Paradigmas da Endodontia

Por Ronaldo Souza

Como nasce um paradigma

Um grupo de cientistas colocou cinco macacos numa jaula, em cujo centro puseram uma escada e, sobre ela, um cacho de bananas. Quando um macaco subia a escada para apanhar as bananas, os cientistas lançavam um jato de água fria nos que estavam no chão. Depois de certo tempo, quando um macaco ia subir a escada, os outros o enchiam de pancada. Passado mais algum tempo, mais nenhum macaco subia a escada, apesar da tentação das bananas. Então os cientistas substituíram um dos macacos.

A primeira coisa que ele fez foi subir a escada, dela sendo rapidamente retirado pelos outros, que lhe bateram. Depois de algumas surras, o novo integrante do grupo não subia mais a escada. Um segundo macaco foi substituído, e o mesmo ocorreu, tendo o primeiro substituto participado, com entusiasmo, da surra ao novato. Um terceiro foi trocado, e repetiu-se o fato. Um quarto e, finalmente, o último dos veteranos foi substituído.

Os cientistas ficaram, então, com um grupo de cinco macacos que, mesmo nunca tendo tomado um banho frio, continuavam a bater naquele que tentasse chegar às bananas.

Se fosse possível perguntar a algum deles porque batiam em quem tentasse subir a escada, com certeza a resposta seria:

“Não sei, as coisas sempre foram assim por aqui…”

Se determinadas profissões ou especialidades perdem a capacidade de refletir, de discernir e, pior, de discutir os problemas inerentes a elas, tornam os seus membros vítimas da massificação do pensamento e do comportamento.

Isso ocorre geralmente no sentido de manter o que está estabelecido.

Para isso, criam-se argumentos que nada mais são do que maneiras de preservar o “status quo”.

Criam-se então coisas como a “incontestável” necessidade de evidências.

Sem o suporte delas, qualquer ideia nova tenderá a ser reprovada pelos doutos daquela especialidade.

Qualquer ideia nova que venha a alterar o estado atual ou, status quo.

Quem ousa enfrentar e contestar a necessidade de evidências?

Entende o porquê da “incontestável” necessidade de evidências?

É triste ver o mundo acadêmico se perder com alguma frequência no emaranhado da “necessidade” das evidências.

…com frequência, se processa uma separação definitiva entre o falado e o vivido, e a ciência se torna um jogo de conceitos… Malabarismo verbal, virtuosismo conceitual.
Rubem Alves

Como conceber uma ideia, uma nova concepção, algo que acabou de nascer, apoiada em evidências?

É aí que se perde o direito à imaginação.

Diante disso, a derrubada de paradigmas se torna impossível, ou pelo menos bem mais difícil.

Diante de qualquer possibilidade de se mudar o que está consagrado pelos anos de prática, o que fazem os professores que se tornaram especialistas, mestres e doutores em formar correntes do não pensar?

Apelam para as evidências.

Na verdade, escondem-se atrás delas.

Evidências às quais recorrem mas que, quando conveniente, eles próprios apontam para a inconsistência ou até mesmo inexistência delas em muitas situações.

Ou você nunca observou as entrelinhas das conclusões de alguns artigos e viu o que pode estar contido na “necessidade de mais pesquisas clínicas bem delineadas, bem conduzidas, estudos clínicos randomizados, que forneçam suporte adequado que permitam esclarecer melhor…”?

Li no sábado o artigo acima, recém publicado.

Veja a conclusão do resumo:

“Dentro das limitações do presente estudo, a manutenção da patência apical não afetou os resultados do tratamento endodôntico”.

Este é um estudo clínico randomizado, reconhecido na escala de importância dos estudos.

Um periódico importante.

Dirão então que aí está uma evidência forte.

Como evidência forte, é uma daquelas “que fornecem suporte adequado que permitem esclarecer melhor…”.

E esclarece, dizendo que a patência apical não melhora os resultados.

Como iremos vê-la?

– Como não há evidências que justifiquem a realização da patência apical, para que faze-la? –

Assim ela será mostrada nos eventos de Endodontia.

Se lá chegar.

Hoje não falta quem fale daquele instrumento, daquele sistema de instrumentação, daquele sistema de obturação, dos novos cimentos obturadores…

Quem fala de Endodontia?

Qual evento você conhece que promove a discussão dos temas pertinentes à Endodontia?

Não parecem um desfile de palestras, quase todas falando dos “mais recentes e avançados instrumentos e sistemas de…”?

Do auditório para o stand.

Nunca foi tão curto esse caminho.

Como seria interessante se alguns professores falassem um pouco sobre Endodontia.

Assim, muitos entenderiam o que é Endodontia e aí, quem sabe, até melhoraria a qualidade do ensino no Instagram.

Muitos perceberiam, por exemplo, por que a evidência forte aí em cima não tem força.

Por uma razão bem simples.

O trabalho partiu de uma premissa equivocada.

Veja o que dizem os autores já na primeira página:

“Define-se patência apical como uma técnica que permite a eliminação de debris na porção apical do canal pela recapitulação com uma lima fina através do forame apical. A lima de patência deve ser de pequeno calibre e flexível usada com movimentos passivos através do término do canal sem estar ajustada ou ampliando a constrição apical.

Por favor, volte e leia lá em cima o objetivo do trabalho.

Se desconsiderarmos a análise da dor pós-operatória, como estou fazendo, lá diz que “o objetivo foi avaliar o efeito da patência apical no reparo periapical”.

Quando prepara um canal com lesão periapical, você usauma lima fina…  de pequeno calibre e flexível usada com movimentos passivos…  sem estar ajustada ou ampliando“?

Claro que não.

Você usa limas ajustadas da melhor maneira possível às paredes do canal para que possam, por ação mecânica efetiva de desgaste e consequente ampliação, entre outras coisas remover o seu conteúdo.

Como podem autores e professores, sejam eles quem forem, pretender observar “o efeito da patência apical no reparo” de lesões periapicais com limas finas, de pequeno calibre, folgadas no canal, usadas com movimentos passivos, sem ação de desgaste e, portanto, de ampliação???

O trabalho está errado porque o conceito de patência, que há muitos anos chamo de foraminal e não apical, não é bem entendido e como consequência é mal interpretado.

No entanto, por preencherem alguns “requisitos”, como o fator de impacto do periódico em que são publicados, muitos artigos ganham o certificado de evidência.

E “derrubam” aquela nova forma de pensar porque ela evidencia os equívocos das evidências (a redundância é intencional) do que está consagrado.

Apesar de já falar sobre esse tema há muitos anos, foi somente em 2006 que publiquei o artigo acima (se desejar lê-lo, clique aqui www.scielo.br/pdf/bdj/v17n1/v17n01a02.pdf).

Nele explico a diferença entre patência apical e limpeza do forame (como eram conhecidos) e que o objetivo da patência apical (foraminal) é basicamente mecânico e não biológico.

Obs: Conheci a história de “Como nasce um paradigma” há alguns anos através de um grande amigo, o Prof. Pécora.

Obs 2: Continuaremos esse tema no próximo texto.