Paradigmas da Endodontia. 3ª parte

Por Ronaldo Souza

   

A história da Endodontia mostra que inicialmente o canal era instrumentado e aí se seguiam trocas sucessivas de “curativos de demora” (fase da desinfecção), antissépticos que eram colocados e renovados periodicamente até que não houvesse mais nenhum odor desagradável nos canais.

Isso mesmo, o olfato desempenhava papel importante na Endodontia. Quando os curativos eram removidos para a troca, eram cheirados pelo profissional até que nenhum odor existisse mais.

Esta era a hora da obturação.

Em outro momento, o acesso passou a ser o passo inicial do tratamento, tendo na sequência o preparo do canal e finalmente a obturação.

Observe que nas duas formas de dividir as etapas, a parte destinada à “preparação” do canal representa a base da pirâmide, a base do tratamento; instrumentação/desinfecção ou acesso/preparo.

À obturação cabiam as honras de concluir o tratamento, por isso ocupando o ápice do tratamento, o vértice da pirâmide.

Mas não só essas honras lhe eram reservadas.

Desde a publicação de (John) Ingle, o famoso estudo de Washington, todas as honras do tratamento endodôntico couberam à obturação.

Apesar de muito se ouvir que o tratamento era como uma corrente, onde todos os elos têm a mesma importância, ele nunca foi visto, de fato, dessa maneira.

Dê só uma olhadinha nas citações abaixo (existem centenas de outras nesse mesmo tom na literatura) que você não terá nenhuma dificuldade em observar que a obturação, por mais que autores e professores dissessem que todos os passos do tratamento eram iguais em importância, sempre foi vista como o fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico.

Cerca de 60% dos insucessos endodônticos são, aparentemente, causados pela obturação incompleta dos canais radiculares.
O objetivo principal da Endodontia é promover um selamento hermético no forame apical e obliteração do canal radicular.
Ingle, 1956

É de observação diária a presença de rarefações periapicais em porcentagem bastante elevada nos canais com obturações incompletas, sem que estes estejam necessariamente infectados.
Bevilacqua

A reparação apical pode ocorrer independentemente da presença de microrganismos, desde que o conduto esteja corretamente obturado.
Paiva e Antoniazzi

Comprovadamente, a sub e a sobre obturação influem no resultado final do tratamento endodôntico.
Soares, IJ e Rocha, MJ

A menos que uma obturação bem adaptada, densa, seja feita, o prognóstico é duvidoso, a despeito de quão bem as outras fases do tratamento tenham sido realizadas.
Nguyen, NT

Os  procedimentos de limpeza e modelagem dos canais têm por objetivo permitir seu preenchimento de maneira  satisfatória  com  um material sintético.
Holtz, AP e Machado, MEL

O êxito final do tratamento endodôntico está condicionado à qualidade da obturação.
Mario Leonardo

A obturação hermética do sistema de canais por meio de materiais biologicamente toleráveis continua sendo a meta do tratamento endodôntico.
Guerisoli, DMZ e cols.

O objetivo da terapia endodôntica é obturar e vedar hermeticamente o sistema de canais radiculares, de modo a possibilitar um selamento biológico.
Michelotto, AL e cols.

De nada adiantarão os cuidados de assepsia, a execução de uma técnica atraumática, o preparo biomecânico cuidadoso, se a obturação for defeituosa.
Mário Leonardo

Não há nenhum juízo de valor em relação às citações, é tão somente a constatação do lugar nobre dado à obturação pela literatura.

Nunca consegui ver o tratamento endodôntico como um procedimento que se divide em três partes, como sempre se estabeleceu.

Não conseguia e não consigo ver, por exemplo, o acesso como etapa diferente à do preparo, como está representado acima na pirâmide da direita.

Quando se faz acesso ao canal já se está fazendo o preparo da cavidade pulpar, na sua porção coronária. Na sequência, será feito o preparo da cavidade pulpar na sua porção radicular, o que é conhecido como preparo do canal.

Sendo assim, acesso e preparo constituem a mesma etapa, aquela em que se faz o preparo da cavidade pulpar, nas suas porções coronária e radicular.

Observe que não estou falando que o tratamento é feito em duas ou mais consultas e sim com momentos diferentes.

Pre-determinar a quantidade de consultas necessárias para que esses dois momentos possam ser bem realizados representa um equívoco diante das possibilidades que existem em qualquer tratamento na área da saúde.

Alguns fatores podem e devem ser observados:

  • Características de cada paciente
  • Características de cada caso
  • Eventuais dificuldades que podem surgir durante o tratamento

Independente disso, o estabelecimento de etapas parece mais sensato quando feito da maneira abaixo:

  • Preparo
  • Obturação

No preparo do canal, são esses os passos:

  • acesso
  • instrumentação
  • irrigação
  • medicação intracanal*

Para simplificar a compreensão desses passos, observe que há um objetivo bem definido; remover o conteúdo do canal.

É particularmente na promoção do reparo em casos com necrose pulpar e infecção do sistema de canais que entra a medicação intracanal.

Devemos  ver essa etapa como o momento de remoção do conteúdo e controle de infecção.

Uma vez que isso é alcançado, ou seja, que a remoção do conteúdo e o controle de infecção são alcançados, o canal vazio se torna um convite à contaminação ou recontaminação. Ele precisa, portanto, ser protegido.

