Por Ronaldo Souza
Quantos instrumentos usar?
Sempre houve e há uma grande preocupação com a questão de quantos instrumentos usar.
Nunca saberemos.
É um erro que se comete determinar previamente o quanto o canal deve ser instrumentado. Não deve haver regras pré-estabelecidas para algo que sofre tantas interferências, a mais importante delas a anatomia. Já deveria estar claro que cada caso deve ser analisado e “sentido” pelo profissional.
“É imperioso deixar bem claro que os limites de ampliação do canal encontram-se condicionados aos aspectos anatomopatológicos”.
Siqueira Jr JF; Lopes H; Elias CN. Endodontia-Biologia e Técnica 2015
Esta é a ideia que se difunde há muito tempo na Endodontia.
Vejamos isso mais de perto, imaginando duas situações.
Caso 1. Imaginemos o tratamento endodôntico de um incisivo central superior com polpa viva.
Tão normalmente volumoso é esse canal que o instrumento que vai dar a sensação tátil de ajuste no CT deverá ficar entre as limas 35 e 45, nessa faixa. Usemos a #40 como exemplo. E para efeito didático, o 1 + 3.
40 + 45 – 50 – 55
Concluído o tratamento, o paciente é liberado, faz a restauração…
Um dia esse paciente volta ao seu consultório apresentando uma lesão periapical no referido dente e você percebe que terá que fazer o retratamento.
Diante da patologia, lesão periapical, o que lhe vem à mente?
Como vou ter que retratar, vou alargar mais porque aí tenho mais segurança. Vou usar pelo menos uns quatro. Seria esta então a sequência.
60 – 70 – 80 – 90
Tranquilo. Fez a nova instrumentação e a nova obturação. O paciente é liberado para fazer a restauração.
Caso 2. Imaginemos agora o tratamento endodôntico de um primeiro molar superior com polpa viva.
Com as técnicas atuais, tornou-se mais fácil “alargar” os canais. Assim, consegue-se instrumentar mais facilmente o canal mésio-vestibular até a lima 40, por exemplo.
O tratamento foi realizado e um dia esse paciente volta ao seu consultório apresentando uma lesão periapical no canal MV. Você vai então fazer o retratamento.
Diante da patologia, lesão periapical, o que lhe vem à mente?
Como vou ter que retratar, vou alargar mais porque aí tenho mais segurança. Vou usar pelo menos uns quatro.
Pelo mesmo raciocínio, como você sabe que fez um bom preparo, usou rotatório, conseguiu instrumentar até a #40, provavelmente seria esta a nova sequência para o retratamento:
45 – 50 – 55 – 60
Talvez aí surjam algumas questões.
- É comum instrumentar o canal mésio-vestibular do primeiro molar superior até a lima 60?
- Os endodontistas conseguem sempre numa boa?
- Em quantos canais MV se consegue esse nível de ampliação?
Sabemos que diante de casos com necrose pulpar e lesão periapical, a orientação tem sido alargar bem o canal.
Nas duas situações acima estamos diante da mesma patologia; lesão periapical.
No incisivo central superior fizemos o alargamento idealizado sem nenhuma dificuldade e poderíamos tranquilamente alargar mais se assim desejássemos.
Podemos fazer o mesmo no canal mesio-vestibular, isto é, alargar o quanto desejar?
Não.
Por que?
Por causa da anatomia, que aqui particularmente se traduz como a presença da curvatura inerente ao canal mesio-vestibular do primeiro molar superior.
Posso fechar o meu raciocínio?
Diferentemente de toda a literatura, para mim o que determina o quanto instrumentar não são os aspectos anatomopatológicos.
São os aspectos anatômicos.
É a anatomia. É ela quem dá as cartas.
Repito. A tentativa de pré-estabelecer regras em Endodontia é um grande equívoco.
Tem que ser 0,5 aquém, tem que ser 1 aquém; tem que instrumentar no mínimo até lima X, tem que alargar com tantos instrumentos; tem que obturar a 0,5 mm aquém, tem que obturar a 1 mm aquém, tem que fazer “surplus” (meu Deus!!!), tem que usar cimento Y, tem que usar técnica de plastificação da guta percha…
Nada disso.
O que há, isso sim, é um padrão que deve servir única e exclusivamente como orientação, nada mais do que isso.
Esse “padrão” de instrumentação tem sido estabelecido como algo em torno de 4 a 5 instrumentos.
Um pouco mais, um pouco menos?
O pouco mais ou o pouco menos será definido na hora em que o canal estiver sendo tratado por um bom endodontista, pois somente nessa hora ele saberá “quem” é aquele canal.
Somente nessa hora, o bom endodontista conhecerá as facilidades e dificuldades que podem existir em cada tratamento endodôntico.
E só um bom endodontista, treinado para fazer bem e sobretudo estimulado a pensar cada caso, conseguirá fazer assim.
