“Redondinho que nem moeda”


Moeda um Real

Por Ronaldo Souza

Apresentando-me as maravilhas daquele instrumento no meu consultório, o representante da empresa disse:

“Essa lima deixa o canal redondinho que nem moeda”.

Não ia precisar fazer nenhum esforço para guardar aquela frase na minha memória. Tinha plena certeza de que não só ficaria guardada como ocuparia um lugar de destaque.

Ela é um simples reflexo de como pensa, senão todos, a maioria dos endodontistas, entre os quais incluo muitos professores.

Você acredita que o representante da empresa, aquele que vai no seu consultório ou na sua faculdade lhe apresentar as maravilhas do novo instrumento, do novo motor, do novo sistema, do novo cimento obturador de canal, da nova resina, do novo implante… cria os argumentos para lhe vender, ou alguém faz isso para ele?

Já sabendo da sua resposta, afinal você é uma pessoa inteligente, pergunto quem é esse “alguém”?

Quem você acha que deu essa informação ao representante?

  • Um clínico
  • Um especialista
  • Um professor
  • Faustão
  • O consultor técnico da empresa
  • O cara que estava passando pela porta da empresa na hora
  • O cunhado dele
  • Nenhum desses

Por que precisamos de um canal redondinho que nem moeda?

Imaginemos espaços que tivessem o formato de qualquer uma das figuras geométricas abaixo.

Figuras geométricas planas

Imaginemos agora qualquer um desses espaços  e que temos que veda-lo com qualquer outra dessas figuras.

Alguém consegue vedar os espaços correspondentes a qualquer uma dessas figuras geométricas com qualquer outra delas?

Alguém acha possível?

Quais são as figuras geométricas acima que mais se aproximam uma da outra em termos de configuração?

1. O quadrado e o paralelogramo.

2. O círculo e o oval

Concorda comigo?

Existe cone de guta percha com o formato de um quadrado ou de um paralelogramo?

Não.

Então, que tal usarmos o círculo e o oval para a nossa conversa?

Lembra da figura abaixo?

Forame menor 1''

Pois é, um circulo (vermelho) “doidinho” para vedar um espaço oval.

Você acha que ele vai conseguir?

Parabéns!

Veja nesse texto aqui o que comentei sobre o que essa figura representa.

Agora, a figura abaixo.

Cone de guta percha'''

Esse material aí é um cone de guta percha.

Esse material tem o formato circular.

Por favor, alguém consegue me explicar como é possível o canal, que na sua maioria não é circular, ser hermeticamente vedado por esse material aí em cima?

Meu Deus!!!

Quando o óbvio ululante não é o óbvio ululante

É difícil conceber a praticabilidade de obturar hermeticamente um canal com um material pré-formado dada a complexa e variável anatomia radicular.
Oscar Maisto

Além de observação inteligente e ao mesmo tempo sutil e aguda, essa frase de Maisto, professor de Endodontia da Argentina, já falecido, representa um registro do momento da “necessidade” de mudança nas técnicas/materiais de obturação.

É difícil conceber a praticabilidade de obturar hermeticamente um canal…

O questionamento é claro.

É como se ele estivesse perguntando; vocês acreditam em vedamento hermético?

Quantos anos passamos acreditando que existia vedamento hermético em Endodontia?

Quantos anos passamos acreditando que era possível obturar hermeticamente um canal com um material pré-formado dada a complexa e variável anatomia radicular?

Vou direto ao ponto com a pergunta que faço há anos:

Alguém conhece algum trabalho que comprove a existência de vedamento hermético em Endodontia?

Por que ao longo de todos esses anos não se conseguiu comprovar a existência de vedamento hermético em Endodontia?

Por uma razão bem simples:

Não existe vedamento hermético em Endodontia!

Por que?

Graças principalmente a uma coisa chamada a-na-to-mia.

Mesmo quando o canal fica “redondinho”, não é como se imagina.

Você não acha que o canal da figura abaixo está muito bem vedado?

Canal redondo 1

Em magnificações de 40 (Fig. A) e 150 vezes (Fig. B), veja como está tudo “redondinho”. O cone de guta-percha perfeitamente adaptado em todas as paredes do canal.

Se em aumentos de 40 e 150 vezes a sensação de vedamento é tão flagrante, você consegue imaginar como deve ter ficado essa obturação na radiografia final?

Não tenho nenhuma dúvida ao dizer que na imagem radiográfica a obturação ficou perfeita.

Vedamento hermético.

Portanto, sucesso garantido.

Quantas vezes podemos imaginar que é assim que ficam as nossas obturações?

Agora acompanhe comigo a sequência das imagens das figuras A e B acima desse trabalho de Luiz Chávez de Paz, publicado no Journal of Endodontics.

Canal redondo 2

Observe na figura C (aumento de 300 vezes) a lacuna que existe entre a guta-percha e a parede do canal na área delimitada por um quadrado. Essa área pode ser vista em magnificações de 2.500, 7.000 e 10.000 vezes em D, E e F respectivamente.

Perceba como há acúmulo de bactérias nesse espaço, cada vez observado em mais detalhes à medida em que aumenta a magnificação.

Há um “mundo” de bactérias povoando aquele espaço.

Por essa razão, mesmo com a obturação perfeita, persistia a lesão periapical desse caso, como pode ser visto no artigo de Luiz Chávez de Paz, Redefining the Persistent Infection in Root Canals: Possible Role of Biofilm Communities.

Assim, o “portanto, sucesso garantido”, que escrevi logo aí em cima, não ocorreu.

Vamos juntos?

Mesmo quando a obturação parece perfeita, como a vista acima, os canais costumam apresentar espaços vazios onde microrganismos podem sobreviver e proliferar.

Estudos recentes de Khayat demonstraram que os canais perfeitamente obturados, se expostos à saliva, são recontaminados em menos de trinta dias.
Berutti, E et al., In: Scotti, R e Ferrari, M; Pinos de Fibra, 2003

O que são canais perfeitamente obturados?

Ora, canais perfeitamente obturados são canais perfeitamente obturados!

Não há falhas.

Estão hermeticamente vedados

E por que são recontaminados em menos de trinta dias???

Nunca esqueça.

Bactéria é um ser microscópico.

O vedamento hermético que lhe dizem existir e lhe “mostram” na obturação perfeita em uma radiografia periapical pode representar o mundo adequado à sobrevivência e proliferação das bactérias.

Mas observe que Maisto lançou a base para a mudança.

É difícil conceber a praticabilidade de obturar hermeticamente um canal com um material pré-formado.

Era uma deixa para mudanças nas técnicas e/ou materiais de obturação.

Aí surgiu a plastificação da guta percha.

Deixamos de ter um material pré-formado, o cone de guta percha, e passamos a ter um que podia se amoldar à anatomia do canal, a guta percha plastificada. Assim passamos a ter mais condições de melhor obturar a complexa e variável anatomia radicular.

E aí todos pensaram:

Ah, agora conseguimos vedar hermeticamente o canal!!!

Aí inventaram o “puff”.

Daí sofisticaram e foram para o “surplus” (leia “Surplus”, embuste em inglês).

Não pretendo e não vou discutir as maneiras de usar a guta percha e suas eventuais vantagens e desvantagens. Já o fiz em outros momentos e certamente voltarei a faze-lo, mas não aqui e agora.

Há algo muito maior para se discutir.

O que precisamos discutir é a compreensão do processo. Sem isso, continuaremos como estamos há mais de 60 anos; sem avançar para lugar nenhum.

Você acha que devemos parar a nossa conversa aqui?

Concordo.

Então vamos continuar no próximo texto.