Por Ronaldo Souza
O êxito final do tratamento endodôntico está condicionado à qualidade da obturação
Por incrível que deveria parecer, ainda hoje se ensina a obturação como fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico.
Essa concepção, criada por Ingle em 1956, tornou-se possível e se difundiu mundo afora graças ao famoso estudo de Washington. Apoia-se fundamentalmente em dois pilares; o travamento apical perfeito do cone de guta percha e o consequente vedamento hermético que proporcionaria, contando, claro, com a participação do cimento obturador.
Vejamos isso.
A grande causa, a maior, das alterações pulpares é a cárie. Fiquemos nela para facilitar a compreensão.
1. Por onde chegam as bactérias que promovem a cárie, pela coroa ou pelo ápice radicular?
Precisa responder?
2. Em condições normais, na região periapical existe bactéria?
Não.
Bactérias conseguem sobreviver nos tecidos periapicais?
Ainda motivo de controvérsia, normalmente não. Alguns autores dizem que é possível, outros dizem que não. Como este texto não pretende ser um artigo científico formal, não colocarei aqui nomes de autores que defendem uma ou outra concepção e muito menos as bactérias que teriam essa capacidade. Só lhe digo que seriam muito poucas.
Por que essa dificuldade das bactérias em sobreviver nos tecidos periapicais?
Porque expostas ao ambiente periapical, estariam sujeitas e dificilmente resistiriam ao sistema imune do paciente (no sistema de canais estão protegidas) e isso só ocorre em situações bem específicas.
Em condições normais, portanto, não existem bactérias no periápice.
Como se ensinou e se ensina a fazer obturação ao longo dos anos?
Era (ainda é?) imprescindível que se conseguisse o travamento apical perfeito do cone de guta parcha, cortando-se a sua ponta para travar bem ou mudando o cone para um de calibre maior.
Quando você concluía a obturação estavam lá o cone principal e acessórios com os seus excessos saindo pela porção coronária. Você os cortava, aproveitava o momento de guta percha aquecida, portanto, plastificada, acomodava, condensava verticalmente e selava a coroa.
Independentemente das técnicas mais modernas, para muitos ainda é assim numa quantidade considerável de vezes.
Em que momento você gastava mais tempo? Promovendo o travamento perfeito do cone (o professor dizia que não estava bom e aí se cortava o cone com uma lâmina de bisturi ou trocava o cone até chegar ao travamento ideal) ou “acomodando” a guta percha na entrada do canal para colocar o cimento selador da coroa?
O que lhe disse a sua memória?
Percebeu a inversão?
No local por onde não “chegam” os microrganismos, o ápice radicular, você gastava um tempo enorme para fazer a obturação perfeita, que travasse o cone perfeitamente e vedasse hermeticamente o canal.
No local em que elas existem aos milhões, o ambiente bucal, e por onde elas iniciam o processo de invasão do sistema de canais, a embocadura do canal (terço cervical), você simplesmente concluía a obturação sem maiores preocupações, muitas vezes até com pressa e “jogando” o cimento selador coronário para “fechar” o dente.
Se as bactérias que promovem a cárie, invadem o sistema de canais, promovem necrose pulpar e infecção do sistema de canais chegam pela coroa/terço cervical do canal, por que cuidados especiais sempre foram destinados ao travamento do cone e vedamento hermético no ápice radicular?
Percebe a enorme distorção de valores e preocupações?
Este é o primeiro equívoco e foi consagrado durante mais de 60 anos.
Vamos simplificar o restante de maneira simples, direta e objetiva:
- O travamento do cone principal de guta percha como sinônimo de vedamento hermético nunca existiu e não existe.
- O vedamento hermético do canal nunca existiu e não existe.
Faz algum sentido insistir com o ensino de uma especialidade que tem como fundamento um princípio que nunca foi comprovado em mais de 60 anos?
Faz algum sentido insistir com o ensino dessa Endodontia que diz que “o êxito final do tratamento endodôntico está condicionado à qualidade da obturação”.
Não importa quem disse isso, até porque representa o pensamento dos professores de um modo geral.
Há mudanças no horizonte?
Espero que sim.
Mais uma vez, como já fiz em diversos momentos, quem tiver trabalhos que confirmem a existência de vedamento hermético, por favor, envie ou diga onde encontra-los.
“A obturação é um componente importante para o tratamento, mas deve ser vista como um complemento para o controle de infecção”.
Figdor, D
Deixo aqui dois artigos sobre esse tema para você ler, é só clicar sobre eles. Vale a pena.
- Healing of apical periodontitis after endodontic treatment with and without obturation in dogs
- Relationship between the apical limit of root canal filling and repair
Já postei informações detalhadas sobre o primeiro no texto Paradigmas da Endodontia. 3ª parte e o que disse lá repito aqui. Estranho muito que um belo trabalho, publicado em 2006 (está fazendo 14 anos) até hoje não tenha despertado curiosidade e interesse dos pesquisadores em investir em mais pesquisas e publicações sobre a importância da obturação e seu real papel no tratamento endodôntico.
Estranho e lamento que seja assim.
Li o artigo abaixo há cerca de dois meses.
Falta de evidências para a necessidade de obturação do canal
Esta é a tradução do título desse interessante trabalho, que entre outras coisas diz:
- A despeito dessa óbvia falta de evidências da necessidade da obturação…
- Tem sido repetidamente demonstrado que os materiais e técnicas de obturação existentes não conseguem promover vedamento hermético, sem espaços vazios…
- As bactérias têm demonstrado que não só são capazes de crescer nos materiais obturadores como também de degrada-los
- A presença da obturação não impede a bactéria de novamente ocupar o espaço interno do canal e causar o fracasso do tratamento
- Mesmo se uma obturação perfeita fosse possível, haveria espaço suficiente para o crescimento bacteriano
Quando o li, entrei em contato com o professor Matthias Karl, um dos autores, professor na Alemanha, e desde então temos conversado bastante.
Logo no seu segundo e-mail, uma das coisas que ele me disse foi isso:
“Seeing the huge amount of stupid ‘research’ done in this field comparing sealer A vs. B and file C vs. D often drives me crazy and no one does the really important things… it is difficult to fight with established opinions…”
“Ver a enorme quantidade de ‘pesquisas’ estúpidas feitas nesse campo, comparando cimento A vs. B e lima C vs. D, muitas vezes me deixa louco e ninguém faz as coisas realmente importantes… é difícil lutar com opiniões estabelecidas”
Na mosca.
Devo esclarecer que, como se trata de comunicação pessoal, estou devidamente autorizado por ele a usar o seu texto.
Você faz ideia de quantos artigos já foram publicados comparando cimentos obturadores?
Você faz ideia de quantos artigos já foram publicados comparando limas?
Não faz?
Também não.
Posso lhe dizer, porém, que devem existir centenas.
Não é de “deixar louco” saber que existem centenas de artigos que falam de instrumentos e materiais, mas que praticamente inexistem artigos como o de Sabeti e colaboradores (o primeiro dos dois cujos links deixei aí em cima) que falam de Endodontia e mostram como ela é de fato?
Por conta de muitos “publicadores”, a nossa ciência anda cada vez menos científica.
Publicam, publicam, publicam… e o que fica?
Produz-se muito, aproveita-se muito pouco.
O prazo de validade é até que surja um novo instrumento, um novo cimento…
“Ninguém faz as coisas realmente importantes”.
Mas o currículo está lá para mostrar que aquele publicador é importante porque tem muitas publicações em periódicos importantes.
Segundo (Miguel) Nicolelis, brasileiro que é tido como um dos maiores cientistas do mundo, Einstein jamais seria pesquisador A1 do CNPq aqui no Brasil.
Pense no que isso significa.
Os paradigmas da Endodontia não são necessariamente repensados e modificados por quem publica muito em periódicos ditos importantes. Por alguns deles, tudo continua como está, nada se modifica e a Ciência se torna algo que só se repete. Por favor, vá à primeira parte deste texto, Paradigmas da Endodontia, e leia logo no começo “Como nasce um paradigma”.
…com frequência, se processa uma separação definitiva entre o falado e o vivido, e a ciência se torna um jogo de conceitos… Malabarismo verbal, virtuosismo conceitual.
Rubem Alves
Os paradigmas são repensados e modificados por trabalhos que ousam, abrem novas perspectivas e mostram novos caminhos, ainda que eventualmente nem sejam publicados em periódicos consagrados e tão lidos nos primeiros momentos.
Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que vêem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas.
Schpoenhauer
A Ciência, como a Natureza, tem o seu tempo. É nele que “as coisas realmente importantes”, como diz o professor Matthias Karl, acontecem.
Enquanto isso, as coisas sem importância nos deixam loucos.
Repito aqui os dois questionamentos com que encerrei o Paradigmas da Endodontia. 3ª parte.
- Devemos continuar ignorando as evidências que “ameaçam” contestar as “incontestáveis evidências” da necessidade de travamento perfeito do cone de guta percha, vedamento hermético e da obturação como fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico?
- Devemos considerar o que pode estar surgindo de consistente na Endodontia ou simplesmente seguir encantados com as maravilhas da mais recente e avançada lima, sistema de instrumentação, sistema de obturação, do mais novo cimento obturador…?
Há uma Endodontia que ainda está por vir.