Pensar cada caso
Em endodontia, muitas escolas reduziram a disciplina a um curso de treinamento em ’como fazer um canal’.
Lars Spangberg
Muitos considerarão uma tolice convidar para ‘pensar cada caso’ ao se trabalhar num espaço tão reduzido que, excetuando-se os caninos, numa visão bidimensional teria em média cerca de 22 mm de extensão por 0,40 mm de largura no plano mesio-distal.
Talvez se deva lembrar que há outros atos operatórios cuja redução de espaço em que são realizados não lhes tira a importância.
Ainda que se considerem as diferenças, atos operatórios em espaços reduzidos na Medicina não lhes confere a irrelevância que se dá ao ato operatório no reduzido espaço do canal radicular.
Mesmo que se distribuam pelo corpo humano com características próprias a cada função a desempenhar, os tecidos pulpar e perirradiculares, com os quais se lida na Endodontia, possuem basicamente as mesmas características dos demais tecidos conjuntivos.
Seria assim sensato que fossem vistos como semelhantes e, como tal, merecedores de uma visão menos mecânica no tratamento, visão essa que empobrece a Endodontia e a torna pequena como especialidade da área da Saúde.
Transmitir essa visão aos alunos de Odontologia explica em boa parte a pouca importância que historicamente se dá a essa profissão.
Especificamente pensando em Endodontia, é esse raciocínio curto que permite a disseminação e aceitação da ideia de se ter o “controle da anatomia”.
É nesse universo que disseminam o pensamento único.
O que ocorre normalmente?
O paciente ainda não chegou ao seu consultório, você não o conhece, mas já sabe:
- O CT dos canais do molar que você vai tratar será X mm aquém
- Vai instrumentar somente com a lima Y
- Vai fazer ampliação foraminal com a lima Z
- Vai ajustar o cone a 2 mm aquém porque sabe que ao condensar ele vai avançar exatamente mais 1 mm e ali vai travar perfeitamente (malabarismo no mais alto grau, já no campo do ilusionismo), obtendo a tão desejada obturação 3D, com a incontestável comprovação de vedamento hermético pela visualização do “surplus”
- Como não há possibilidade de imprevistos, tudo será feito em 50 minutos, se muito.
Tá pronto.
Que entre o outro paciente.
Temos hoje uma diversidade de instrumentos de grande qualidade, com diferentes conicidades, técnicas de instrumentação bem interessantes, técnicas, materiais e sistemas de obturação que permitem obturações com qualidade e praticidade, tudo a favor do endodontista.
Se limitações existem, elas ocorrerão fundamentalmente em função da anatomia; ainda é ela quem determina o que é possível fazer.
Observe, porém, que as eventuais limitações impostas pela anatomia dizem respeito ao desejo de maiores alargamentos.
Se há dúvidas e limitações quanto a isso, ou seja, o quanto instrumentar, não parece haver quanto à necessidade de um nível mínimo de instrumentação.
Que nível mínimo é esse?
A minha resposta é a mesma; nunca saberemos.
Como saber quais são o mínimo e o máximo de instrumentos a utilizar no preparo dos canais?
Sem chance.
Como saber qual exatamente o antibiótico e em que dosagem para todos os casos?
Alguma chance?
Nenhuma.
Não só nos dois exemplos citados como em muitas outras situações, são muitas as variáveis.
Outro fato a se observar é que quando se fala até a lima 25, ela também instrumenta o canal.
Esse nível de instrumentação, até a lima 25 (inclusive ela), é contestado porque 0,25 mm é o real diâmetro anatômico apical.
Como reconhecer que instrumentar até a lima 25 seria insuficiente e aceitar que instrumentar somente com a lima 25 é suficiente?
Qual a lógica que há nisso?
Para muitos, a lógica parece depender de onde vem a proposta. A proposta de João jamais terá a mesma repercussão e aceitação que a de John, assim como a de José não terá a mesma que a de Joseph.
Dessa lógica, que atravessa os oceanos e nos chega em outras línguas, pode vir a aceitação ou a negação.
Ariano Suassuna, esse paraibano-pernambucano fantástico, conta a história de uma mulher que parece classificar a humanidade em duas categorias; quem foi a Disney e quem não foi.
Todos riem, mas, como sempre, muitos não captam a mensagem dele (um mestre na arte de mandar “recados” nas suas falas).
Tal qual a história de Ariano Suassuna, onde a inteligência e a sensibilidade da mulher da Disney trazem perplexidade, traz perplexidade também a divisão da Endodontia em grupos:
- Os que fazem sessão única e os que não fazem
- Os que usam instrumento único e os que não usam
- Os que fazem molar em 45 minutos e os que são abestalhados
Talvez seja interessante acrescentar mais um.
Os que falam inglês e os que não falam.
Just my two cents.
Vamos fazer a imersão final no tema no próximo texto.