Chega o momento da obturação.

Precisamos então entender o seguinte:

  1. Há um momento em que se trabalha o canal visando o seu esvaziamento, a remoção do seu conteúdo, que constitui a etapa do preparo do canal
  2. Há outro momento, completamente diferente, em que o canal é preenchido, selado para evitar sua contaminação ou recontaminação e esta constitui a etapa da obturação.

Se estivéssemos falando de um ato operatório em Medicina, onde estaria a maior importância? No momento da remoção da causa da patologia ou no momento da sutura?

Não tenho nenhuma dúvida de qual é a sua resposta.

E por que não é assim na Endodontia?

O que é o preparo do canal?

O que acabou de ser descrito; fundamentalmente, a remoção da causa da patologia (lesão periapical), que é a infecção contida no canal, ou, se quisermos dizer da forma mais apropriada, no sistema de canais.

O que é a obturação do canal?

O momento da sutura.

Por que na Endodontia a sutura, representada pela obturação, é mais importante do que a remoção da causa?

Ou não é isso que está dito de diferentes maneiras por diversos autores nas citações lá em cima e em muitas outras?

  1. Por que o travamento perfeito do cone de guta percha sempre foi colocado como momento especial?
  2. Por que a “sutura hermética”, crença e desejo que jamais foram confirmados pelos trabalhos publicados, continua sendo ensinada como fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico?

Pensamentos e procedimentos consagrados pelo tempo, mas que nunca foram consagrados pela Ciência Endodôntica.

Nem pelo bom senso.

A Endodontia estava engessada.

Dá para imaginar quantas evidências científicas existem dando respaldo à necessidade de travamento do cone de guta percha como garantia de vedamento hermético ?

Dá para imaginar quantas evidências científicas existem dando respaldo ao uso de determinados cimentos obturadores?

Dá para imaginar quantas evidências científicas existem dando respaldo à necessidade de vedamento hermético?

Dá para imaginar quantas evidências científicas existem dando respaldo à obturação como fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico?

Assim como fui repetitivo aqui, também foram e são os inúmeros trabalhos publicados gerando essas “evidências” às quais recorrem vários professores.

Diante de tantas evidências, como ousar enfrentar e contestar o incontestável?

Você entende agora porque tenho dito contestar o incontestável?

Vou fazer uma correção.

Contestar o que parecia incontestável.

Muito além do jardim

Em 2006 foi publicado o trabalho de Sabeti e colaboradores.

Após o preparo de 56 canais de dentes de cães com lesão periapical, eles foram divididos em dois grupos:

  • Grupo controle: os canais de 28 dentes foram obturados com cones de guta percha e cimento AH Plus
  • Grupo experimental: os canais de 28 dentes não foram obturados

Após análise histológica do reparo dos 56 dentes com lesão periapical, os autores concluíram:

“Em suma, este estudo demonstrou que não há diferença no reparo de lesões periapicais entre canais obturados e não obturados, desde que a limpeza e modelagem e o selamento coronário tenham sido realizados. Como não podemos assegurar que o canal foi esterilizado e somos capazes de eliminar microrganismos do sistema de canais infectado, a obturação ainda é recomendada. Isso pode reduzir espaço e nutrição para a multiplicação de microrganismos remanescentes. Concluindo, o insucesso não ocorre pela falha da obturação, mas pela falha da limpeza e modelagem. O sucesso do tratamento endodôntico depende fundamentalmente da eliminação de microrganismos, resposta do hospedeiro e selamento coronário dos canais tratados, que podem fornecer um potencial para contaminação bacteriana futura”.

Sintetizo dessa maneira:

  1. Não houve diferença na cura de lesões periapicais entre os canais obturados e os não obturados
  2. O sucesso do tratamento endodôntico depende fundamentalmente da eliminação de microrganismos, defesa do hospedeiro e selamento coronário dos canais tratados

O insucesso não ocorre pela falha da obturação, mas pela falha do preparo do canal

Você não acha que o resultado desse trabalho é muito intrigante?

Publicado em 2006, por que em 13 anos não houve o interesse que se poderia imaginar por pesquisas e publicações de outros artigos sobre esse tema?

Você não acha que um resultado que diz o contrário do que disse e diz a literatura endodôntica ao longo de mais de 50 anos deveria merecer um grande interesse por parte de outros pesquisadores?

Não mereceria que outros trabalhos fossem feitos na mesma linha?

Ou não interessa saber qual é, de fato, o real papel da obturação no tratamento endodôntico?

Você acha que, apesar de publicados em periódicos importantes, com alto fator de impacto, as evidências resultantes desses artigos respaldando a obturação como fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico podem ser fortes?

Surgem assim duas questões relevantes:

  1. Devemos continuar ignorando as evidências que “ameaçam” contestar as “incontestáveis evidências” da necessidade de travamento perfeito do cone de guta percha, vedamento hermético e da obturação como fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico?
  2. Devemos considerar o que pode estar surgindo de consistente na Endodontia ou simplesmente seguir encantados com as maravilhas da mais recente e avançada lima, sistema de instrumentação, sistema de obturação, do mais novo cimento obturador…?