Por Ronaldo Souza
- O canal radicular é composto por canal dentinário e canal cementário.
- O local onde se encontram o canal dentinário e o cementário ficou conhecido como limite CDC (Cemento-Dentina-Canal).
- O tecido que se encontra no canal dentinário é pulpar.
- O tecido contido no canal cementário é uma invaginação do ligamento periodontal, portanto, é tecido periodontal.
- O campo de ação do endodontista é o canal dentinário.
- O limite CDC representa o ponto de maior constrição do canal radicular.
Estes são postulados clássicos da Endodontia.
Dito isto, vamos observá-los mais de perto.
Para começo de conversa, diria que até o item 4 não existem dúvidas nem interpretações que possam ser consideradas corretas ou equivocadas.
De maneira simples, direta e objetiva, podemos dizer; é aquilo e aquilo mesmo.
Dali em diante, talvez não.
O limite CDC é algo consagrado na literatura endodôntica.
A partir do conhecimento sobre os tecidos que o compõem e da definição dos seus limites espaciais, tornou-se muito forte o consenso de que ali era o ponto onde deveriam ser estabelecidos os limites apicais de instrumentação e obturação dos canais.
O respeito ao coto pulpar também é algo consagrado na literatura endodôntica.
Traumatizá-lo sempre esteve fora de cogitação.
Daí o conceito de que aquela porção final do canal era sagrada.
Ainda que o coto pulpar não mais estivesse vivo e sim necrosado, sem ou com lesão periapical, aquele limite tinha que ser respeitado.
Mas que limite?
O limite CDC.
“O comprimento de trabalho ideal, acordado entre a unanimidade dos autores desde os estudos de Grove, situa-se no limite CDC. Aparelhos eletrônicos promovem a detecção exata da constricção apical”.
Spironelli, CA e Bramante, CM
Sabendo-se que o canal cementário, e consequentemente o tecido que o compõe, não representavam o campo de ação do endodontista (este era representado pelo canal dentinário), era na constrição apical (CDC) o limite apical no qual deveria trabalhar o endodontista.
Ali ele instrumentava o canal, ali ele o obturava.
Então o comprimento de trabalho do endodontista era… era qual mesmo?
Observando a tabela acima, onde podemos ver uma pequena amostra da diversidade de comprimentos de trabalho recomendados, parecem ficar claras as dificuldades existentes.
Onde finalmente era esse limite?
Onde finalmente o endodontista deveria “parar”?
Ela nos mostra que a depender do autor e da condição tecidual os comprimentos preconizados são os mais diversos possíveis.
Como recomendar tantas e tão diferentes medidas?
Como podiam os professores exigir precisão diante de tamanha imprecisão?
Afinal, é o conhecimento da anatomia e dos tecidos que constituem as porções finais do canal ou o “achar” de cada professor?
Em outras palavras, é o conhecimento ou a interpretação dele?
“Não há verdade definitiva. Apenas, interpretações sobre a realidade, condicionadas pelo ponto de vista de quem as propõe”.
Nietszche
Apesar de esse tema não ter sido percebido e analisado sob essa perspectiva, a tabela nos diz algumas coisas, mas a principal delas:
Ninguém sabe onde é!
Foi nessa onda que chegaram os localizadores apicais eletrônicos.
E o mundo foi salvo.
Os endodontistas podiam “ver” agora com facilidade a impedância dos tecidos que compunham os canais dentinário e cementário.
Ao “apito” do aparelho, sabíamos; cheguei lá.
Cheguei no CDC.
Aqui é o meu limite.
Aqui é onde devo parar.
Pronto, dali por diante, depois da descoberta dos localizadores apicais eletrônicos, finalmente o coto pulpar podia descansar em paz. Estava definitivamente resguardado.
Finalmente, a medida exata, a precisão com que tanto sonháramos.
Saímos mundo afora cantando aos quatro ventos a oitava maravilha do mundo.
Baixaram um decreto.
“A partir de agora, quem não usar localizador apical eletrônico está ultrapassado”.
Mas, o mundo não é perfeito.
O mundo da Ciência menos ainda.
Começaram a perceber que não era exatamente daquele jeito.
Ainda existiam problemas, dificuldades a serem contornadas e por razões diversas percebeu-se que a precisão ainda não tinha sido alcançada.
Se já tínhamos avançado para a impedância, avançávamos agora para a frequência.
Agora sim!
Novos aparelhos, novos conhecimentos, novos…
Sim, mas… e a exatidão?
“A nova geração dos localizadores eletrônicos foraminais nos dá uma segurança de 100% na localização do limite CDC”.
