A incômoda e diária exibição de “produtividade” que se vê no cotidiano de uma faculdade talvez seja revigorante às necessidades de muitos e, quem sabe, consiga seduzir alguém. Mas, o que acrescenta ao ensino?
O dia a dia se torna sufocante. Num mundo em que aos professores eventualmente são oferecidas injeções de orientações de como despertar o aluno, o que se vê cada vez mais é o conhecimento ceder espaço ao pragmatismo de técnicas e protocolos.
“Sufoco de ter somente isso à minha volta
Deixem-me respirar
Abram todas as janelas
Abram mais janelas do que todas as janelas que há no mundo
… E o mundo quer a inteligência nova, a sensibilidade nova
O mundo tem sede de que se crie
O que aí está a apodrecer a vida, quando muito, é estrume para o futuro
O que aí está não pode durar, porque não é nada…”
Álvaro de Campos *
Já há algum tempo se ouve dizer que os alunos estão saindo das faculdades com baixo nível de conhecimento.
Sim, nossos alunos!
Tantas cirurgias, tantas restaurações, tantos tratamentos endodônticos, tantos…
Metas, metas! Tudo tem que ser mensurável.
É isso que temos para dar?
A que isso leva?
E agora, o que fazer se, por dificuldades e limitações inerentes a cada especialidade, até elas, as metas, diminuem por não mais se conseguir atingir a mesma obrigatoriedade numérica de fazer tantos isso e tantos aquilo?
Como despertar alguém com técnicas e protocolos e tão pouca criatividade?
De um lado, os protocolos, do outro, o desconhecimento!
Reina o fazer!
Pragmatismo: esta é a palavra de ordem.
Sob essa perspectiva, não há com o que se preocupar. Os alunos serão salvos pelos cursos de especialização, atualização, aperfeiçoamento…, que costumavam esperar por eles na porta das faculdades.
Agora, não! Vão pegá-los dentro das salas de aula e ambulatórios.
A indecente catequização começa cedo, mas, construída sobre o mesmo baixo nível de conhecimento que existe na graduação, traz consigo a perpetuação do pecado; o ensino de… técnicas e protocolos.
Você tem ideia de quem faz isso?
Há alguém preocupado com isso?
Já ouviu falar de “fecham-se os olhos”?
E o que isso reflete?
“Há mais mistérios entre o Céu e a Terra do que a nossa vã filosofia possa imaginar.”
Menos mistérios fazem parte dessa sentença de Shakespeare, porque muitos já deixaram de ser mistérios. A nossa vã filosofia, já não tão vã, consegue identificá-los.
Somente identificá-los, porém, não é suficiente. Precisamos trazê-los à superfície.
Muito mais do que tocar o barco, como se costuma dizer e, na verdade, o que tem sido feito, precisamos compreender o que está acontecendo, para que possamos enfrentar essa depressão que se abate sobre a sociedade.
Os horizontes do ensino exigem visão com alcance e sensibilidade muito maiores. Visão que, além de “ver”, seja capaz de estabelecer diagnósticos e prognósticos com competência.
Em 2021, em uma longa entrevista às TVs Educativas do Norte e Nordeste, o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, fez um comentário que não pode ser ignorado e passar despercebido, ainda que saibamos que será ignorado e passará despercebido. Ele disse:
“Perdemos o desejo de melhorar.”
A frase é muito forte e, ao mesmo tempo, altamente frustrante. Por uma razão bem simples. Podemos criar expectativas de que terá efeitos no atual cenário em que vivemos?
Não há como acreditar nessa possibilidade.
Muita coisa tem fugido à nossa compreensão. Talvez estejamos precisando entender, por exemplo, que instituição de ensino e ensino nem sempre caminham na mesma direção.
Ainda que se reconheçam dificuldades no horizonte, os parâmetros do ensino precisam ser mais bem estabelecidos e definidos para além da eventual aceitação e procura do curso, muitas vezes analisadas sob a perspectiva dos números.
Há mérito em se igualar por baixo?
Definitivamente, as instituições de ensino não podem se render ao que aí está. Esta postura, certamente, não é a opção mais apropriada e a sociedade brasileira pagará um preço muito alto pelas escolhas que estão sendo feitas neste momento. Afinal, como dito aqui, o fundamento para o professor/instituição de ensino é ensinar e ensinar sem qualidade não é ensinar.
O futuro já está aqui, estamos nele agora. E o seu gosto é bem amargo.
Instituições de ensino, professores e alunos, todos estão no mesmo barco.
Assustados e sem rumo.
* Álvaro de Campos é um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa