Por Ronaldo Souza
Volto a uma frase que escrevi na parte 2 deste texto
Ao ler o artigo de Edward Green (publicado em 1958), percebi que tudo que eu aprendera estava apoiado em bases equivocadas.
Instrumentos e técnicas de instrumentação podem e devem ser vistos sob duas perspectivas; mecânica e biológica.
Como temos feito aqui, tratemos isso de maneira bem simples e direta.
Perspectiva mecânica:
- A literatura ensina que o instrumento que clinicamente dá a sensação tátil de ajuste no CT não está ajustado. Pelo contrário, está folgado.
- Se está folgado no CT (que seria o ponto de constrição do canal – limite CDC, lembra?), não deve tocar em muitas paredes do corpo do canal.
- A literatura demonstra que mesmo a instrumentação do canal com algumas limas de maior calibre além da que ajustou no CT não toca em considerável quantidade de paredes.
- Você concorda comigo se eu disser que onde não toco, não limpo? Ou, pelo menos, onde não toco serão bem maiores as minhas dificuldades para limpar?
- Existem trabalhos demonstrando que o instrumento único toca em todas as paredes dos canais ou pelo menos toca em mais paredes do que os das técnicas que usam cerca de 4 a 5 instrumentos?
Perspectiva biológica:
- Existem trabalhos em animais demonstrando que o instrumento único promove mais reparo de lesões periapicais ou pelo menos da mesma forma que a instrumentação com as técnicas convencionais?
- Existem trabalhos em humanos demonstrando que o instrumento único promove mais reparo de lesões periapicais ou pelo menos da mesma forma que a instrumentação com as técnicas convencionais?
Façamos as correlações.
Se a literatura diz que o instrumento ajustado está folgado (a frase é intencional) e mesmo com a sua ação e de mais 3 ou 4 instrumentos em aumento sequencial de calibre algumas paredes do canal não são tocadas, ficam evidentes as limitações mecânicas da instrumentação.
Precisamos então de trabalhos que demonstrem que o instrumento único exerce ação mecânica mais efetiva do que a postura clássica que sugere o uso de alguns instrumentos. Esta ação se traduziria pela maior capacidade de tocar em mais paredes do canal. É do que trata o item 5 da perspectiva mecânica.
Esses trabalhos existem?
Sob vários aspectos, no ato operatório a ação mecânica dos instrumentos desempenha papel fundamental.
Por exemplo, a Periodontia aprendeu que somente o uso de substâncias químicas para a remoção do biofilme periodontal era inefetivo sem que houvesse a ação mecânica de raspagem radicular.
A Endodontia parece ter demorado um pouco mais para perceber isso. Sabe-se hoje, porém, que sem efetiva ação mecânica sobre as paredes do canal a remoção do biofilme não ocorre.
Sob essa perspectiva biológica, há suporte científico suficiente que demonstre que o instrumento único proporciona reparo das lesões periapicais com mais qualidade e maior frequência?
Vou lhe fazer uma pergunta bem simples e direta.
Se não há respostas confirmando os questionamentos acima, como professor de Endodontia posso sair Brasil afora recomendando que se adote a proposta de instrumentar os canais com um único instrumento?
Há algum conflito de interesses entre esse papel de divulgador do instrumento e a condição de professor?
Gostaria que você refletisse sobre essas questões.
De volta ao passado?
Por outro lado, já há recomendações de “pequenas modificações” sugerindo que mais instrumentos (os outros dois do próprio sistema, por exemplo, ou quaisquer outros) devem ser incorporados à proposta original.
Ou seja, recomenda-se que, além do instrumento único, outros mais sejam usados. Mais 1 ou 2, quem sabe 3? Quantos?
Talvez alguns nem conheçam a regra do 1+3 e 1+4, sobre a qual já falei aqui.
Cito-a porque durante muitos anos ela se tornou uma referência e, para muitos, algo obrigatório quando o assunto era quanto instrumentar os canais.
Como geralmente se fala dos molares (canais MV, ML e DV), como seria então esta “nova” técnica
Instrumento único + 2 instrumentos? Quem sabe 3?
Ah, você já ouviu falar dessa proposta.
E isso não lhe fez pensar?
Por que será que já estão começando a dizer que pode usar mais instrumentos além do único?
O único deixa de ser único?
Interessante.
A exigência por evidências que suportem o que se preconiza é primordial nas ciências.
Se algum dia eu tivesse tido dúvidas quanto a isso, elas teriam deixado de existir depois de agosto de 2009.
Foi durante um evento de Endodontia em Salvador.
Diante de um tema que estava sendo discutido, vi um professor negar a sua validade pela ausência de evidências.
A argumentação, entretanto, era pouco consistente, na verdade, equivocada.
Ocorre que um importante professor, que fazia parte do debate, também percebeu (por ele jamais ela passaria despercebida, dada a sua inteligência) e se manifestou desconstruindo a argumentação.
Não passou despercebida também para a plateia, que ficou bastante inquieta e a sua inquietação se manifestou principalmente através de perguntas escritas. Ressalve-se que todas eram encaminhadas para mim que em seguida lia para os debatedores.
Uma particularmente me chamou a atenção, pela qualidade e pela força. Ela não deixava dúvidas quanto à discordância ao professor que cobrava evidências da forma como o fizera.
Lembro que no intervalo do café uma endodontista do Paraná veio falar comigo, perguntando se eu não ia me manifestar (ela já tinha visto aulas em que eu abordava o mesmo tema). Era ela, a “dona” da pergunta.
Foram tantas as pessoas que me cobraram uma manifestação, que na volta do intervalo me vi “forçado” a explicar que eu era apenas o moderador, não simposiasta, e como tal não deveria emitir minha opinião.
Mas a vida segue e ao dobrar a primeira esquina, veio-me a tristeza de ver que nem sempre as evidências são merecedoras dos cuidados e carinhos a elas eventualmente dedicados.
Como dizer para não melindrar…, as evidências também têm suas conveniências.
Permita-me recomendar um texto que postei em 21 de dezembro de 2015; Quando as evidências não estão evidentes.
Recomenda a honestidade científica que as evidências não devem se movimentar ao sabor dos ventos das conveniências.
Sobrepor-se à ciência, por qualquer outro interesse que não seja ela própria, não deveria encontrar respaldo entre professores.
Há conflitos de interesse conhecidos na Endodontia e, com boa vontade, é possível que pelo menos alguns desses encontrem alguma explicação para sua existência.
Outros não.
Por isso, hoje vejo como preocupante, muito preocupante, a defesa tão veemente que ora se faz de uma proposta que claramente precisa de evidências que lhe deem algum suporte.
E elas não foram apresentadas até o momento.
Isso me remete a 2009.
Só que agora a exigência por evidências foi deixada de lado.
Enfatizo com o “claramente” por conta de algo que me parece óbvio.
Se o uso de cerca de 4 a 5 instrumentos não atende às expectativas do mundo endodôntico por não se mostrar capaz de tocar em considerável quantidade de paredes do canal, em que bases está apoiada a proposta de uso de um único instrumento?
Antes que me ataquem em nome da “endodontia moderna”, raciocinemos juntos.
Para onde conduz a lógica quando a instrumentação com cerca de 4 a 5 instrumentos se mostra insuficiente para o bom preparo do canal?
Se não conduz para o uso de mais instrumentos, parece bem menos provável que conduza para o uso de um só.
Você não acha que contrariar a lógica exigiria não só muitas evidências como também que elas fossem robustas?
Pergunto outra vez.
Essas evidências existem?
Que não se tente contra argumentar dizendo que para isso existe hipoclorito de sódio. Não seria inteligente.
Ainda é a solução irrigadora mais adequada e por isso a mais corretamente indicada para uso no tratamento endodôntico, mas a contra argumentação não é válida porque o hipoclorito de sódio também é usado na “técnica convencional”, com 4 a 5 instrumentos.
A imaginação é mais importante que o conhecimento
Talvez só ele pudesse dizer essa frase.
Einstein.
Um físico teórico.
“A imaginação é mais importante que o conhecimento”.
Não parece difícil imaginar o quanto essa frase deve ter incomodado o mundo acadêmico.
Ao longo dos anos as pesquisas nos mostraram a complexidade da anatomia do sistema de canais radiculares. Que se prestem homenagens hoje e sempre a esses pioneiros da Endodontia, ainda mais diante das condições de que se dispunha à época.
Ao mesmo tempo, brindemos às ferramentas que temos hoje nas nossas mãos. Mas sem esquecer que foram eles que construíram esse conhecimento.
Graças a eles, o “trabalhar no escuro” que se atribuía à Endodontia não era mais tão no escuro. Para isso existia a imaginação de alguns professores e endodontistas. Uma vez que se pode imaginar o que não se vê, as coisas ficam mais claras, ou, se você preferir, menos escuras.
Enxerga-se mais.
E essa característica de imaginar, pensar, refletir, inerente ao humano e não ao animal, só se fortalece à medida em que pesquisadores e professores, no sentido verdadeiro das palavras, estimulam esse processo.
Assim, foi ficando cada vez mais fácil entender o que é de fato o tratamento endodôntico.
O que já sabíamos por imaginar como seria, a tecnologia nos mostrou; a terceira dimensão na Endodontia.
A computação gráfica percorre o mundo através das publicações na literatura endodôntica mostrando em detalhes a anatomia da cavidade pulpar.
Ao ver esse “novo” mundo me senti muito bem e ao mesmo tempo frustrado.
A sensação de bem-estar se explica na confirmação de que a minha imaginação, que viajou comigo todo esse tempo e me fez “ver” o sistema de canais, nunca permitiu que eu trabalhasse no escuro.
E a frustração veio pela confirmação da complexidade do sistema de canais.
Como ser bem-sucedido diante daquela complexidade que eu estava vendo?
Foi a pergunta que insinuou me atormentar.
Novamente, estava diante de mais uma limitação que se impunha a mim. Eu, que já aprendera a identificar e conviver com tantas outras.
Sereno, entendi que seria tarefa para tolos pretender dominar aquela anatomia.
Dormi em paz.
E um dia acordei sob as trombetas da insensatez.
Alguém dizia que estava tudo resolvido; bastava um instrumento.
Um único instrumento.
E uma grande preocupação tomou conta de mim.
Não por conta do instrumento único, mas pelo horizonte que se desenhava.
Será que não estão percebendo que ao proporem uma única lima para algo tão complexo e desafiador evidencia-se uma enorme contradição?
Será que não estão percebendo que tratar a complexidade tridimensional do sistema de canais, que tanto fizeram questão de nos ensinar, com o pensamento unidimensional demonstra que o que estão fazendo é absolutamente paradoxal?
Dizem uma coisa e douram a pílula.
Fazem outra e tudo se resolve.
Sempre digo aos meus alunos para “fugir” de regras pré-estabelecidas em Endodontia.
Mas que façam isso apoiados em algo sólido, consistente.
O 1+3 e 1+4 se tornou uma regra pré-estabelecida?
Para muitos, sim. Tornou-se algo a ser cumprido.
Então vamos “fugir” dele.
Por que ensino aos alunos algo tão vago quanto “vamos instrumentar com cerca de 4 a 5 instrumentos”, às vezes um pouco mais, às vezes um pouco menos?
Por que escrevi no livro que “o comprimento de trabalho deve ser em torno de 1,5 mm aquém do ápice radicular?”
Por que “cerca de”, “em torno de” no mundo da precisão?
Porque simplesmente não há espaço para essa precisão em Endodontia.
Ela não existe.
A proposta da lima única vem apoiada no pragmatismo, divulgado e defendido como algo inerente ao “mundo moderno”.
Dizem, afirmam, repetem aos quatro cantos do “mundo moderno” que os não pragmáticos terão como prêmio o fracasso profissional.
“A vantagem competitiva de uma sociedade não virá da eficiência com que a escola ensina multiplicação e tabela periódica, mas do modo como estimula a imaginação e a criatividade”.
Walter Isaacson (autor da biografia, “Einstein – Sua vida, seu universo”)
É inimaginável imaginar que a imaginação é mais importante que o conhecimento onde falta imaginação para imaginar.
Triste sim.
Não pela formação do trenzinho da alegria que percorre o Brasil conduzindo a um único pensamento, a um único lugar, por um único caminho, quando tantos outros existem.
Triste sim, mas por saber que entre os tripulantes estão professores que poderiam levar muitas cores para a vida dos endodontistas e não somente uma cor.
O que os faz agirem assim?
O azul às minhas costas, que “entra” pela janela do local onde escrevo este texto, não está sozinho. Com ele estão o branco das nuvens, o verde das árvores, do mar, o colorido das flores e dos pássaros.
Todos banhados pelo frescor dos ventos que se renovam a cada minuto, trazendo o sopro da diversidade da vida.
Ah, como são tantos e diversos os caminhos que a vida nos oferece.
E a Endodontia também.
Que pena!