Resta ainda alguma dúvida?
Não. Segundo muitos profissionais, questão resolvida.
Então vamos adiante.
Ser ou não ser. A anatomia é a questão
“A constrição apical parece ser mais um mito do que uma realidade”.
Walton, R. Princípios e Prática em Endodontia – 1997
“A constrição apical geralmente não existe”.
Wu, MK et al. O Surg O Med O Pathol Jan 2000
“A localização clínica do limite CDC é impossível”.
Ponce, EH e Vilar Fernández, JÁ. J Endod, 2003
“Os nossos resultados indicam que o limite CDC e a constrição apical são dois pontos distintos e que o diâmetro do canal no CDC é sempre maior do que o da constrição apical”.
Hassanien, EE et al. J Endod Abr 2008
Observe duas coisas.
Não falo desse ou daquele profissional, desse ou daquele autor.
Muitos são citados neste e em outros textos que escrevo. Com alguns deles concordo, de outros discordo.
Muitas vezes, em outros temas discordo daqueles com quem concordei, ou, ao contrário.
A discussão é feita em cima de ideias e concepções, não importa de quem sejam.
A outra questão é a seguinte.
O localizador é mais um recurso importante para o tratamento endodôntico e muito bem-vindo. A questão, mais uma vez, é a conotação que deram e dão a ele.
Querem por precisão de 100% onde não existe.
Há muito tempo os estudos de anatomia já mostram as peculiaridades dos canais, particularmente no terço apical.
“A constrição do canal só pode ser observada na secção adequada de um corte histológico e este é o único método que permite a determinação do comprimento de trabalho”.
Langeland, K. 1995
O diálogo
Se você ainda não leu Os limites na Endodontia, convido-o a fazer isso para nos entendermos melhor. Trago de lá a imagem abaixo.
Pelo que observamos naquele texto e na imagem acima, como é possível determinar com precisão o limite CDC se em um mesmo canal há uma grande variabilidade na extensão do cemento?
As letras e setas verdes e vermelhas na imagem acima do trabalho de Ponce e Vilar Fernandez foram colocadas por mim, para deixar bem claros os pontos onde se encontram cemento-dentina-canal (CDC). Como se pode observar, não existe um limite CDC, mas sim, alguns.
Como querer precisão de 100% nessas condições?
Voltemos à figura 2 e à frase que diz que “para que o localizador tenha a eficiência desejada, é necessário que o instrumento atinja o forame…”.
Por que ele tem que atingir o forame?
Por uma razão bem simples.
Porque, graças à complexidade da anatomia naquele segmento do canal, o localizador não é capaz de fazer a leitura perfeita, aquela que todos desejam e dizem existir.
Então ele precisa ir até o forame apical e de lá perguntar ao endodontista.
– Cheguei. Já estou aqui no forame apical e pelo caminho fui vendo que existem alguns pontos em que a dentina se encontra com o cemento. Qual deles escolho para você registrar aí como seu limite CDC? Ou você prefere que eu recue de acordo com o protocolo que você segue?
O que fazem nessa hora?
Daquela medida registrada pelo localizador no forame, recua-se o necessário de acordo com o limite que o profissional usa, geralmente a depender da escola que ele segue.
Numa grande quantidade de vezes, esse recuo é de 1 mm.
O CT será então 1 mm aquém do registro do localizador.
Confere?
Ou você conhece alguém que usa 0,5 aquém nos pacientes jovens e 0,7 nos pacientes idosos, como detalhou Kuttler em 1955?
Sabendo-se que essas medidas representam médias e, portanto, existem inúmeras outras, como 0,2 ou 0,3 ou ainda 0,8 e 0,9, algum localizador registra assim o limite CDC?
Posso lhe fazer uma pergunta?
Por que inicialmente foram chamados de localizadores apicais eletrônicos, como os tratei até aqui, e agora são chamados de localizadores foraminais eletrônicos?
A precisão desnecessária
Voltemos novamente à figura 2, à primeira parte da frase superior.
“Por décadas, trabalhamos além do forame apical sem saber”.
Uma evidente crítica à possibilidade de a radiografia eventualmente nos dar a falsa impressão de estarmos dentro do canal.
Ora, se “para que o localizador tenha a eficiência desejada, é necessário que o instrumento atinja o forame…”, ele já está fora do canal.
Fora do canal, ele já está nos tecidos periapicais!
Se alguém imagina o contrário, desconhece anatomia apical.
Observe as figuras acima. Na imagem à esquerda, a lima está “dentro” do forame, porém, vista numa visão mais próxima na imagem à direita, ela aparece dentro do forame sob a perspectiva da parede que está “atrás” dela (como se fosse a face palatina), mas está 1 mm fora sob a perspectiva da parede anterior (como se fosse a face vestibular).
E o que dizer das imagens na figura abaixo, do trabalho de Blaskovic-Subat e colaboradores?
A radiografia nos daria “uma falsa impressão do instrumento dentro do canal, pela angulação e formação do halo apical”.
Verdade.
Para os mais jovens, o halo de que se fala corresponde à quantidade de tecido mineralizado que está “por trás” da lima na figura acima, cuja extensão é mostrada pela seta dupla preta pontilhada, colocada por mim (letra C).
Pela radiopacidade desse tecido “em volta e acima” do instrumento que apareceria na imagem da radiografia periapical, imaginaríamos que o instrumento está dentro do canal, quando, na verdade, está fora.
E o que nos diria o localizador foraminal? Pela parede “palatina” ele ainda está ligeiramente aquém da abertura foraminal, portanto, “dentro do forame”, mas pela parede “vestibular” ele está além do forame apical.
Aí o localizador daria um alerta.
– Doutor, cuidado! Pela parede “palatina” o instrumento ainda está ligeiramente aquém do forame e pelas proximais, mesial e distal, ligeiramente fora. Mas pela parede “vestibular” ele está completamente além do forame apical, portanto, nos tecidos periapicais.
É assim?
Estou enganado ou posso dizer que não é?
Sendo assim, a depender do limite apical utilizado (quanto mais próximo do ápice radicular, maiores as chances) mesmo com o localizador e sua “precisão tão precisa”, não há ainda alguma possibilidade de trabalhar “… além do forame apical sem saber”?
E que história é essa de que só estamos em tecidos periapicais quando estamos além do forame apical?
Qual é o tecido que invagina e preenche o canal cementário?
O ligamento periodontal (“bolas” amarelas). Observe como é ele (“bola” azul) que penetra no canal cementário.
Ali, ele é tecido periodontal apical. Sendo assim, o instrumento não precisa estar além do forame para estar em tecido periapical.
Digamos, porém, que existisse um único limite CDC e este fosse detectado pelo localizador com precisão.
Ótimo.
Para que?
Duas questões devem ser consideradas.
A ampla, total e irrestrita “ampliação foraminal” que fazem nos tratamentos endodônticos e a enorme quantidade de material obturador que jogam nos tecidos periapicais.
Como pode alguém que preconiza, ensina e estimula isso falar de cuidados e preocupações com os tecidos periapicais?
Como explicar o Glória nas Alturas aos localizadores foraminais e as cabecinhas balançando no amém, amém, amém pelo que chamam de “surplus”?
Aceitemos o limite CDC como a fronteira natural entre cemento e dentina.
Seria ali a fronteira entre o que se considera o campo de ação do endodontista, canal dentinário, e os tecidos periapicais.
Os deuses da endodontia moderna, que falam pelos instrumentos e aparelhos e não pela Endodontia, precisam entender que era esse limite que ditava os procedimentos do tratamento endodôntico.
Se certos ou errados é outra questão, que não cabe discutir aqui agora.
Não se trata de concordar ou discordar da concepção, essa é outra questão, mas a proposta do localizador era, por ser preciso na detecção do limite CDC, não traumatizar os tecidos periapicais, pois estes não estariam inseridos no contexto do preparo e obturação do canal.
Lembre que, concordando ou não, o canal cementário não era incluído no preparo do canal nem na obturação. Muito menos ainda, os tecidos periapicais.
A louvada precisão de 100% do localizador significa então que você vai usar uma ferramenta para detectar com exatidão o limite CDC, para logo em seguida destruí-lo com a ampliação foraminal e jogar uma enorme quantidade de material obturador nos tecidos periapicais.
Não é um espetáculo?
Por que, então, todo esse encantamento e interesse em disseminar uma ferramenta que “detecta” o limite CDC com precisão de 100%, se na “excelência em endodontia”, da qual se fala todo dia, invadem e destroem a fronteira natural entre cemento-dentina-canal-tecidos periapicais em todos os tratamentos endodônticos?
Por que “vender” a necessidade da precisão do localizador, se destroem o limite que ele teria registrado e, por ali, inundam os tecidos periapicais com material obturador, uma tremenda e injustificável agressão a aqueles tecidos?
Não percebem a contradição?
…com frequência, se processa uma separação definitiva entre o falado e o vivido, e a ciência se torna um jogo de conceitos… Malabarismo verbal, virtuosismo conceitual.
Rubem Alves – Conversas com quem gosta de ensinar, 2002